A coluna Inovação e Mercados de Capitais pretende tratar da evolução do mercado de capitais brasileiro no contexto da expansão acelerada do setor e do impacto de novas tecnologias e soluções inovadoras sobre as relações comerciais.
Segundo a Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais), no primeiro trimestre de 2024, o valor das emissões cresceu 91% em relação a período similar ano passado, sendo a maioria destas emissões em crédito privado, totalizando aproximadamente 27 vezes o valor de emissões em ações.
Apesar do crescimento do mercado de valores mobiliários, é certo que ainda existem desafios e oportunidades para serem identificadas, analisadas e discutidas pelo regulador e pelos agentes de mercado para garantir um mercado de capitais mais eficiente, sustentável, tecnológico e democrático.
Nesse contexto, torna-se essencial a realização de estudos, debates e propostas voltadas para agendas como a tokenização de ativos, a transição climática e a inclusão de sociedades empresárias de menor porte, que tradicionalmente, em razão dos custos regulatórios intrínsecos enfrentam maiores dificuldades de acessar e financiar seus projetos nesse mercado.
Nesta coluna inaugural, trataremos da agenda de trabalho em desenvolvimento, no âmbito do acordo de cooperação técnica entre o Centro de Regulação e Inovação Aplicada (CRIA), de iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e o Instituto Brasileiro de Finanças Digitais (IFD).
O CRIA foi instituído pela CVM com o objetivo de aumentar a compreensão do regulador sobre o desenvolvimento tecnológico e de novos modelos de negócio no mercado de capitais brasileiro. Trata-se do hub de governança da Autarquia para iniciativas voltadas para inovação no âmbito do mercado de capitais, o que inclui o Laboratório de Inovação Financeira (LAB), o Sandbox Regulatório e o acordo de cooperação com o IFD.
No contexto do acordo entre a CVM e o IFD, a agenda de trabalhos atual se divide nos seguintes temas, a serem aprofundados em futuras colunas.
Aspectos da regulação do Fiagro
A parceria entre o IFD e o CRIA propõe-se ao estudo de temas de fronteira do mercado de capitais, fundamentando análises de caráter prático sobre propostas normativas e consultas públicas. Nessa linha, o IFD também tem se dedicado a oferecer pesquisas e subsídios no âmbito da Consulta Pública da CVM sobre a regulamentação do Fiagro (Fundo de Investimentos em Sistemas Agroindustriais). Da consulta pública, resultará a norma definitiva para esse importante instrumento de captação.
No âmbito do acordo com o CRIA, o IFD tem pesquisado modelos alternativos para a regulação do Fiagro multimercado, de modo que ele não tenha de observar subsidiariamente a pluralidade de regulamentos de outras modalidades de fundos. Procura-se, com isso, fomentar um regime normativo único e compreensivo, afastando complexidades e custos de administração inerentes ao modelo de aplicação subsidiária. Discutiremos detalhadamente o tema em nosso próximo texto.
Além disso, o IFD estuda a viabilidade jurídica de os Fiagros investirem em créditos de carbono. Sejam esses créditos emitidos compulsória ou voluntariamente, sejam eles negociados em ambiente regulado ou autorregulado. Trata-se de temática alinhada à Agenda Regulatória CVM 2024, que prioriza o desenvolvimento de um mercado de capitais voltado a ativos sustentáveis, como podem ser os créditos de carbono.
Enfim, de forma mais geral, o CRIA, a partir dos estudos e pesquisas desenvolvidos pelo IFD, tem frente de trabalho dedicada à integração do mercado de capitais com o meio rural. Pauta que ganhou relevância ainda maior diante da necessidade de respostas desse mercado às atuais catástrofes climáticas.
Tokenização de crédito privado
O Boletim de Mercados de Capitais da Anbima de abril de 2024 revela um crescimento recorde nas ofertas do mercado de capitais, alcançando R$ 130,9 bilhões no primeiro trimestre, um aumento de 91% em relação ao ano anterior.
A maior parte do volume decorreu do mercado de renda fixa, com as debêntures liderando e atingindo R$ 71,9 bilhões, representando um crescimento de 94%. Em contraste, o mercado de ações movimentou R$ 3,8 bilhões, permanecendo estável em relação ao período anterior.
Tal cenário destaca a emissão de dívida privada como uma alternativa significativa ao financiamento bancário tradicional, apesar de enfrentar elevados custos de entrada e operação que limitam seu acesso às pequenas e médias empresas.
Ainda que a digitalização e a mudança de hábitos causados pela pandemia tenha reduzido tais custos, permitindo emissões de menor valor, entre R$ 10 milhões e R$ 40 milhões, a tokenização surge como uma inovação tecnológica promissora para reduzir ainda mais os custos de entrada e operação e expandir o acesso ao mercado de capitais, transformando títulos de dívida em registros escriturais programáveis em uma rede distribuída (distributed ledger technology – DLT).
A CVM está atenta aos avanços tecnológicos e os seus efeitos no mercado de capitais, e vem buscando, de forma cuidadosa e dialogada, adaptar sua regulação às inovações em curso. A Superintendência de Securitização e Agronegócio (SSE) da CVM editou dois ofícios circulares (Ofícios Circulares SSE/CVM 04/2023 e 06/2023) visando a adaptar a regulamentação de crowdfunding (Resolução CVM 88/2020) à emissão de dívidas privadas tokenizadas, de forma a permitir que as tokenizadoras estejam submetidas a um regime normativo mais flexível, que reduza os custos de emissão e distribuição enquanto mantém a supervisão regulatória.
Tal implementação, no entanto, enfrenta desafios, como regras rígidas de lockup e limitações no tamanho das emissões, o que aumenta os custos sem melhorar significativamente a segurança dos investidores.
Essas mudanças normativas e tecnológicas são essenciais para um mercado mais inclusivo e competitivo, destacando a necessidade de políticas públicas que continuem a incentivar a inovação e a reforma regulatória no setor de capitais.
Liquidação tokenizada
No âmbito das atividades do CRIA desenvolvidas pelo IFD, encontra-se a análise dos impactos e oportunidades decorrentes da aplicação de tecnologias de ponta no mercado financeiro.
Neste contexto, é fundamental mencionar o trabalho do Banco Central, que de forma pioneira entre as grandes economias, deu andamento aos testes com uma moeda digital de banco central (da sigla em inglês CBDC, Central Bank Digital Currency), o Drex.
Atualmente, o projeto do Drex encontra-se em fase de testes. A infraestrutura do piloto Drex permitirá a criação de ativos programáveis, funcionalidade que poderá ser aproveitada na liquidação de operações com valores mobiliários.
Ainda, no projeto do Drex encontramos todos os aspectos mais modernos das inovações no mercado financeiro, que passam obrigatoriamente por inovações que envolvam redes DLT, blockchain e tokens. Quando aplicadas no mercado de valores mobiliários, tais tecnologias visam a utilizar o poder de redes computacionais descentralizadas para facilitar a negociação e liquidação de ativos, criados e registrados nas próprias redes, e de forma indelével e mediante aplicação de criptografia.
É justamente neste aspecto que o IFD tem destinado parte dos seus esforços: como ocorrerá a liquidação de uma operação quando a negociação ocorrer no âmbito de uma rede DLT?
Hoje em dia, a liquidação de operações de valores mobiliários exige a atuação de intermediários que garantam segurança das partes, de forma que a entrega do ativo ocorra somente após a disponibilização dos recursos para pagamento. Em operações à vista, isso parece simples. Mas o que fazer quando estamos falando de milhões de operações concomitantes, ajustes de carteiras, operações alavancadas e outras práticas correntes do mercado?
É aí que a tokenização traz possibilidades que merecem ser discutidas. Por meio de smart contracts, a liquidação de um token pode ser automática, eliminando boa parte dos riscos desta etapa de negociação. Todavia, isso não significa que a implementação de tal solução seja simples, ou que resolveria todas as dificuldades do mercado.
Faz-se necessário pensar em como o token é criado, qual rede utilizar, como regular o acesso e quem seriam os responsáveis por estes controles. Ademais, a escala de operações em um mercado robusto é um desafio, considerando a velocidade que a liquidação deve ocorrer em oposição às capacidades tecnológicas de uma rede do tipo DLT.
Como mencionado acima, o Drex do Banco Central será uma peça fundamental para que a tecnologia possa atingir maturidade e ser empregada. Ao viabilizar a liquidação automática de transferências via DLT, encurta-se a distância para a concretização das operações e a movimentação de valores.
É justamente nesse aspecto que os testes do Drex envolveram a Secretaria do Tesouro Nacional, com possibilidade de liquidação de transações envolvendo Títulos Públicos Federais com Entrega contra Pagamento (Delivery versus Payment ou DvP). Apesar dessas considerações, as dúvidas e os desafios a serem superados são um excelente motivo para aprofundar a pesquisa neste tema, estimulando a congregação de esforços entre o regulador, o mercado e a academia na busca de soluções.