A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, no dia 21 de dezembro do ano passado, modificação legislativa transferindo, do Poder Executivo para o próprio Legislativo municipal, a competência exclusiva para decidir sobre o tombamento de determinados bens de valor histórico, cultural e ambiental. Trata-se dos arts. 89[1], 90[2] e 91[3] do PL 586/2023, cujo objeto original é a reforma da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo paulistana (LPUOS), comumente conhecida como Lei de Zoneamento. Atualmente, a matéria encontra-se nas mãos do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que tem até a próxima sexta-feira (19) para vetar referidos dispositivos, face às flagrantes inconstitucionalidades adiante analisadas[4].
O “jabuti” foi incluído em um substitutivo apresentado pelo relator, vereador Rodrigo Goulart (PSD), na manhã do mesmo dia em que a Câmara votaria, em segundo turno, o projeto de lei. Trata-se de uma truculenta reação de parte do mercado imobiliário contra a atuação técnica e independente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Em decisões recentes, o Conpresp havia proibido a demolição de conjuntos urbanos de importância arquitetônica, urbanística e ambiental para a população paulistana, como as vilas de Pinheiros[5], Vila Mariana (“Chácara das Jabuticabeiras”)[6] e Ibirapuera (“Mancha dos Bombeiros”)[7]. Diante do impedimento de demolir o patrimônio histórico, os tratores foram redirecionados contra o próprio Conpresp.
Primeiramente, ressalta-se o vício do processo legislativo. A Lei Orgânica do Município de São Paulo e o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) exigem que, durante a tramitação de projetos que versem sobre LPUOS ou política de meio ambiente, sejam realizadas, pelo menos, duas consultas públicas (art. 41, VI e VIII). Referidos dispositivos concretizam, no âmbito do processo legislativo municipal, a garantia de participação popular estabelecida pelas Constituições Federal (art. 29, XII) e Estadual (arts. 144, 180, I, II e V, e 181, § 1º)[8]. Obviamente, para que o escrutínio popular seja efetivo, as propostas de alteração legislativa deveriam ter sido publicadas antes da realização das audiências, restando inexoravelmente frustrado pela inclusão sub-reptícia da matéria, totalmente estranha ao objeto original do projeto de lei, poucas horas antes de sua votação.
Curioso notar que, dias antes dessa manobra, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo havia se reunido para reafirmar, em dois julgados, sua pacífica jurisprudência no sentido da nulidade de lei aprovada sem a efetiva participação popular, à vista dos dispositivos constitucionais já referidos[9].
Também no mérito a inconstitucionalidade é flagrante, na medida em que o Poder Legislativo não pode usurpar a competência constitucional do Executivo de decidir sobre tombamentos. Com efeito, a Constituição Federal atribui ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, o dever de promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de todas as formas de acautelamento e preservação, dentre as quais o tombamento (art. 216, § 1º). Até recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF), na esteira da melhor doutrina[10], entendia que essa competência era exclusiva do Executivo, de modo que todas as iniciativas do Legislativo de determinar tombamentos eram consideradas violações ao princípio da separação dos Poderes[11].
Em 2017, no entanto, o STF reviu essa interpretação restritiva e excludente, para reconhecer que “a expressão Poder Público possui como destinatárias todas as esferas de atuação estatal, seja federal, estadual ou municipal, incluindo a divisão tripartite de poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário)”[12]. A excessiva complacência do STF na interpretação da matéria acabou trazendo dificuldades para a implementação da política pública. Afinal, ao contrário do Poder Executivo, o Legislativo não dispõe de instituições dedicadas à tutela do patrimônio histórico, com acervo, processos e corpo técnico especializados, como o Iphan, o Condephaat e o Conpresp (nas esferas federal, estadual e municipal, respectivamente).
Por essa razão, em 2021, o STF procurou moderar a amplitude de sua interpretação anterior, restringindo a competência do Poder Legislativo ao tombamento provisório. Deste modo, por meio de ato normativo de efeitos concretos que reconheça o valor de um determinado patrimônio histórico, cultural ou ambiental, o Poder Legislativo pode apenas “resguardar o ato administrativo de tombamento definitivo a ser levado a efeito por órgão ou entidade do Poder Executivo respectivo”[13].
No Tribunal de Justiça de São Paulo, a matéria ainda não foi pacificada, havendo contemporâneos julgados do Órgão Especial tanto restringindo a competência ao Executivo[14] como reconhecendo-a concorrente com os demais Poderes[15]. De toda sorte, uma coisa é certa: se a competência do Legislativo de determinar tombamentos é ainda objeto de controvérsia, a do Executivo, derivada diretamente do texto constitucional, é inconteste.
Em razão do açodamento com que a alteração legislativa foi incluída em pauta, não houve sequer a apresentação da justificativa para a proposta. É possível inferir, no entanto, que se baseie em uma crença de que o Conpresp, ao definir e executar a política de preservação do patrimônio, estaria de alguma forma invadindo a competência da Câmara Municipal de estabelecer os parâmetros urbanísticos referentes ao parcelamento, uso e ocupação do solo. Nada mais equivocado.
Planejamento urbano e preservação do patrimônio são imperativos de igual estatura constitucional (art. 30, VIII e IX da Constituição Federal) que devem, portanto, ser compatibilizados em um regime de otimização[16]. Prova disso é que a proteção do patrimônio histórico pode e deve ser determinada também pelas autoridades competentes no âmbito federal e estadual (Iphan e Condephaat), jamais se cogitando que, por conta disso, estariam a “usurpar” a competência do Legislativo municipal de definir os parâmetros do “planejamento urbano”.
Por essas razões, é de se esperar que o prefeito Ricardo Nunes, orientado pela Procuradoria-Geral do Município, vete nos próximos dias os arts. 89, 90 e 91 do PL 586/2023, de modo a resguardar as competências do Conpresp e a política municipal de preservação do patrimônio histórico, cultural e ambiental da cidade de São Paulo.
[1] Art. 89. As propostas de tombamento de porções do território municipal que configurem alteração de parâmetros urbanísticos de matéria afeta ao código de edificações, legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo ou zoneamento, serão formuladas pelo Conpresp e encaminhadas ao Executivo para serem consubstanciadas em projeto de lei a ser enviado à Câmara Municipal de São Paulo.
Parágrafo único: As disposições do caput deste artigo aplicam-se também às propostas de envoltórias no entorno de bens já tombados, quando configurarem alteração de parâmetros urbanísticos referidos no caput.
[2] Artigo 90. Nos casos de abertura do processo de tombamento de envoltória de bem tombado, a área territorial proposta terá o mesmo regime de preservação do bem objeto do tombamento por um prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data da resolução que abriu o processo de tombamento;
Parágrafo único: Decorridos 180 (cento e oitenta) dias da data da abertura do processo referido no caput deste artigo, sem que tenha havido aprovação pela Câmara do projeto de Lei enviado pelo Executivo, o entorno do bem objeto do processo de abertura do tombamento não terá mais o mesmo regime de preservação.
[3] Art. 91. Os imóveis ou porções do território municipal com processo de tombamento já abertos pelo órgão municipal de preservação do patrimônio histórico, cultural e ambiental na data da publicação desta lei que, no período de 2 (dois) anos após a publicação desta lei não tiverem tido seu tombamento definitivo efetivado, passarão a ter o mesmo zoneamento do entorno.
[4] Vide “Prefeito de SP afirma que vai vetar trecho da nova Lei de Zoneamento que prevê que vereadores decidam sobre tombamentos de imóveis” (Portal G1, 08/01/2024).
[5] Vide “Moradores conseguem tombamento provisório de parte de Pinheiros em meio a avanço de prédios altos” (O Estado de S. Paulo, 02/10/2023).
[6] Vide “Conpresp aprova construção de edifícios de até 50m na Chácara das Jaboticabeiras, na Vila Mariana” (O Estado de S. Paulo, 22/11/2021).
[7] Vide “Vilas perto do Ibirapuera têm demolição barrada com urgência após derrubada de casas” (O Estado de S. Paulo, 12/05/2023).
[8] Nesse sentido, vide PEREZ, Marcos Augusto. A Administração Pública Democrática. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004, p. 83.
[9] TJSP, Ação Direta de Inconstitucionalidade 3001962-07.2023.8.26.0000, Relator Desembargador Damião Cogan, j. 06/12/2023; e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2196220-34.2023.8.26.0000, Relator Desembargador Jarbas Gomes, 13/12/2023.
[10] Vide CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª ed., Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2011, p. 859; e DALLARI, Adilson Abreu. Tombamento. In: DALLARI, Adilson Abreu e FIGUEIREDO, Lúcia Valle Figueiredo (coordenadores). Temas de Direito Urbanístico. São Paulo, vol. 2, Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 15 (apud STF, ADIN 5.670/AM, Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 11/10/2021).
[11] ADI 1.706/DF, Relator Min. Eros Grau, j. 8/4/2008.
[12] STF, Ag. Rg. Ação Cível Originária 1.208, Relator Ministro GILMAR MENDES, j. 23/11/2017.
[13] STF, ADIN 5.670/AM, Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 11/10/2021.
[14] “Assim, consoante o parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, entendo que tanto o tombamento quanto os demais atos destinados à proteção de patrimônio histórico e cultural dizem respeito a atribuições do Chefe do Poder Executivo. Entendimento, aliás, que já foi adotado pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 1706/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, DJe 12-09-2008). Ressalte-se que o art. 261 da Constituição do Estado de São Paulo atribui a identificação dos bens que serão protegidos como patrimônio histórico-cultural ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. É certo que não há obrigatoriedade de os Municípios instituírem órgão semelhante em sua estrutura. No entanto a previsão constitucional acima aponta para o fato de que é Administração Pública a encarregada de identificar bens que mereçam a proteção como patrimônio cultural. Nesse ponto, a norma entra na seara limitada à iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, conforme arts. 5º, 47, II, XIV 144 da Constituição do Estado de São Paulo, o que implica reconhecer a violação ao princípio da separação dos Poderes.” (TJ/SP, ADIN 2011047-34.2023.8.26.0000, Órgão Especial, Relator Des. Campos Mello, j. 28.06.2023).
[15] “[É] possível a instituição do tombamento de determinado bem por meio de lei; a iniciativa do processo legislativo pertence, concorrentemente, aos Poderes Executivo e Legislativo, nos termos dos artigos 23, III, 24, VII, e 216, da CF, e 261, da CE; e o tombamento possui natureza provisória, de efeito declaratório, o que demanda a ulterior prática de atos administrativos pelo Executivo Local para que o tombamento se converta em definitivo” (TJ/SP, ADIN 2009429-54.2023.8.26.0000, Órgão Especial, Relator Des. Matheus Fontes, j. 31.05.2023).
[16] Vide ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito. In RDA, v. 217, Rio de Janeiro : RT, 1999.