Improbidade administrativa e suspensão dos direitos políticos

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A Lei 14.230/2021 promoveu alterações estruturantes na Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) no sentido de, entre outras medidas, efetivar os princípios constitucionais que limitam o poder sancionador do Estado, além de exigir um efetivo e proporcional cotejo das situações concretas em análise com as sanções abstratas previstas na legislação.[1]

Entre os diversos dispositivos modificados, foi alterada a redação do art. 12, III, da Lei 8.429/1992, para remover a possibilidade de aplicação da severa sanção de suspensão dos direitos políticos em relação aos agentes condenados pelos atos de improbidade menos graves tipificados no art. 11 da lei – que versam sobre os atos que atentem contra os princípios da Administração Pública.

Considerando que, à altura da entrada em vigor da Lei 14.230/2021, havia, em todas as instâncias do Poder Judiciário, ações e recursos discutindo condenações com base em dispositivos alterados e revogados da Lei 8.429/1992, logo surgiram controvérsias na doutrina e jurisprudência acerca da aplicabilidade imediata (ou não) da nova LIA aos processos em curso, sobretudo em condenações sub judice pela via recursal.

Foi, então, que o Supremo Tribunal Federal (STF) pacificou a questão ao julgar, em agosto de 2022, o Tema de repercussão geral 1.199 (RE-RG 843.989/PR), consignando, entre outras teses, que “a nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado”.[2]

No entanto, antes disso, em 1º de outubro de 2021, o STF, por decisão do ministro Gilmar Mendes na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.678/DF, tendo em conta a própria redação original do art. 12, III, da Lei 8.429/1992 (antes das modificações promovidas pela Lei 14.230/2021), já havia determinado, com efeito vinculante e erga omnes, a “suspen[são] [d]a vigência da expressão ‘suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos’ do inciso III do art. 12 da Lei nº. 8.429/1992”.

Ou seja, o STF, desde 2021, já havia deixado claro que não pode subsistir, de nenhuma maneira, nas ações de improbidade administrativa em curso, a aplicação da sanção de suspensão dos direitos políticos quando se está a tratar de condenações pelos atos de improbidade previstos no art. 11 da LIA.

Ao aplicar a decisão do STF na ADI 6.678/DF aos casos concretos sob exame, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive por meio da sua Corte Especial, assentou posicionamento – com todas as vênias, desacertado – no sentido de que a determinação do STF de suspender, em abstrato, a sanção de suspensão dos direitos políticos então prevista no art. 12, III, da LIA, incidiria apenas em relação às condenações posteriores à própria decisão do STF (ou seja, após 1/10/2021).

Essa posição do STJ considerou que os efeitos ex nunc (prospectivos) consignados na decisão do STF diriam respeito ao momento da condenação pelo Poder Judiciário (decisão condenatória), olvidando-se que a modulação promovida pela Suprema Corte se refere ao momento em que sanção de suspensão dos direitos políticos começaria a produzir efeitos – isto é, após o trânsito em julgado, consoante o art. 12, § 9º, da LIA.

Afinal, os processos subjetivos com condenações anteriores a 1º de outubro de 2021, mas pendentes de trânsito em julgado – isto é, com recursos interpostos contra a condenação e pendentes de julgamento na referida data –, poderão ser evidentemente objeto de reexame pelo Poder Judiciário e estão, portanto, abarcados pelos efeitos da decisão do STF.

Assim, o posicionamento do STJ, caso prevalecente, criaria a inusitada situação em que um condenado à suspensão dos seus direitos políticos em virtude de ato tipificado no art. 11 da LIA, embora com recurso pendente contra a sua condenação em 1º.10.2021 e/ou posteriormente a tal data – portanto, ainda sem sofrer os efeitos da sanção àquela altura – teria de suportar a penalidade quando chegado o momento do trânsito em julgado, ainda que o Poder Judiciário tenha reexaminado o seu caso concreto após a decisão vinculante e erga omnes do STF.

O maior exemplo dessa interpretação do STJ que viria a ser superada pelo STF é o acórdão de 25 de abril de 2023, em que a Corte Especial do STJ consignou expressamente que “o provimento […] exarado na ADI 6.678 apenas tem efeitos prospectivos, motivo pelo qual não se aplica[ria] automaticamente aos atos de improbidade administrativa dolosos, ainda que por afronta aos princípios da Administração Pública, nos casos em que a condenação ocorreu anteriormente à mencionada decisão”.[3]

Como se vê, a interpretação do STJ para os efeitos prospectivos da decisão vinculante e erga omnes da ADI 6.678/DF considerava como marco temporal a existência de decisão condenatória, olvidando, contudo, os casos em que a questão permanecia sub judice pela via recursal. Esse mesmo entendimento encontra-se perfilhado em outras decisões do STJ.[4]

Contudo, na sequência dos aludidos posicionamentos do STJ nos processos acima, ambas as Turmas do STF, por unanimidade, pacificaram entendimento em sentido contrário ao do STJ. De acordo com o STF, a decisão proferida na ADI 6.678/DF é aplicável a todos os processos não alcançados pelo trânsito em julgado. Ou seja, independentemente de uma condenação concreta ter sido lançada antes ou depois de 1º de outubro de 2021, a decisão vinculante e erga omnes proferida na ADI deve ser aplicada ao caso subjetivo se a condenação em questão ainda estiver sub judice, ainda que pela via recursal – isto é, a decisão da ADI incide para todos os casos sem trânsito em julgado.

Esse entendimento encontra-se plasmado pela 2ª Turma do STF, que, por unanimidade, aplicou a decisão da ADI 6.678/DF a caso em que a condenação datava de 28 de setembro de 2016, declarando que a sanção apenas incidiria a partir do trânsito em julgado de decisão final do processo.

Nas palavras expressas do ministro relator André Mendonça, “muito embora a decisão reclamada — que determinou a suspensão dos direitos políticos do reclamante por ato de improbidade — tenha sido proferida em 28/9/2016 […], certo é que a aplicação da referida sanção só passaria a ocorrer após o trânsito em julgado da ação” e “considerando que, in casu, o trânsito em julgado ainda não ocorreu, aplicáveis os efeitos da suspensão determinada na tutela cautelar concedida na ADI 6.678/DF”.[5]

Igualmente, ao analisar caso em que a condenação pela instância ordinária datava de 3 de dezembro de 2018, a 1ª Turma do STF, por unanimidade, afirmou a necessidade de aplicação da decisão da ADI no momento do julgamento de recursos que se voltam contra a condenação, ainda que em fase avançada.

Ou seja, também no entendimento desse colegiado, o decisum vinculante e erga omnes da ADI 6.678/DF se aplica a todos os casos não transitados em julgado.[6]

A própria Procuradoria-Geral da República (PGR), no aludido processo, posicionou-se pela aplicação, em concreto, da decisão erga omnes e vinculante da ADI 6.678/DF, consignando que, em sede recursal, a condenação havia sido objeto de reexame em data posterior a 1º de outubro de 2021.[7]

Como se verifica, o STF superou a equivocada interpretação do STJ quanto aos marcos temporais para aplicação da decisão vinculante e erga omnes da ADI 6.678/DF. A Suprema Corte consignou, com acertada exegese acerca das técnicas de julgamento nas ações de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, que os efeitos prospectivos da decisão aludem à verificação do trânsito em julgado (ou não) de decisões finais nos processos concretos em curso, para pacificar que a determinação de “suspen[são] [d]a vigência da expressão ‘suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos’ do inciso III do art. 12 da Lei 8.429/1992” aplica-se a todos os processos subjetivos que não contem com condenações transitadas em julgado.

Espera-se, diante da abalizada explicitação do STF sobre as suas próprias técnicas de julgamento, que o STJ adeque a sua jurisprudência no sentido estabelecido pela Suprema Corte. Cabe ressaltar, nesse contexto, que existem atualmente diversos processos aguardando uma solução pela Vice-Presidência do STJ após a interposição de Recursos Extraordinários pelas respectivas partes, em que se discute a aplicação da decisão na ADI 6.678/DF.[8]

A solução dos casos pendentes mostra-se especialmente relevante considerando a proximidade da eleição municipal de outubro deste ano, com calendário eleitoral já em curso,[9] sendo que muitos desses processos envolvem gestores municipais.[10]

Além disso, mister destacar que o tema envolve direitos fundamentais de estatura constitucional, previstos nos arts. 14 a 16 da Constituição Federal, que abrangem o direito de participação política do cidadão e inclusive o próprio direito ao voto.

A adequação da jurisprudência do STJ à orientação do STF quanto à aplicabilidade da decisão da ADI 6.678/DF ocorrerá em benefício de um sistema de precedentes coeso e coerente, com segurança jurídica, para além de evitar o afogamento do Poder Judiciário com novos recursos ou medidas – especialmente reclamações perante o STF – voltadas a alcançar um resultado que deve ser concretizado de imediato pela instância judicial em que o processo concreto se encontra, seja ela qual for.

[1] Como já se teve a oportunidade de consignar: “A conclusão judicial acerca natureza e da gravidade do ilícito exige que a imputação formulada pela acusação seja: (i) cotejada com o teor das alegações defensivas, (ii) contrastada com as provas colhidas no campo instrutório e, finalmente, (iii) sopesada com os elementos que recaem sobre o contexto dos fatos, a subjetividade do agente e as consequências do seu atuar” (Rafael de Alencar Araripe Carneiro, De Garantista Contramajoritário a Inspirador da Reforma Legislativa: a contribuição de Napoleão Nunes Maia Filho em matéria de improbidade administrativa. In: Atalá Correia e Rafael de Alencar Araripe Carneiro (coord.) Controle da administração pública-desafios e tendências: estudos em homenagem a Napoleão Nunes Maia Filho, São Paulo: Almedina, 2024, p. 111). V. tb.: Rafael de Alencar Araripe Carneiro, A reformulação limitadora do conceito de improbidade administrativa. In: Gilmar Ferreira Mendes e Rafael de Alencar Araripe Carneiro (coord.), Nova lei de improbidade administrativa: inspirações e desafios, São Paulo: Almedina, 2022.

[2] Há, ainda, precedentes, que avançam para tratar da aplicabilidade imediata da nova lei a todos os casos sem o trânsito em julgado, independentemente de versarem sobre dolo ou culpa. Citem-se: STF, ARE 803.568/SP AgR-segundo-EDv-ED, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julg. 22.8.2023; e STF, ARE 1.457.770/SP AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julg. 19.12.2023 (atipicidade superveniente do art. 11 da LIA); STF, ARE 1.465.861/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. 12.4.2024 (novos requisitos para decretação da indisponibilidade de bens).

[3] STJ, EDcl nos EDcl no AgInt no RE nos EDcl no AgInt no AREsp 1.690.084/SP, Rel. Min. Og Fernandes, Corte Especial, julg. 25.4.2023.

[4] Confiram-se: (a) STJ, AREsp 2.439.539/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 29.5.2024; (b) STJ, RE nos EDcl no AgInt no RE nos EDcl no AREsp 1.658.069/SP, Rel. Min. Og Fernandes, julg. 7.8.2023; (c) STJ, AgInt no AREsp 1.749.603/GO, Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. 4.4.2022; e (d) STJ, PET no AREsp 1.553.499, Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. 6.12.2021.

[5] STF, AgR-Rcl 56.567/SP, Rel. Min. André Mendonça, 2ª T., julg. 17.5.2024.

[6] STF, Rcl 66.284/SP AgR-Ref, Rel. Min. Flávio Dino, 1ª T., julg. 22.4.2024.

[7] Parecer da PGR na Rcl 66.284/SP, datado de 3.6.2024.

[8] V. e.g.: AREsp 2.119.837/SP; AREsp 1.563.708/SP; AREsp 2.258.455/RO; e AREsp 1.766.452/SP.

[9] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Janeiro/confira-as-principais-datas-do-ano-eleitoral-de-2024. Acesso em 4.6.2024.

[10] Vide levantamento realizado pelo Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP a respeito de ações de improbidade ajuizadas contra prefeitos: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stj-em-numeros-improbidade-administrativa-06062020. Acesso em 4.6.2024.