Importação de ‘modelo Bukele’ para segurança ameaça democracias na América Latina

  • Categoria do post:JOTA

No último dia 18, os ministros da Segurança de El Salvador, Gustavo Villatoro, e da Argentina, Patricia Bullrich, fecharam um acordo para tratar da “luta contra o crime organizado”. Até o momento, não existe a intenção de construir na Argentina uma prisão como o Centro de Confinamento do Terrorismo (Cecot) de El Salvador — o maior presídio da América Latina, com capacidade para 40 mil prisioneiros.

Porém, ainda que o acordo se limite por ora ao estudo de estratégias e ferramentas que possam ajudar a combater a criminalidade no principal vizinho brasileiro, acende-se um sinal de alerta para a construção de um Estado autoritário sob a presidência do ultradireitista Javier Milei capaz de influenciar seus simpatizantes no Brasil, os quais já defendem a implantação de estratégias similares.

O acordo causa espécie pois as taxas de criminalidade na Argentina estão muito abaixo daquelas de El Salvador. Quando Nayib Bukele assumiu o cargo de presidente salvadorenho pela primeira vez, em 2019, a taxa de homicídios era de cerca de 53 para 100 mil habitantes por ano, enquanto na Argentina, a taxa em 2022 era de 4,2 para 100 mil habitantes por ano.

Afastando-se a criminalidade como justificativa para o intercâmbio de políticas públicas, é necessário apontar um outro ponto no acordo entre os países: o “modelo Bukele” de combate à criminalidade — que ecoa o dueto encarceramento em massa e violência policial tão defendido pela direita brasileira — vem se disseminando não só como um conjunto de métodos duros e contraditórios para a contenção da criminalidade, mas também como um parâmetro midiático.

Tal estratégia em El Salvador assegura um personalismo a Bukele, que aos 42 anos está em seu segundo mandato consecutivo como presidente após uma reeleição conquistada com ampla maioria em 2023. Ao longo dos últimos anos, sua imagem foi associada à juventude, ousadia e, principalmente, ao combate duro contra a criminalidade. O custo dessa estratégia foi corromper o sistema democrático de El Salvador, que atravessava seu maior período de estabilidade.

Hoje Bukele controla o Judiciário e o Legislativo, chegando ao ponto de subverter a Constituição e garantir sua reeleição. Enquanto Nicolás Maduro, na Venezuela, e Daniel Ortega, na Nicarágua, valem-se dos mesmos métodos para exercer o poder, mas representam a velha geração de autocratas de postura anti-imperialista cara à esquerda latino-americana, Bukele se coloca como o futuro, o “primeiro ditador millennial”, como ele, ironicamente, se refere a si mesmo, apropriando-se das críticas de seus opositores.

Se mesmo no primeiro mandato Bukele já vinha se tornando um exemplo para políticos de extrema direita latino-americanos, sua reeleição lhe confere credenciais de mito para esse campo político. Sua mega prisão, o Cecot, tornou-se o símbolo máximo de seu governo, atraindo olhares de todo o mundo. Enquanto símbolo, não pôde evitar suas ambiguidades, e a imagem de centenas de homens nus, acorrentados e sentados no chão, inspirou horror a uns e admiração a outros. Entre estes admiradores estão não apenas Bullrich e Milei, mas também Daniel Noboa, presidente do Equador, Antonio Kast (líder da extrema direita no Chile) e até mesmo Xiomara Castro, presidente de Honduras pela Frente Nacional de Resistência Popular, um partido de esquerda.

Prisões arbitrárias, torturas e mortes no sistema prisional: nada disso abala a popularidade de Bukele. O apoio que lhe é franqueado não se limita apenas a governantes e líderes políticos em geral: na Guatemala e em Honduras, cidadãos realizaram passeatas a favor de Bukele e aplaudiram o presidente de El Salvador durante suas visitas. No Chile, ele é o líder internacional mais popular e em 2023 se tornou o líder mundial mais seguido no TikTok, rede social de grande penetração entre os mais jovens.

Sendo a defesa da segurança pública a qualquer custo um dos pilares mais caros da direita hoje, ela assume patamares críticos quando se trata do extremo desse espectro político. Isso porque junto à ideia de “segurança” vem acoplada a de garantia da liberdade para aqueles que se enquadram dentro do vago perfil de “cidadãos de bem”. Ou seja, muitos que compartilham a visão de mundo apresentada pelo “modelo Bukele” consideram que só pode haver liberdade quando se existe segurança e, consequentemente, a liberdade passa a ser exclusiva de um grupo de cidadãos que se encaixa em um modelo subjetivo.

O que parece uma abstração deixa de sê-lo quando o combate à criminalidade não respeita os devidos ritos de investigação e defesa dos denunciados e o motivo de prisão passa a ser não só o envolvimento, mas a própria suspeita. Portanto, é preciso se perguntar quais são os tipos sociais que se enquadram em cada perfil das divisões sociais e imaginárias criadas entre os “cidadãos de bem” e aqueles que não o são.

Em países como o Brasil, este modelo suspeito nos é conhecido e se encaixa naqueles que mais sofrem com a ação das polícias: o homem preto e pobre. O fato de haver desproporcionalidade no enquadramento de jovens negros que portam drogas, geralmente classificados como traficantes perante a lei, enquanto brancos na mesma condição são considerados usuários, deixa nu o conjunto de vieses de fundo racial que uma abordagem fundamentada em lei e ordem a todo custo carrega em si, com consequências deletérias a toda a sociedade.

Outro exemplo de viés está nas mortes empreendidas pela Polícia Militar e, no caso de São Paulo, endossadas pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), herdeiro do bolsonarismo e da direita brasileira em geral para 2026, tal como discutido na última coluna. Isso tudo para não citar a ofensiva liderada pela direita no Congresso Nacional contra usuários de drogas ilícitas e o direito ao aborto: busca-se resolver questões que envolvem a saúde pública por meio de prisões em massa.

Bukele, Milei e simpatizantes avançam, assim, nos limites testados das democracias imberbes da região. Sua defesa da violência como política pública é um alerta para aqueles que defendem o Estado de Direito e a proteção dos direitos de minorias.