O ano de 2023 foi marcado por uma sequência de novidades tributárias, sendo a maioria delas desfavoráveis aos contribuintes e motivadas pelo declarado interesse no aumento da arrecadação por parte do Governo.
Nessa tendência, vieram à tona algumas decisões e pronunciamentos por parte da Receita Federal do Brasil (RFB) que não representaram a melhor interpretação da lei tributária. Esse foi o caso da Solução de Consulta COSIT nº 245/2023, publicada no final deste ano, por meio da qual foi negado direito dos contribuintes em matéria sucessória expressamente assegurado pela lei.
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Contextualizando, o art. 23 da Lei nº 9.532/97 prevê que, na sucessão ou doação em antecipação da legítima, os bens ou direitos transferidos podem ser avaliados a valor de mercado ou a valor de custo, conforme declaração de bens do espólio ou doador. Pela primeira opção, a eventual valorização do bem caracterizará ganho de capital do espólio ou doador tributado pelo Imposto sobre a Renda em 15%. Pela segunda, não haverá tributação nesse momento, mas apenas se e quando o herdeiro ou donatário alienar o bem ou direito. Trata-se de uma opção concedida pelo legislador.
Ocorre que, na Solução de Consulta citada, a RFB simplesmente afastou a aplicação dessa regra nos casos de herança de cotas de fundos fechados de investimento. No seu entendimento, a transferência seria uma modalidade de alienação, de modo que a valorização das cotas recebidas pelos herdeiros deveria ser necessariamente tributada como ganho de capital, mediante retenção do imposto pelo administrador do fundo.
Além disso, argumentando que essa regra em benefício do contribuinte fora instituída, na realidade, para evitar a evasão fiscal, a RFB concluiu pela inaplicabilidade da norma ao caso, vez que esse risco não estaria presente na transferência de cotas de fundos, as quais supostamente seriam dotadas de liquidez financeira.
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Em termos práticos, o inventariante, responsável pelo espólio, ou o doador deixaria de ter o direito de avaliar as cotas a valor de custo, tornando-se obrigatória a tributação da sua eventual valorização quando transferidas por herança ou doação em adiantamento da legítima. Além dessa questão temporal, a conclusão da RFB ainda implicaria aumento de tributação. Isso porque a regra do referido art. 23 prevê a incidência do IRPF em 15%, enquanto as normas aplicáveis ao ganho de capital preveem a tributação em alíquotas progressivas, de 15% a 22,5%.
O equívoco da Solução de Consulta COSIT nº 245/2023 está, com muito mais clareza, na instituição de uma exceção, não prevista em lei, que se fundamenta numa suposta finalidade que, segundo a RFB, seria subjacente à regra, imprimindo-lhe uma interpretação restritiva. Trata-se, mais especificamente, de uma redução teológica, na medida em que impõe uma condição que não decorre do sentido possível das palavras empregadas pelo legislador – em violação, portanto, ao art. 108 do CTN, que veda a exigência de tributos baseada em analogia.
Como se sabe, as leis tributárias devem ser interpretadas à luz do princípio constitucional da legalidade, de forma que os contribuintes não podem ser coagidos ao recolhimento de tributo sem respaldo em lei. Logo, se não há regra expressa exigindo o IRPF sobre a valorização de bens transferidos em herança como ganho de capital, não há espaço para que a RFB chegue a essa conclusão. A ilegalidade da cobrança, nessa situação, se torna ainda mais evidente, pois não se trata simplesmente da ausência de previsão legal para a incidência, mas de um verdadeiro direito do contribuinte à eleição da sistemática que melhor lhe convier. Trata-se, em verdade, de autêntica opção fiscal concedida pelo legislador, cuja decisão acaba sendo desrespeitada pela interpretação da RFB.
A exposição de motivos do art. 23 mencionado acima, de fato, declarou que o objetivo da norma é evitar a evasão fiscal, mas nada dispôs acerca de hipóteses que eventualmente estivessem fora desse risco. Permitir que os sucessores avaliem os bens a valor de custo, independentemente da natureza do bem transferido, foi uma escolha do legislador, admitindo a tributação pudesse ocorrer apenas em momento posterior, quando da alienação do bem ou direito pelo herdeiro ou donatário. Nesse caso, foi instituída uma norma ampla, sem exceções, o que também foi uma escolha legislativa.
Diante disso, poderia a RFB, por meio de solução de consulta vinculante, afastar essa escolha, em razão de suposta intenção do legislador não acobertada pelo texto legal? Parece-nos evidente que não, sob pena de clara inconstitucionalidade. Se a regra revelou-se sobreinclusiva, na precisa expressão cunhada por Frederick Schauer, cabe ao Legislativo corrigi-la, e não à RFB por meio de sua interpretação.
Frise-se também que, em nenhum momento, o legislador condicionou a aplicação da regra à liquidez do ativo recebido. Assim, pela norma contida no art. 23, nada impede que bens de alta liquidez sejam avaliados a valor de custo na sucessão. Ainda, esse critério seria envolto de incerteza, pois nada diz acerca do quão líquido um ativo deveria ser para justificar sua tributação antes de um evento crítico – como a liquidação das cotas.
Pensando especificamente nas cotas de fundos fechados, seria correto classificá-las como ativos dotados de liquidez, considerando que não podem ser resgatadas antecipadamente? Fatores como um cenário de desvalorização dos investimentos não poderiam reduzir um eventual mercado secundário, afetando, portanto, a liquidez desses ativos? Novamente, trata-se de um critério problemático e, mais importante, não previsto em lei.
Por fim, também é possível compreender a opção pela avaliação a valor de custo como um benefício fiscal dado ao contribuinte, o que exige interpretação literal da regra, conforme prevê o art. 111 do CTN. E a interpretação literal do citado art. 23 não traz indício algum para a exceção introduzida pela RFB. Assim, também por esse ângulo, a Solução de Consulta nº 245/23 incorre em grave equívoco. Afinal, não cabe ao intérprete construir, criativamente, diferenciações se o texto legal não o fez.
Em síntese, a conclusão manifestada na Solução de Consulta nº 245/23 revela-se bastante questionável e preocupante, especialmente por ter efeito vinculante no âmbito administrativo e adotar argumentos sem amparo legal, além de trazer o risco de afetar a discussão de temas semelhantes.