Ilusão fiscal e o excesso de gastos públicos no Brasil

  • Categoria do post:JOTA

O fenômeno da ilusão fiscal acontece quando o contribuinte não tem uma noção exata do total de impostos que paga. Isso pode acontecer porque parte desses impostos é arrecadada sem muita transparência, muitas vezes até de forma dissimulada. Assim, há uma percepção de que se está pagando menos impostos do que efetivamente está sendo pago.

Mas se impostos atrapalham a atividade econômica, desincentivam investimentos e diminuem a eficiência econômica (salvo exceções), não seria desejável que todos pagassem impostos sem perceber? Assim, as firmas não reduziriam seus investimentos e sua produção, os trabalhadores não diminuiriam sua oferta de trabalho, os consumidores não diminuiriam o seu consumo, os proprietários não diminuiriam sua oferta de imóveis para aluguéis, e assim por diante. A tributação não afetaria a economia simplesmente porque os agentes não perceberiam que estão sendo tributados. Não seria esse o mundo ideal?

A resposta é obviamente não. A capacidade de se fazer uma escolha ótima requer informação perfeita. Quando a informação sobre a tributação é imperfeita, o indivíduo é levado a fazer escolhas erradas. Notadamente, nas democracias ocidentais, o tamanho do Estado é uma escolha pública. O eleitor tem percepção do bem-estar gerado pelo provimento dos bens públicos, e do quanto isso custa em impostos. Se ele não percebe parte dos custos, naturalmente vai escolher mais bens públicos.

A presença de ilusão fiscal leva à escolha de mais gasto público e de um Estado maior. Em um livro publicado em 1977 (Democracy in Deficit: The Political Legacy of Lord Keynes), James Buchanan e Richard Wagner argumentam que há ilusão fiscal nos Estados Unidos, e que com isso o gasto público é maior do que seria numa situação em que todos os contribuintes estivessem cientes de seu ônus no financiamento desses gastos.

E no Brasil, há ilusão fiscal? Há evidências apontando que sim. Na realidade, o Estado brasileiro é pródigo em iludir o contribuinte. A começar pela carga tributária concentrada na tributação indireta, que são os impostos sobre o consumo. Esses impostos são por natureza menos transparentes que os impostos diretos. Em texto de 2012 (“Existe Ilusão Fiscal no Brasil?”), Alexandre Manoel e Rozane Siqueira sugerem o uso da razão da arrecadação do imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas como proporção do total da arrecadação federal como medida (da ausência) de ilusão fiscal. Quando essa proporção aumenta no Brasil, reduzindo o grau de ilusão fiscal, o gasto público diminui. Ou seja, quanto maior a tributação sobre a renda e menor a tributação sobre o consumo, mais transparente fica para o indivíduo o ônus do financiamento do gasto público, e mais avesso ele fica a esse gasto.

Na esfera municipal, o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) produz um enorme ilusionismo fiscal. Em Demanda por gastos públicos locais: evidências dos efeitos de ilusão fiscal no Brasil, trabalho publicado em 2016, Jevuks Araújo e Rozane Siqueira mostram que quanto maior é a parcela do FPM e demais transferências na receita de um município, maior é o seu gasto público, controlando-se por outros atributos. Mas por que quando o dinheiro é fácil há menos parcimônia para gastá-lo? Talvez isso seja da própria natureza humana. É como a fábula do sujeito que recebe uma herança, ou ganha na loteria, e gasta tudo de forma irresponsável. A cavalo dado não se olha os dentes, diz o ditado. Ao menos quando se acha que o cavalo é dado.

O ilusionismo fiscal está por toda a parte no Brasil. O caso do cálculo do imposto por dentro do nosso ICMS, uma legítima jaboticaba brasileira, é revelador. No Brasil, quando uma alíquota de ICMS de 20% incide sobre um valor de R$ 80, ela não eleva o preço do bem para o consumidor final apenas para R$ 96 (R$ 80 + 20% de 80, que são 16), mas, sim, para R$ 100. Isso porque os 20% incidem sobre o valor do bem somado ao próprio imposto. Ou seja, são 20% aplicados sobre R$ 80 + R$ 20, o que resulta em R$ 20. Mas R$ 20 são 25% de R$ 80. Ao fazer o imposto incidir sobre ele mesmo, tem-se na realidade uma alíquota de 25%, sob o disfarce de uma alíquota de 20%. Por que não simplesmente cobrar uma alíquota de 25% “por fora”? Será que nesse caso o contribuinte vai se dar conta do peso do imposto e votar por um Estado menor?

Estando o ICMS na base de cálculo dele mesmo, não demorou muito para que surgisse a ideia de adicioná-lo também na base de outros tributos, em uma espécie de “cálculo por dentro cruzado”. O PIS e a Cofins se prestaram muito bem a essa finalidade. Sua arrecadação não precisa ser dividida com estados e municípios, e suas leis não vedam a inclusão do ICMS nas suas bases de cálculo, como acontece no caso de outros impostos. Assim foi feito, até que o STF acabou com a festa da arrecadação criativa. As alíquotas do PIS e da Cofins somadas são 9,25% para a maioria dos bens, mas na prática, com o ICMS na base, arrecada-se o equivalente a uma alíquota em torno de 11%, 12%, a depender do ICMS. Isso porque o ICMS infla artificialmente em torno de 20% a base de cálculo (e a arrecadação) do PIS e da Cofins.

Outro artifício muito utilizado é o não reajuste pleno da inflação sobre as faixas de tributação (ou de isenção) e correspondentes parcelas a deduzir. Sob inflação contínua, tal prática equivale à elevação da alíquota efetiva do imposto.

A Lei 11.945, de 2009, ratificando o determinado na MPV 451, de 2008, definiu cinco alíquotas de imposto de renda sobre os rendimentos mensais da pessoa física, introduzindo as alíquotas de 7,5% e 22,5%, que não existiam. Desde então, as faixas de rendimentos e as parcelas a deduzir foram sendo reajustadas abaixo da inflação. Os valores definidos na norma hoje vigente, dispostas pela Lei 14.663, de 2023, estão apresentadas no quadro abaixo, que compara os valores originais, de 2009, os atuais e aqueles que resultariam, em 2024, do reajuste integral pela inflação:

Conforme mostra a tabela seguinte, o reajuste abaixo da inflação eleva a alíquota efetiva para todas as faixas. E, pior, produzindo um efeito regressivo, com elevação mais pronunciada da alíquota efetiva quanto menor a renda.

O não reajuste dos valores de isenção para venda de ativos (imóveis, ações, veículos e outros) provoca também grande elevação espúria de carga tributária, nesse caso a relativa a ganhos de capital. A Lei 9.250, de 1995, prevê que a venda de imóvel por até R$ 440 mil estará isenta do pagamento de eventual ganho de capital, desde que o contribuinte seja proprietário desse único imóvel e que não tenha feito qualquer outra alienação nos últimos cinco anos. Esse valor nunca foi reajustado, apesar de uma inflação de quase 500% ocorrida desde então.

A Lei 11.196, de 2009, por sua vez, incluiu na Lei 9.250/95 previsão de isenção para ganhos de capital decorrentes da venda de bens não imóveis (principalmente veículos) com valor de até R$ 35 mil e da venda mensal de ações no valor de até R$ 20 mil.

Esses limites, se reajustados plenamente pela inflação decorrida desde sua instituição, equivaleriam a R$ 2,4 milhões para alienação de imóveis; R$ 53,6 mil para venda mensal de ações; e R$ 93,8 mil para venda de veículos. A apuração do ganho de capital para venda de ações e de automóveis não leva em consideração a inflação, de modo que um automóvel vendido por R$ 90 mil em 2024 estará sujeito ao pagamento de tributação, ainda que o valor nem mesmo compense a inflação no período decorrido desde a aquisição. A venda de ações também desconsidera a inflação na apuração do ganho de capital. Ambas as tributações, portanto, estão sendo elevadas ano a ano desde 1995.

Já no caso dos imóveis, o limite de isenção vigente representa apenas 20% do valor original. Para voltar ao seu valor real original teria de ser multiplicado por 5,5. Apesar de haver uma fórmula de cálculo do ganho de capital, previsto no art. 40 da Lei 11.196, de 2005, que leva em consideração a passagem do tempo entre a aquisição e a revenda, a regra do dispositivo não reproduz o impacto da inflação e, por isso, superestima o ganho de capital, em termos reais. É outra fonte de elevação continua e espúria de tributação, mais um mecanismo de ilusão fiscal no Brasil.

Por exemplo, se um imóvel adquirido em janeiro de 2006 por R$ 300 mil for vendido em janeiro de 2024 por R$ 797 mil, que é a exata correção dos R$ 300 mil pela inflação oficial, o ganho de capital apurado segundo a fórmula do art. 40 será de R$ 243 mil, resultando em um imposto de renda espúrio de R$ 36,6 mil (alíquota de 15%). Ademais, se o limite de isenção tivesse sido reajustado para R$ 2,4 milhões, a apuração nem seria necessária, já que a isenção seria automática.

A ilusão fiscal produz um número de efeitos negativos na economia: distorce a percepção da sociedade sobre o custo de suas opções de gasto, e torna a tributação regressiva. Além disso, ela amplia o interesse político de se manter uma postura leniente com a inflação, uma vez que há um ganho espúrio do fisco, que será tanto maior quanto maior for a inflação. A ilusão fiscal é também redutora de bem-estar. Há um nível de gasto público que atende ao legítimo interesse do eleitor mediano brasileiro. Uma hipertrofia nesse gasto leva a perdas de bem-estar social. A falta de transparência tributária no Brasil é causadora de gastos excessivos e, portanto, deveria estar no centro do debate de políticas econômicas.