A sub-representação feminina no Parlamento, contrastando com sua maioria demográfica na sociedade, evidencia uma desigualdade estrutural que compromete a efetividade do princípio da igualdade material na representação política. Essa assimetria resulta de barreiras históricas, institucionais e culturais que dificultam o acesso das mulheres aos espaços de poder.
Em resposta, têm sido propostas ações afirmativas com o intuito de corrigir distorções persistentes e promover uma inclusão mais equitativa, reconhecendo que a igualdade formal de direitos não tem sido suficiente para garantir a paridade substantiva nos processos decisórios.
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À luz da ordem constitucional vigente, a proposta do PLP 112/2021 — que prevê a reserva de 20% das vagas parlamentares para mulheres nas casas legislativas preenchidas pelo sistema proporcional — demanda um exame jurídico rigoroso quanto à sua compatibilidade com os princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito.
Ainda que orientada por um objetivo legítimo de promoção da igualdade de gênero, a medida implica alteração substancial na lógica do sistema proporcional de representação política, ao condicionar a distribuição de assentos parlamentares a critérios identitários previamente fixados.
Nesse contexto, o presente artigo, ao reconhecer a premente necessidade de reformas legislativas que assegurem a maior inclusão da mulher no Parlamento e nos demais espaços de poder, propõe uma análise crítica acerca da adoção da reserva de cadeiras parlamentares como mecanismo de ação afirmativa. A reflexão se volta especialmente para os potenciais impactos dessa medida sobre a dinâmica da representação democrática, buscando compreender suas implicações sob o prisma jurídico, bem como os fundamentos teóricos e os desafios práticos que lhe são inerentes.
Paridade formal versus inclusão substantiva
A reserva de assentos parlamentares a grupos específicos, por interferir diretamente no resultado das eleições, pode configurar afronta ao princípio da soberania popular e à liberdade do voto, previstos no art. 1º, parágrafo único, da Constituição.
Isso porque, diferentemente das cotas de candidaturas, que operam na fase pré-eleitoral e buscam ampliar o acesso de grupos sub-representados ao processo político, a alocação prévia de cadeiras compromete a autodeterminação do eleitor ao limitar, de antemão, os efeitos de sua escolha, convertendo a identidade do candidato em critério vinculante para a alocação das cadeiras parlamentares.[1]
A análise do constitucionalismo comparado revela que os mecanismos voltados à correção da sub-representação política de determinados grupos sociais não são uniformes, tampouco possuem a mesma eficácia ou legitimidade em distintos contextos.[2] Nesse sentido, a noção de que apenas mulheres podem representar mulheres — ou que a representação se dá por identidade — reduz a complexidade do fenômeno político. A proposta parte de uma concepção substancialista da igualdade que tende a identificar representação política com identidade social.
Conforme enfatizado por Hanna Pitkin,[3] a representação política não deve ser concebida como um processo de espelhamento identitário entre representantes e representados, mas como uma relação institucional mediada, pautada na atuação em nome de outrem, com responsabilidade política, prestação de contas e vinculação ao interesse público. Trata-se, portanto, de compreender a representação como um mecanismo institucional de mediação entre sociedade e Estado, e não como mera reprodução simbólica das identidades sociais presentes no corpo eleitoral.
Para ilustrar a complexidade do tema, experiências internacionais indicam que a reserva de cadeiras pode ampliar a presença numérica de mulheres no Parlamento, mas não garantir diversidade sociopolítica ou atuação substantiva. Em países como Ruanda[4], Tunísia[5] e Argentina[6], observou-se a predominância de candidaturas femininas ligadas às elites partidárias, com baixa renovação e exclusão de mulheres de grupos marginalizados. Tais exemplos evidenciam que a paridade formal, sem democratização interna dos partidos, tende a resultar em representação homogênea, distante do pluralismo substantivo.
Democracia intrapartidária e inclusão qualificada
O enfrentamento do déficit de representação feminina no Parlamento brasileiro exige a adoção de medidas que respeitem os marcos constitucionais e preservem a integridade do processo democrático. Em lugar de soluções atípicas, como a reserva compulsória de cadeiras, deve-se priorizar a efetividade dos instrumentos já previstos no ordenamento jurídico, em conformidade com os princípios da igualdade política e da soberania popular.
Uma medida essencial consistiria no incentivo à democracia intrapartidária, com a criação de mecanismos que assegurem alternância de gênero nas listas e promovam a formação política de lideranças femininas. A democratização interna dos partidos é condição indispensável para a renovação dos quadros representativos e para a superação da cultura de exclusão estrutural das mulheres, especialmente daquelas oriundas de segmentos sociais marginalizados. A paridade real não decorre apenas da presença numérica, mas da inclusão qualificada nos espaços decisórios.
Ademais, a instituição de uma reserva de 20% das cadeiras parlamentares para mulheres pode ensejar, como efeito colateral indesejado, a cristalização desse percentual como um limite máximo — e não como um piso mínimo — de participação feminina nos espaços legislativos. Ao operar, na prática, como um teto simbólico, tal mecanismo tende a desincentivar os partidos políticos a fomentar candidaturas femininas para além do patamar legalmente exigido, convertendo-se, paradoxalmente, em fator de contenção da ampliação da representação política das mulheres.[7]
Considerações finais
A mitigação da liberdade do voto e da proporcionalidade eleitoral, em nome de uma correção de resultado baseada na identidade de gênero contraria a estrutura normativa da Constituição de 1988. A promoção da igualdade substantiva exige, antes, o fortalecimento das garantias pré-eleitorais e da democratização dos partidos políticos, e não a intervenção no próprio produto da soberania popular.
É imprescindível reconhecer, em última análise, que a busca pela inclusão de grupos marginalizados não representa uma ameaça ao princípio democrático, mas sim um esforço para fortalecer a democracia ao torná-la mais representativa e responsiva às necessidades de toda a população.
O equilíbrio entre representação igualitária e justiça social, porém, exige que os mecanismos de inclusão sejam projetados e implementados de forma a respeitar os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, sem comprometer a coesão do sistema político.
O debate sobre justiça representativa deve, em ultima análise, superar a oposição simplista entre presença numérica e eficácia substantiva, orientando-se pelo fortalecimento institucional dos mecanismos democráticos de inclusão. Apenas por meio de instrumentos que promovam participação qualificada e respeitem os fundamentos do modelo representativo será possível alcançar uma representação política legítima e plural.
[1] Segundo o Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht) na decisão do caso 2 BvC 62/82, a imposição de quotas fixas no Parlamento representa ingerência indevida na formação livre da vontade política do povo, infringindo o princípio da igualdade do voto e a neutralidade do Estado perante as opções político-partidárias do eleitor. ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal. 2 BvC 62/82, decisão de 15 nov. 1988. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (BVerfGE), v. 82, p. 322.
[2] HTUN, M. (2004). Is gender like ethnicity? The political representation of identity groups. Perspectives on Politics, 2(3), pp. 439-458.
[3] PITKIN, Hanna Fenichel. (1967). The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press, p. 60.
[4] DEVLIN, Claire; ELDER, Clare. (2006). Women in Parliament in Rwanda: The Impact of the Quota System. Stockholm: International IDEA, pp. 22-23.
[5] CHOU, Mark; MURNANE, Emily. (2017). Quota Politics in Tunisia: A Means to an End? Politics & Gender, v. 13, n. 3, pp. 455–482.
[6] FREIDENBERG, Flavia. (2020) ¿Cuánto avanzamos? La representación descriptiva y sustantiva en América Latina. México: FLACSO, pp. 34-36.
[7] Como bem sustenta a colega Laura Pontirolli em seus estudos junto ao Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).