O ano de 2024 começa com a preocupante notícia de que os riscos fiscais da União ultrapassam R$ 1 trilhão[1], o que, como se constatará, pode impactar negativa e profundamente as contas públicas.
O orçamento público é uma lei destinada a prever as receitas e destinar os recursos para atender às necessidades da sociedade de cada um dos entes federados, explicitando a atividade financeira do setor público, sendo uma peça que integra o sistema de planejamento orçamentário da administração pública, juntamente com o Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Essas leis devem refletir com fidelidade a aplicação dos recursos estabelecida pela sociedade. Contém, no entanto, previsão de fatos futuros e incertos, pois a arrecadação das receitas públicas envolve questões impossíveis de serem estabelecidas com precisão, por dependerem de uma série de fatores relacionados ao comportamento da economia e outros fatores. Mesmo as despesas a serem realizadas ficam sujeitas a intercorrências que podem alterar as previsões orçamentárias. Essa é uma das razões que tornam as leis orçamentárias normas de natureza jurídica bastante peculiar, uma vez que seu fiel cumprimento é condicionado a incertezas próprias da realidade dos fatos.
O sistema orçamentário traz instrumentos voltados a mitigar esses problemas decorrentes dessas incertezas que geram imprecisões nesse sistema de planejamento orçamentário, a fim de conferir maior credibilidade e segurança jurídica às normas que vão regular as finanças públicas de todos os entes federados.
Um dos mais importantes é o Anexo de Riscos Fiscais, documento que integra a Lei de Diretrizes Orçamentárias, como determina o art. 4º, § 3º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), e tem a função de avaliar “os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem”. Assim, o ente federado tem explicitados os riscos fiscais a que está sujeito, e indicadas as providências a serem tomadas em caso de virem a ocorrer. Mitiga-se, com isso, a incerteza e aumenta-se a segurança jurídica no âmbito orçamentário, tornando-se assim um instrumento relevante para todos aqueles que dependem das informações sobre as finanças públicas e da conduta dos agentes públicos em matéria financeira.
Na mais recente LDO da União, publicada no último dia 29 de dezembro (Lei 14.791), a percepção do aumento dos riscos fiscais se tornou evidente, em especial a partir da leitura do respectivo Anexo de Riscos Fiscais (Anexo V).
Não é simples explicitar o que significa exatamente e como calcular os riscos fiscais. Aspecto relevante na análise dos riscos fiscais diz respeito à delimitação do seu conceito. Na sua caracterização, a incerteza do acontecimento constitui marca inafastável, ou seja, trata-se de possibilidade de ocorrência de determinado evento e que afete, por sua vez, as contas públicas. Os chamados “passivos contingentes” descritos na norma do § 3º do artigo 4º da LRF se referem a obrigações causadas por evento incerto, passível ou não de ocorrer, sobre o qual o Governo não possui controle. A probabilidade de ocorrência e sua magnitude dependem de condições exógenas, cuja ocorrência é difícil de prever[2].
Enfim, não basta a possibilidade de ocorrência do evento para caraterização do risco fiscal; é preciso, da mesma forma, que tal evento impacte, de maneira considerável, as contas públicas.
Nesse sentido, tendo a incerteza da ocorrência como fator definidor do risco fiscal, é importante salientar que riscos repetitivos e conhecidos, como catástrofes naturais sazonais, devem ser mitigados pelas suas respectivas previsões no planejamento orçamentário das Administrações Públicas, não se caracterizando, portanto, como risco fiscal nos moldes da LRF.
Da mesma forma, o pagamento de precatórios judiciais não configura risco fiscal, muito embora alguns entes federados tenham a tendência de inseri-los em seus anexos de riscos fiscais. Precatórios são despesas que decorrem de obrigações certas, devendo ser absorvidas pelos orçamentos dos respectivos entes públicos devedores[3].
Por integrar a estrutura das leis de diretrizes orçamentárias, os anexos de riscos fiscais são importantes instrumentos de planejamento, essenciais à gestão fiscal responsável, na medida em que compete aos órgãos públicos responsáveis pelo planejamento orçamentário traçar cenários de médio e longo prazo para as finanças públicas, o que inclui a identificação de potenciais riscos contingentes, e leva à concepção de diretrizes para a política fiscal que terão o papel de orientar a elaboração das ações governamentais e programações orçamentárias.
Tendo sua elaboração orientada pelo Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF), publicado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o Anexo de Riscos Fiscais agrupa tais riscos em duas categorias específicas: os riscos gerais ou macroeconômicos, e os riscos específicos, critério que foi adotado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024 (LDO 2024), conforme se extrai de seu Anexo V.
No tocante à primeira categoria, os riscos macroeconômicos se relacionam às mudanças cíclicas ou estruturais na economia. Segundo o Anexo V da LDO 2024, “os riscos gerais estão relacionados à vulnerabilidade fiscal decorrente de desvios de previsão das variáveis econômicas. Nesse sentido, a análise dos riscos gerais busca avaliar os efeitos nas contas públicas resultantes de variações nos parâmetros econômicos utilizados para a produção das previsões fiscais”. Como exemplo de variáveis econômicas tomadas na hipótese, cite-se as variações do PIB, taxas de juros, taxa de câmbio, índices de inflação, preços de commodities, indicadores do mercado de trabalho, dentre outros.
Na órbita dos riscos gerados a partir da variabilidade dos parâmetros macroeconômicos, cumpre destacar a possibilidade de as receitas previstas não se confirmarem. Explica Feijó[4] que “(…) constituem riscos orçamentários os desvios entre as projeções das variáveis utilizadas para a elaboração do orçamento e os valores efetivamente verificados durante a execução orçamentária, assim como os coeficientes que relacionam os parâmetros aos valores estimados”.
Fatores como a variação no nível da atividade econômica, medida pela taxa de crescimento real do PIB, bem como da taxa de inflação e da taxa de juros, podem frustrar a arrecadação, assim como o planejamento deficiente que superdimensiona a receita estimada na lei orçamentária anual.
O Tribunal de Contas da União (TCU) procedeu à análise das principais metas constantes dos projetos de lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual, ambos da União, para o exercício de 2024[5].
No que tange à estimativa da receita primária líquida da União, verificou o TCU que “no Projeto de Lei Orçamentária Anual da União para o exercício financeiro de 2024, a estimativa da Receita Primária Federal Líquida em 19,2% do PIB é muito acima do que foi observado nos anos recentes, indicando estar superestimada, o que acarreta a possibilidade de se ter déficit primário de até R$ 55,3 bilhões e de descumprimento da meta de resultado fiscal proposta no Projeto de LDO para 2024”.
“Matemágica de Haddad começa a ser desmascarada”, alerta o site O Antagonista, referindo-se ao referido relatório[6]. Uma evidência extremamente prejudicial à credibilidade das leis orçamentárias, que já partem de dados com suspeita de serem irreais, o que só aumenta a insegurança jurídica em normas que já sofrem com a dificuldade de lidarem com previsões e estimativas.
Ainda em relação aos riscos macroeconômicos previstos no Anexo V da LDO 2024, destaque-se a análise da sensibilidade da dívida pública, que mensura o potencial aumento nos valores de pagamento ou de estoque da dívida ao longo do ano, e o risco de refinanciamento, que representa a possibilidade de o Tesouro Nacional ter de suportar o aumento de custo para se financiar no curto prazo ou, no limite, não conseguir captar recursos suficientes para honrar seus vencimentos.
No tocante aos riscos fiscais específicos, é importante evidenciar o aumento dos valores efetivamente pagos referentes à execução de demandas judiciais em face da União, que continuam sua trajetória de elevação, em números absolutos, não obstante as demandas de natureza tributária terem sua participação reduzida no total das demandas judiciais.
Ainda a título de riscos específicos, o Anexo de Riscos Fiscais aponta um crescimento do saldo devedor das operações de crédito garantidas pela União aos entes subnacionais, para fundos e programas. Com o agravamento da situação fiscal de tais entes, no período de 2016 a 2022, a União foi instada a honrar garantias em operações de crédito a eles concedidas, acarretando a chamada “socialização de prejuízos” muitas vezes impostas ao Tesouro Nacional por parte dos estados federados.
Por fim, a exposição ao risco de crédito relativo aos contratos inadimplentes do Fies, bem como riscos fiscais ambientais associados às mudanças climáticas, e ainda riscos decorrentes da elevação da pressão por expansão nos serviços de saúde acarretada por mudanças demográficas no médio prazo, estão entre os passivos contingentes elencados no Anexo V da LDO 2024.
O monitoramento dos riscos fiscais se dá ao longo da execução financeira do orçamento, observadas as disposições do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, que disciplina o processo de revisões bimestrais da receita e despesa e as limitações de empenho, quando necessárias, em função do cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais.
O Anexo de Riscos Fiscais, quando bem elaborado, trazendo os mecanismos necessários a serem implementados caso os riscos se concretizem, bem como seu constante monitoramento e execução de condutas de mitigação, constitui eficiente instrumento de concretização da política fiscal governamental, na medida em que atua preventivamente quanto à sua materialização e consequente impacto nas finanças públicas, buscando-se a manutenção do equilíbrio fiscal mediante ações planejadas e transparentes, nos termos das diretrizes consolidadas no artigo 1º da Lei de Responsabilidade Fiscal.
“O futuro é incerto e o fim está sempre perto!” (Jim Morrison, álbum Roadhouse Blues, 1970), vamos estar preparados para ele!
[1] Riscos fiscais da União atingem 1,2 trilhão em 2024. Valor Econômico, em 4.1.2024 (https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/01/04/riscos-fiscais-da-uniao-atingem-r-12-trilhao-em-2024.ghtml).
[2] FEIJÓ, Paulo Henrique; MEDEIROS, Márcio; ALBUQUERQUE, Claudiano. Gestão de Finanças Públicas: Gestão Orçamentária, vol. 1, 4ª ed. Brasília: Gestão Pública, 2022, p. 123.
[3] BRASIL. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Demonstrativos Fiscais – MDF. 14ª ed., 11 de julho de 2023, p. 58 (válido para o exercício de 2024). Disponível em https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/cosis/manuais/mdf. Acesso em 18.1.2024.
[4] FEIJÓ, Paulo Henrique et al. Op. cit. p. 124.
[5] BRASIL. Tribunal de Contas da União – Processo TCU 033.438/2024, Plenário, Relator Min. Jhonatan de Jesus (https://portal.tcu.gov.br/data/files/9A/B5/91/11/E391D810943E72C8E18818A8/033.438-2023-4-JPJ%20-%20ACOM_PLOA2024.pdf.) Acesso em 19/01/2024.
[6] O Antagonista, em 18.1.2024 (https://oantagonista.com.br/analise/matemagica-de-haddad-comeca-a-ser-desmascarada/).