A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) instituiu uma regra que pode impactar significativamente a equidade de gênero no processo de recrutamento de novos docentes. A regra permite que candidatas gestantes solicitem a suspensão do concurso público por até seis meses após o parto, reconhecendo as demandas físicas e cognitivas envolvidas no processo seletivo como, por exemplo, a preparação em 24 horas de temas de provas sorteados aleatoriamente. Esses esforços são incompatíveis com a condição regular de uma gravidez e do imediato pós-parto.
A norma visa assegurar maior igualdade material entre mulheres e homens em concursos da universidade pública. No entanto, mais do que analisar o conteúdo da regra, é preciso entender como ela tem sido aplicada, na prática. A existência formal de um direito subjetivo não implica, automaticamente, sua efetividade, como se verá por um estudo de caso.
A regra da igualdade e sua aplicação
A efetividade prática dessa regra pode começar a ser explorada por meio da análise do concurso previsto pelo Edital 38/2023 da FD. Esse concurso visa recrutar docente junto ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito (DFD).
O DFD reúne importantes especialistas do Brasil em teoria geral, sociologia, filosofia e história do Direito, que contribuem para construir os cânones dessas disciplinas no país. Particularmente, a teoria geral do Direito é essencial para a análise desse caso, afinal, uma parte importante dela é dedicada à intepretação e à aplicação de uma regra jurídica por tomadores de decisão.
Dentro da FD, a regra integra seu regimento interno (Resolução FDUSP 8150/2021). Ela determina que “havendo candidata regularmente inscrita, que comprove sua condição de gestante, esta terá direito a requerer, até a data de início das provas, a suspensão do concurso por até seis meses após o parto, admitindo-se uma única prorrogação por concurso”.
A instituição foi pioneira em criar essa regra de equidade na USP. A norma destinada a proteger o direito fundamental da gestante é um dos legados da gestão do professor Floriano de Azevedo Marques Neto. Após sua criação por iniciativa da velha e sempre nova academia, o Largo de São Francisco, a Escola de Educação Física e Esporte da USP também adotou a mesma norma (Resolução USP 8543).
A igualdade material entre mulheres e homens é o objetivo de interesse público da regra, que cria um direito líquido e certo para a gestante participante do concurso. Líquido e certo é o direito subjetivo decorrente de fatos incontroversos, expresso de forma clara em norma, exigível de imediato e comprovado por meio de documentos inequívocos. Para seu exercício, não se requer qualquer justificativa por parte da interessada para além da comprovação da gravidez, ou avaliação de mérito por parte da autoridade responsável pela organização do concurso.
No referido processo seletivo, entretanto, o presidente da banca examinadora decidiu por interpretar a norma de forma distinta e avaliar seu mérito, negando os efeitos da regra. Segundo despacho de 8 de dezembro de 2023, as provas do concurso terminariam em noventa dias antes da data prevista para o parto da candidata, o que significa que ela estaria “requerendo um período superior ao concedido por lei para a licença-maternidade da mãe-trabalhadora, que pode entrar em licença maternidade apenas vinte e oito dias antes da data do parto”.
Além de apresentar argumentos estranhos às normas aplicáveis ao concurso público (que integram o Direito Administrativo, e não o Direito do Trabalho), a interpretação do presidente da banca é, segundo a teoria geral do direito, contra legem, ou seja, ela vai de encontro ao texto expresso da regra (também replicada no edital respectivo), contrariando sua própria letra.
A decisão jurídica também sopesa interesses da Administração Pública e faz uma escolha diversa da norma. Segundo o despacho, a FD ficaria “impedida de admitir professor por praticamente todo o ano letivo de 2024,” impactando o ensino. A norma da FD retirou essa discricionariedade de bancas. Ela indica que a proteção do direito fundamental da gestante é de interesse público (e não particular), se sobrepondo a questões administrativas relacionadas à gestão acadêmica.
O Direito Administrativo prevê meios para lidar com a questão (relevante) descrita pelo despacho, sem negar o exercício de direito subjetivo. Ademais, a pesquisa e a extensão universitárias, outros dois pilares da universidade, se constroem em médio e longo prazos, e não com base em imediatismos. Elas dependem de uma seleção rigorosa de docentes, que considere méritos acadêmicos de forma igualitária.
Após envolvimento da Ouvidoria, a diretoria da FD decidiu suspender o concurso. Esse estudo de caso, contudo, parece confirmar que a teoria geral do Direito, construída na prática, tende a reforçar parâmetros discriminatórios em relação ao gênero, com readaptações de cânones da disciplina se o interesse prevalente de eventual banca não é aquele correspondente ao definido pela regra já posta. A prática poderia se configurar enquanto uma teoria geral do Direito discriminatório.
Ainda, importante mencionar que está em debate na Congregação da FD, seu órgão de cúpula, uma proposta para alterar a norma em análise. A proposição quer condicionar o exercício do direito fundamental da gestante a decisões contingentes de bancas – formadas, predominantemente, por presidências masculinas. Esse condicionamento transformará, como visto, o conteúdo da regra em letra morta e, ainda, gerará potencial confronto entre examinadores e candidata, abalando as bases equânimes que devem caracterizar a realização de concursos públicos.
A importância da regra de equidade na FD e na USP
A regra, que garante o direito da mulher gestante, não é acidental. Ela foi criada com base em evidências. Em 2000, a representatividade feminina no quadro docente da FD era de 24%, índice reduzido a meros 17,9% em 2022. Na USP, o índice é de 37,5% em 2022, apresentando um crescimento modesto, de pouco menos de cinco pontos percentuais, quando comparado às duas décadas anteriores (32,9%).
Na FD, o quadro é grave e merece atenção da USP e da sociedade. O Largo de São Francisco reforçou no tempo a desigualdade de gênero entre docentes, dobrando a discrepância em pontos percentuais em relação à comunidade uspiana, entre 2000 (8,9) e 2022 (19,6).
Percentual de docentes mulheres: USP x Faculdade de Direito (2000-2022)
Crédito: Observatório USP Mulheres e Anuários Estatísticos da USP (2023-2021), EGIDA
Se olharmos para a distribuição de mulheres dentro da própria FD, na graduação, a representatividade feminina é de 44%, na pós-graduação é de 42%, e no pós-doutorado é de 35%. Em estudo empírico publicado pela Unesco, Isabelle O. de Campos mostra que a desigualdade de gênero tem sido um problema histórico na FD, que passa pela composição de bancas examinadoras e também pelo reduzido número de candidatas a concursos da instituição, em seus diferentes níveis. A título comparativo, na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, que compartilha o ensino da mesma disciplina na USP, a representatividade feminina docente é de 32,4%, quase o dobro da FD.
Tomados em conjunto, esses dados apontam para a presença de uma desigualdade estrutural, que está inscrita no processo de recrutamento de docentes dentro, especificamente, da FD.
Outro ponto relevante é a intersecção com a desigualdade racial, mas não há dados acessíveis que relacionem gênero e raça. Em 2022, somente 6% de docentes declaram-se não-brancos na USP, e esse dado é de 2% na FD, em nítido contraste com a formação populacional do país.
O direito fundamental da gestante, contudo, torna-se ainda mais relevante considerando a interseccionalidade. Estudos empíricos demonstram que riscos relacionados à gravidez são mais importantes para mulheres negras, inclusive quando consideradas aquelas com alto nível educacional.
Para onde vamos?
A efetividade da inclusão feminina exige que a regra para gestantes também seja sustentada por outros mecanismos de Direito Público. Por exemplo, deveriam ser privilegiadas normas mais eficientes para a contratação temporária de docentes, pós-doutorandos, professores colaboradores, ou a prorrogação de contratos já em curso, para atender às necessidades pontuais de ensino, até a finalização de processo seletivo.
A norma para gestantes também não deveria expor a mulher que decide exercer seu direito. No caso do concurso mencionado, bastidores revelaram comportamentos e discursos de conteúdo discriminatório inaceitáveis numa academia de Direito, que também tendem a impactar a decisão de outras exercerem seu direito no futuro.
Essa norma também não deveria ser a única a buscar igualdade material. A análise de experiências internacionais (aqui e aqui) mostra que o processo seletivo poderia privilegiar metas específicas de recrutamento. Uma das preocupações frequentemente associadas a quotas, é a de que mulheres seriam nomeadas de forma “injusta” em detrimento de candidatos masculinos, supostamente mais qualificados.
No entanto, essa preocupação ignora a realidade subjacente de que mulheres altamente qualificadas enfrentam barreiras sistêmicas e são, de fato, desencorajadas e excluídas da carreira acadêmica. Estudos internacionais revelam que, embora homens tenham maior tendência a deixar o emprego docente atraídos por melhores oportunidades, a principal razão citada por mulheres para abandonar a academia são ambientes de trabalho tóxicos e hostis.
No Brasil, essa realidade não é diferente. Existem obstáculos significativos tanto à entrada como à permanência na carreira acadêmica e os dados estatísticos da USP corroboram essa avaliação.
O debate sobre regras de equidade de gênero na USP vai muito além do ambiente acadêmico e deveria se tornar público, construído junto com a sociedade. Afinal, contribuintes do estado de São Paulo não deveriam subsidiar a formação de quadros da universidade que reforcem a desigualdade da sociedade brasileira.