Impactos econômicos da descriminalização do aborto

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Em 22 de setembro de 2023, iniciou-se o julgamento virtual da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal (STF), que trata da descriminalização do aborto. Na oportunidade, o voto da ministra e relatora Rosa Weber julgou procedente, em parte, o pedido, “para declarar a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal, em ordem a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas”. Em outras palavras, o voto da relatora foi a favor da descriminalização do aborto realizado até doze semanas.

Embora o julgamento tenha sido suspenso em razão de destaque apresentado pelo ministro Luis Roberto Barroso, o voto da ministra Rosa Weber, já tornado público, mostra as diversas razões pelas quais a criminalização do aborto até doze semanas de gestação seria incompatível com a Constituição Federal.

Para além das questões jurídicas e morais envolvidas, o rico voto da ministra Rosa Weber adianta que há diversos impactos do acesso ao aborto na liberdade econômica das mulheres. Não é sem razão que afirma a ministra que “[c]omo afirmado na audiência pública, o aborto ilegal surge da consciência de que a fecundidade não controlada representa um obstáculo na integração da mulher na sociedade política, econômica e social.”

Considerando que o julgamento prosseguirá, é importante que o Supremo Tribunal Federal esteja atento aos impactos econômicos da manutenção da criminalização do aborto, debate muito presente no atual cenário norte-americano, em que vários economistas se uniram para evitar a superação do famoso precedente Roe v. Wade, ainda que a Suprema Corte norte-americana, mesmo assim, tenha decidido em sentido contrário.

Como já alertava o The Washington Post, na matéria Economists can tell you that restricting abortion access restricts women’s lives[1], enquanto os economistas estiveram silentes quando a Suprema Corte decidiu Roe v. Wade em 1973, houve uma verdadeira mobilização mais recente para que o precedente fosse mantido.

Para entender melhor a extensão da controvérsia, vale a pena ler o interessante artigo What can economic research tell us about the effect of abortion access on women’s lives?, escrito pelas autoras Caitlin Knowles Myers e Morgan Welch[2]. O artigo destina-se a explicar as razões pelas quais, em setembro de 2021, um grupo de 154 distintos economistas, incluindo a atual ganhadora do Prêmio Nobel de Economia Claudia Galdin, ingressaram como amici curiae no caso que pretendia superar Roe v. Wade para mostrar os efeitos econômicos desastrosos daí decorrentes.

Vale ressaltar que, no caso norte-americano, discutia-se a possibilidade de se estabelecer relações causais entre Roe v. Wade e diversos impactos econômicos positivos na vida das mulheres norte-americanas. Nesse sentido, o Estado do Mississipi, parte da ação, insistia no fato de que não haveria relação de causalidade entre a possibilidade do aborto e a capacidade das mulheres de agirem na sociedade, assim como não haveria razão para acreditar que o acesso ao aborto teria moldado a habilidade das mulheres de participar igualmente na vida econômica e social da nação.

Para os economistas que ingressaram como amici curiae na ação, embora a proibição do aborto tenha sempre sido permeada de discussões éticas e morais, é fundamental discutir igualmente os seus impactos econômicos, ou seja, os efeitos causais do acesso ao aborto nas vidas das mulheres e de suas famílias. Para tal propósito, a economia tem muito a mostrar por meio de abordagens metodológicas sofisticadas que tentam separar causalidades e correlações.

Segundo as autoras Caitlin Knowles Myers e Morgan Welch, fortes evidências econômicas mostram como o acesso ao aborto afeta profundamente a vida das mulheres em sua dimensão econômica e social. Nesse sentido, quando Roe v. Wade legalizou o aborto no país, havia 5 estados – Alaska, California, Hawaii, New York e Washington – onde a prática já era permitida. Assim, usando uma metodologia chamada de difference-in-difference-estimation, cientistas compararam as mudanças nos resultados desses estados quando eles liberaram o aborto e depois compararam com as mudanças ocorridas no restante do país a partir de 1973, quando Roe v. Wade legalizou o aborto em escala nacional.

Tais estudos mostraram que a legalização do aborto levou a um declínio entre 4% a 11% da natalidade nos estados e que esses efeitos na fertilidade foram particularmente grandes em adolescentes e mulheres negras, que experimentaram reduções na taxa de natalidade aproximadamente três vezes mais do que do que o restante da população.

As autoras mostram ainda que, para além das pesquisas que demonstram relações causais entre o acesso ao aborto e resultados sobre a saúde das mulheres, há muitos estudos que mostram como a legalização do aborto aumentou a educação das mulheres, a sua participação na força de trabalho e o aumento de prestígio ocupacional. Ademais, muitos estudos apontam que todos esses ganhos foram particularmente grandes para as mulheres negras.

Adicionalmente, há evidências que mostram que o acesso ao aborto não tem apenas efeitos profundos na vida econômica e social das mulheres, mas também nas circunstâncias em que as crianças nascem. Com efeito, a legalização do aborto está relacionada à redução do número de crianças não desejadas, à redução dos casos de negligência e abuso em relação a crianças, à redução do número de crianças que vivem na pobreza e ao aumento dos resultados a longo prazo para toda uma geração de crianças que, tendo sido planejadas ou desejadas, tem maiores possibilidades de frequentar curso superior.

Logo, as pesquisas recentes mostram que, mesmo com maior acesso à contracepção, a acesso ao aborto continua sendo muito relevante para a vida reprodutiva das mulheres, ainda mais diante do fato de que, de acordo com as estatísticas, perto da metade das gestações não são desejadas e uma em cada quatro mulheres recorrem ao aborto em suas vidas reprodutivas.

As autoras lembram também que, no que diz respeito às suas vidas sociais e econômicas, por mais que as mulheres tenham feito grandes progressos em termos de educação, trajetórias de carreira e papel na sociedade, as mães continuam a enfrentar uma série de desafios e penalidades que não são adequadamente endereçadas por políticas públicas. Após o nascimento de uma criança, é bem documentado que as mulheres que trabalham passam a sofrer a chamada motherhood wage penalty, que as leva a ganhar menos do que as mulheres que não são mães. Soma-se a isso o fato de que licenças maternidades podem ser curtas e o acesso a creches e cuidados infantis podem ser muito custosos.

Outros dados preocupantes mostram que, das pacientes de aborto, 49% vivem abaixo da linha de pobreza, 59% já tem filhos e 55% enfrentam um evento disruptivo em sua vida, como a perda do emprego, o fim da relação conjugal ou uma queda em sua renda. Para as autoras, o acesso ao aborto é fundamental para a vida financeira dessas mulheres.

No caso norte-americano, ainda que a superação de Roe v. Wade não proíba que estados possam autorizar o aborto, as autoras consideram que isso não resolve o problema, diante do aumento de obstáculos substanciais para o aborto. Nesse sentido, há evidências de que a distância e o custo de viagens para estados que admitem o aborto são fatores que certamente vão evitar que muitas mulheres consigam ter acesso ao procedimento no tempo devido.

Por todas essas razões, as autoras concluem que décadas de pesquisa, usando rigorosos métodos, apontam para um resultado claro: existe uma relação causal entre o acesso ao aborto e a vida educacional e profissional das mulheres, com impactos diretos sobre seus ganhos e carreiras, assim como sobre os seus filhos.

Consequentemente, concluíram os economistas que é incorreto o argumento do Estado do Mississipi de rejeitar, do ponto de vista causal, a importância do acesso ao aborto para a vida das mulheres. Os economistas já ofereceram claras evidências de que a restrição de acesso ao aborto traz impactos sobre a vida pessoal e econômica das mulheres, assim como de suas crianças e famílias.

Obviamente que tais fatos são trazidos ao debate não para se sustentar que uma questão tão delicada como o aborto seja resolvida apenas pela dimensão econômica. Porém, os impactos econômicos do acesso ao aborto existem e não podem ser negligenciados, ainda mais no Brasil, onde há tantas limitações para as mulheres, especialmente as pobres e negras.

Afinal, um debate desta magnitude precisa considerar que, em nosso país, para além das diferenças salariais entre homens e mulheres, muitas mulheres perdem seus trabalhos após terem filhos[3] e 70% das mulheres relatam dificuldades de se manterem nos empregos após serem mães[4]. No caso da gravidez na adolescência, as dificuldades são ainda maiores[5].

A se ver pela experiência norte-americana das últimas décadas em que o aborto foi descriminalizado em âmbito nacional, há fortes razões para acreditar nos efeitos econômicos positivos que resultariam da descriminalização do aborto no Brasil, assim como para concluir que muitos dos problemas que as mulheres brasileiras enfrentam no mercado de trabalho e em suas vidas econômicas estão relacionados às restrições que sofrem em sua autodeterminação reprodutiva.

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[1] https://www.washingtonpost.com/opinions/2021/11/29/abortion-economics-supreme-court/

[2] https://www.weforum.org/agenda/2022/05/what-can-economic-research-tell-us-about-the-effect-of-abortion-access-on-womens-lives/

[3] https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos

[4] https://www12.senado.leg.br/tv/programas/inclusao/2022/07/mais-de-70-das-mulheres-com-filhos-tem-dificuldades-de-insercao-no-mercado-de-trabalho

[5] Ver, por todos, NARITA, Renata; DIAZ, Maria Dolores Montoya. Teenage motherhood, education, and labor market outcomes of the mother: Evidence from Brazilian data. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1517758016300790