Imposto seletivo sobre bebidas alcoólicas

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Ao longo da história, o imposto seletivo (IS) evoluiu de um simples mecanismo de arrecadação para um complexo instrumento de política pública, utilizado para desestimular o consumo de bens e serviços nocivos à saúde ou ao meio ambiente, ou seja, com finalidade extrafiscal.

Foi essa a roupagem a ele conferida no Brasil, por meio do art. 153, VIII, da Constituição Federal, que autoriza a União a cobrar esse imposto para induzir comportamentos de consumo mais saudáveis ou ambientalmente sustentáveis, prestigiando os valores constitucionais universais da saúde (art. 196) e do meio ambiente (art. 225).

Em linha com a referida finalidade e a experiência internacional, o art. 404, §1º, IV do PLP 68/2024, prevê a incidência do imposto seletivo sobre as bebidas alcoólicas. Merece reflexão, porém, o desenho dessa tributação, atualmente prevista no PLP 68 como uma combinação de alíquotas ad valorem e ad rem, em que a parcela ad rem deve considerar o produto do teor alcoólico pelo volume da bebida, nos termos do art. 417, §1º, II do texto substitutivo de 4 de julho de 2024.

A redação proposta prevê claramente a incidência do imposto seletivo de forma proporcional ao teor alcoólico e ao volume da bebida, mas deixa um importante aspecto do desenho da tributação especial em aberto: se as alíquotas serão lineares ou progressivas com base no teor alcoólico. Esse é o foco do debate público atual envolvendo o imposto seletivo sobre bebidas alcoólicas.

Como se verá no presente artigo, sugerimos que tal debate seja orientado pela seguinte reflexão: o que se espera induzir com a tributação especial das bebidas alcoólicas? Como se verá no presente artigo, é a redução do consumo prejudicial de álcool. É essa a premissa que deve nortear o desenho do tributo.

A controvérsia sob debate

Alguns interlocutores defendem que a tributação especial deveria ser uniforme para todas as bebidas, independentemente do seu teor alcoólico, pois “álcool é álcool” e haveria a mesma quantidade de etanol na dose padrão de cerveja, vinho e uísque (14 gramas). De acordo com o que advogam, estaria errado o modelo praticado pelo maior número de democracias no mundo na cobrança do IS, incluindo alguns dos países com as estruturas mais modernas de tributação do consumo, como Austrália e Nova Zelândia.

Neste artigo, de forma aberta e republicana, demonstramos por que essa argumentação está na contramão, a um só tempo, do consenso científico em saúde pública, das evidências empíricas e das recomendações dos organismos internacionais mais relevantes no cenário internacional para o desenho de políticas tributárias.

IS como instrumento para realização de políticas públicas

O imposto seletivo é uma das ferramentas de que os governos dispõem para induzir comportamentos mais saudáveis, de forma complementar ou substitutiva a outras medidas, como ações regulatórias e de conscientização da população.

Sua cobrança sobre bebidas alcoólicas está entre as fontes mais antigas e relevantes de arrecadação tributária, mas a crescente importância do “IVA reduziu consideravelmente a parcela desses impostos na tributação total” (OCDE[1]).

Não significa que o tema esteja perdendo relevância. Pelo contrário, observa-se um crescente interesse dos países “na tributação específica de bebidas alcoólicas nos últimos anos como um meio de influenciar o comportamento do consumidor em linha com as políticas de saúde pública” (OCDE[2]).

Exemplo recente é o do Reino Unido, que, em 2023, reformou seu sistema de tributação especial do consumo e reafirmou o modelo de alíquotas progressivas conforme o teor alcoólico. Em tradução livre da página do governo britânico, a reforma “visa apoiar a saúde pública, incentivar a inovação de produtos e garantir que o sistema de impostos especiais de consumo reflita as práticas modernas de consumo de bebidas[3].

Prejuízos do álcool são maiores conforme a concentração de etanol na bebida

De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), os prejuízos causados pelo álcool estão diretamente relacionados ao volume, à concentração e à velocidade de seu consumo[4].

Essa premissa é suportada por estudos empíricos no sentido de que, quanto maior o teor alcoólico contido na bebida, mais rápida será sua absorção e os efeitos desse consumo, e maior será a tendência à embriaguez e à adicção[5].

Fundada em evidências semelhantes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adota como objetivo geral de saúde pública a redução relativa do consumo total per capita de álcool por ano[6] e recomenda, para tanto, que “bebidas alcoólicas com concentrações mais altas do componente prejudicial – etanol – sejam tributadas a alíquotas mais altas[7].

De acordo com todos esses estudos, a tributação progressiva conforme o teor alcoólico é a medida mais eficaz para atingir o objetivo de redução do consumo de álcool, pois o aumento de carga decorrente da tributação especial focaliza exatamente o ingrediente ativo cujo consumo excessivo se pretende desestimular.

Assim, gera impactos tanto do lado da demanda, como do lado da oferta desses produtos, pois, ao induzir ao consumo de bebidas com menor teor alcoólico, o desenho do imposto seletivo gera incentivos para que fabricantes busquem produzir esses produtos de menor concentração, em linha com o objetivo da OMS de redução do consumo total per capita de álcool por ano.

No mesmo sentido, para a Tax Foundation, “os danos da potência e do consumo de álcool podem aumentar exponencialmente, não linearmente”, de modo que “os impostos sobre o álcool também deveriam aumentar exponencialmente com a potência[8].

É também o que entendem as professoras Rita de La Feria e Vanessa Canado, para as quais, embora a tributação linear seja mais simples, é “menos conectada a uma abordagem de saúde pública”, pois “o sistema progressivo incentivaria o consumo de bebidas alcoólicas com menor teor alcoólico[9].

Outras evidências empíricas

Diversos estudos científicos demonstram que tributar bebidas alcoólicas com base no teor de etanol, o ingrediente ativo responsável pelas consequências adversas do consumo excessivo, pode promover a saúde de forma mais eficaz do que tributar o volume de forma homogênea.

Em estudo publicado no renomado periódico de saúde pública Annual Review of Public Health, por exemplo, Frank Chaloupka, Lisa Powell e Kenneth Warner concluíram que “tributar bebidas alcoólicas com base no teor de etanol, o principal responsável pelas consequências adversas do consumo excessivo, pode promover a saúde de forma mais eficaz do que tributar o volume[10].

Há evidências robustas também de que a Rússia, por meio do aumento da tributação e com a utilização do modelo de tributação progressiva vinculada ao teor alcoólico, incentivou a substituição de bebidas alcoólicas de maior gradação por outras de menor teor alcoólico, com o objetivo de conter as altas taxas de mortalidade relacionadas ao álcool[11].

Nesse país, estudos empíricos constataram que o consumo de altos volumes de destilados com elevado teor de álcool tem impacto muito maior nas taxas de mortalidade do que o mesmo consumo (em volume) de bebidas com menor teor alcoólico[12].

A experiência internacional no uso do seletivo sobre bebidas alcoólicas

A União Europeia determina que seus países-membros adotem a tributação progressiva conforme o teor alcoólico, fixando alíquotas mínimas a serem observadas, conforme as Diretivas 92/83 e 92/84.

Na mesma linha, levantamento recente da OMS evidencia a utilização majoritária da tributação progressiva por teor alcoólico[13]. A título exemplificativo, citamos Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria e, de forma mais próxima ao Brasil, o México.

Austrália[14] e Nova Zelândia[15], países com sistemas modernos de tributação do consumo, também adotam tributação progressiva por teor alcoólico, assim como os Estados Unidos[16], segundo maior consumidor de cerveja no mundo.

As práticas internacionais históricas e mantidas pelos países mesmo após revisões recentes (como o Reino Unido) demonstram que a tributação progressiva por teor alcoólico é o melhor desenho para desestimular o consumo nocivo de bebidas alcoólicas.

Por fim, destaca-se que, conforme esse estudo da OMS, países de alta renda são quase unânimes na adoção do modelo progressivo, e países de renda média estão progressivamente seguindo esse caminho. Países de baixa renda provavelmente adotam medidas lineares por não possuírem recursos para fiscalização adequada. O Brasil, um país de renda média, além de já adotar o modelo progressivo, é reconhecido por possuir uma administração tributária altamente equipada e moderna, frequentemente elogiada por especialistas internacionais, como a professora Rita de La Feria[17].

Brasil não é um outlier no consumo de cerveja

As bebidas alcoólicas no Brasil são tributadas, pelo IPI, progressivamente conforme o teor alcoólico. Também estão sujeitas à seletividade do ICMS. Assim, causou surpresa a afirmação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) de que a tributação com base no teor alcoólico “reduziria significativamente o impacto sobre a cerveja”. Se esse já é o tratamento aplicável aos tributos atualmente orientados pela seletividade, é um sofisma afirmar que a aplicação do mesmo critério ao IS “beneficiaria” a cerveja.

Defensores da tributação linear também alegam que a literatura e a experiência internacional não seriam aplicáveis à realidade brasileira, pois focadas em países-membros da OCDE. Ademais, o consumo elevado de cerveja no Brasil (“90% do consumo de álcool”, conforme o CNS) justificaria a adoção de modelo tributário diferente do predominante nas legislações mais modernas e é majoritariamente recomendado por organismos internacionais.

Essa afirmação não é sustentada pela melhor técnica. Primeiro porque o IS é um tributo extrafiscal, que tem a função de reduzir o consumo de produtos nocivos. Assim, não pode ser cobrado com fins arrecadatórios, em razão do alto volume de operações com determinado produto.

Também deve ser considerado que aplicar alíquotas maiores sobre a cerveja pode provocar um deslocamento do consumo dessa bebida de menor teor para outras com maior teor alcoólico, o que seria prejudicial à saúde pública e contrário às finalidades do imposto, como visto acima. Vale aqui a máxima da economia de que “pessoas reagem a incentivos”, de modo que, se as bebidas de maior teor alcoólico ficarem mais acessíveis, a população pode migrar parte do consumo para elas.

Ademais, nos 33 países da OCDE com informações de consumo de bebidas alcoólicas disponíveis, a cerveja é a bebida alcoólica mais consumida, conforme o já citado relatório Consumption Tax Trends 2022. O México é um dos países com consumo de cerveja superior ao do Brasil e que, ainda assim, adota a tributação progressiva conforme o teor alcoólico, assim como a Colômbia.

Há, ainda, países-membros da OCDE com tradição em produção e consumo de cerveja, como Alemanha, Bélgica e Reino Unido, com tributação progressiva por teor alcoólico, como citado acima. Destaca-se também o exemplo dos Estados Unidos, que tributa dessa forma e é o segundo maior consumidor de cerveja do mundo (22 bilhões de litros ao ano), conforme dados da Tax Foundation[18].

Conclusão geral

Com base nos estudos anteriores e nas evidências empíricas citados no presente artigo, defendemos que o IS sobre bebidas alcoólicas no Brasil seja progressivo conforme o teor alcoólico, com previsão expressa nesse sentido no PLP 68, o que não constou do texto substitutivo da Câmara dos Deputados de 4 de julho de 2024. Esse modelo manterá o país alinhado às já bem-sucedidas práticas internacionais e reforçará o papel do imposto de induzir comportamentos de consumo mais saudáveis, colocando o Brasil na vanguarda da tributação do consumo.

[1] OECD (2022), Consumption Tax Trends 2022: VAT/GST and Excise, Core Design Features and Trends, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/6525a942-en.

[2] Idem à nota 6.

[3] Disponível em https://www.gov.uk/government/publications/reform-of-the-alcohol-duty-system/reform-of-alcohol-duty-rates-and-reliefs#general-description-of-the-measure.

[4] How to design excise tax on alcoholic beverages, disponível em https://www.imf.org/en/Publications/imf-how-to-notes/Issues/2023/12/04/How-To-Design-Excise-Taxes-on-Alcoholic-Beverages-541086

[5] Mitchell MC, Teigen EL, Ramchandani VA. Absorption and peak blood alcohol concentration after drinking beer, wine, or spirits. Alcohol Clin Exp Res. 2014;38(5):1200 1204. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/acer.12355

[6] Disponível em https://cdn.who.int/media/docs/default-source/alcohol/final-text-of-aap-for-layout-and-design-april-2023.pdf?sfvrsn=6c5adb25_2.

[7] Global report on the use of alcohol taxes, 2023, da Organização Mundial da Saúde. Disponível em https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240086104.

[8] Conforme https://taxfoundation.org/research/all/federal/alcohol-tax-modernization-abv-tax/

[9]  Artigo disponível para consulta mediante solicitação à autora e ao autor do presente trabalho.

[10] CHALOUPKA, Frank J.; POWELL, Lisa M.; WARNER, Kenneth E. The use of excise taxes to reduce tobacco, alcohol, and sugary beverage consumption. Annual review of public health, v. 40, p. 187-201, 2019.

[11] Alcohol policy impact case study: the effects of alcohol control measures on mortality and life expectancy in the Russian Federation, disponível em: https://www.who.int/europe/publications/i/item/9789289054379

[12] Idem à nota 12.

[13] Idem à nota 12.

[14] https://www.ato.gov.au/businesses-and-organisations/gst-excise-and-indirect-taxes/excise-on-alcohol/excise-duty-rates-for-alcohol

[15] https://www.customs.govt.nz/about-us/news/important-notices/new-excise-duty-rates-for-alcohol-from-1-july-2023/

[16] https://taxfoundation.org/research/all/federal/alcohol-tax-modernization-abv-tax/#_ftn1 

[17] Transcrição de audiência pública disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2020/03/11/especialista-defende-iva-como-melhor-imposto-para-o-brasil

[18] Disponíveis em https://taxfoundation.org/research/all/federal/alcohol-tax-modernization-abv-tax/#_ftn1.