Um aspecto em particular ganhou menção especial no mais recente relatório preliminar da Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA): a crescente infiltração do crime organizado no processo eleitoral brasileiro.
Desde o início do ano, o papel do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV) no financiamento de candidaturas locais para controlar contratos públicos e lavar o dinheiro do tráfico de drogas esteve no centro de destaque midiático, como no caso do Arujá, Embu, Praia Grande, Santos, Campinas, São Paulo, Rio de Janeiro e entre outras cidades.
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Além disso, há indícios de que as milícias continuam sendo uma grande ameaça ao processo eleitoral, sobretudo após os recentes desdobramentos das investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, que levaram à prisão de autoridades políticas e policiais influentes, assim como identificaram que o crime possivelmente foi motivado pela oposição aos interesses de milicianos em pautas relacionadas à regularização fundiária e ao combate à sua influência em áreas marginalizadas do Rio de Janeiro.
As “narcomilícias” e o “narcogarimpo”, muitas vezes formados pelos grupos já citados, também expandiram sua influência eleitoral para garantir o controle de territórios e mercados estratégicos.
Suas táticas incluem, por exemplo, a coerção de eleitores e candidatos opositores por meio de ameaças ou violência, assassinatos, restrição de campanhas em áreas controladas, acordos financeiros com autoridades locais por meio de propinas, financiamento de campanhas com dinheiro ilícito, desvio de recursos públicos, ocupação de cargos públicos por criminosos, falsidade ideológica, uso de empresas de fachada e fraudes em licitações, compra de votos, lavagem de dinheiro em campanhas e influência em políticas públicas e projetos de leis que favoreçam seus interesses estratégicos.
Em 2024, tais táticas foram denunciadas e investigadas em vários estados, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Amapá, Amazonas, Acre e Rio Grande do Sul.
O Estado brasileiro tem respondido com operações policiais, cooperação interinstitucional e fiscalização eleitoral. Por exemplo, no Rio de Janeiro, o Ministério Público e o Tribunal Regional Eleitoral adotaram medidas como a impugnação de candidaturas com vínculos criminosos e alterações no mapa eleitoral para evitar a coerção de eleitores na tentativa de promover a desarticulação de grupos que tentavam influenciar o pleito.
Em São Paulo, após as autoridades constatarem que o PCC tem exercido uma forte influência em diversos municípios paulistas, a Operação Decurio resultou na prisão de membros do grupo, apreensão de bens avaliados em bilhões de reais e na desarticulação de redes de financiamento de candidatos à vaga de vereador.
No Ceará, a Operação Complevit resultou em prisões, bloqueios de contas e apreensões para combater grupos criminosos que ameaçavam eleitores e candidatos. Na Paraíba, a Operação Território Livre investigou o aliciamento violento de eleitores por um grupo criminoso.
Paralelamente, o governo federal anunciou a criação de um centro de monitoramento e inteligência para fiscalizar o problema. O Conselho Nacional do Ministério Público incentivou a cooperação interinstitucional, enquanto a Procuradoria-Geral Eleitoral emitiu diretrizes para aprimorar o compartilhamento de informações com o Ministério da Justiça e a Polícia Federal.
A ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), destacou a seriedade do cenário e aprovou o envio de forças federais para garantir a segurança dos eleitores em várias regiões, enquanto o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou que candidatos com vínculos criminosos seriam barrados da corrida eleitoral ou teriam seus mandatos cassados caso eleitos.
Apesar dessas iniciativas variadas, ainda há pouca clareza sobre a real efetividade dos esforços governamentais em combater o impacto do crime organizado no cenário eleitoral.
Nesse meio-tempo, candidatos em várias cidades usaram o tema como arma política tanto em debates eleitorais quanto nas redes sociais, acusando adversários de envolvimento com facções criminosas e esquemas de lavagem de dinheiro. Tal realidade foi característica, por exemplo, especialmente nos processos eleitorais em São Paulo e João Pessoa.
Diante desse contexto, é natural questionarmos o seguinte: seria esse fenômeno uma exclusividade das eleições municipais de 2024? A resposta é não. A infiltração do crime organizado em eleições não é uma novidade, mas um risco real que deve ser enfrentado.
As eleições municipais deste ano reafirmaram tendências já consolidadas, com grupos criminosos locais, nacionais e transnacionais que operam sob lógicas empresariais infiltrando-se nas esferas públicas e privadas, utilizando a violência, a corrupção e a impunidade a seu favor. O contexto eleitoral é apenas mais uma oportunidade explorada e capitalizada pelo crime organizado para expandir o seu poder político-econômico e sua influência em processos de tomada de decisão.
Na verdade, a infiltração do crime organizado no processo eleitoral brasileiro é um problema antigo. As conexões ilegais entre centenas de criminosos, forças de segurança e políticos reveladas pela CPI das Milícias no Rio de Janeiro, em 2008, são exemplos emblemáticos. Uma década depois, o aumento significativo de casos semelhantes em todas as regiões do país, envolvendo diversos grupos de interesse e organizações criminosas, levou o Estado brasileiro a finalmente intensificar sua atenção perante o tema.
Atualmente, a situação é alarmante, com uma investigação apontando que um esquema criminoso comandado pelo PCC havia movimentado R$ 8 bilhões para financiar políticos e suas campanhas nas eleições municipais de 2024 através de um banco virtual e 19 empresas.
Outros países, na própria América Latina e até no Norte Global, também enfrentam o mesmo desafio, alguns em situação ainda mais crítica.
As eleições de 2024 são uma oportunidade para o Brasil reconhecer a seriedade do tema, desenvolver estratégias baseadas em evidências, fortalecer a cooperação (inter)nacional e interinstitucional e proteger o espaço cívico.
O que somos e o que seremos enquanto nação depende da nossa capacidade de assegurar que a transparência, a legalidade e a integridade, dignas de uma democracia, prevaleçam perante a violência, a corrupção e a impunidade associada à criminalidade organizada. Apenas assim conseguiremos enfrentar a grave realidade que se impõe diante de nós: o fato de que o processo eleitoral também é um terreno de disputa por poder e influência para o crime organizado.