Os inúmeros textos atinentes à reforma tributária introduzida pela Emenda Constitucional 132/2023 são um indicativo das inúmeras controvérsias que giram em torno à matéria, como ilustram os vários textos do professor Fernando Facury Scaff. As argutas críticas da doutrina especializada não devem ser vistas pelos autores do projeto ou pelos responsáveis pela sua votação com desdém ou meramente desconsideradas por com elas não se concordar, mas sim como a oportunidade de se melhorar o projeto de lei e, portanto, a tributação sobre o consumo no Brasil.
Imbuído deste espírito, o autor deste texto pretende suscitar dúvidas quanto ao disposto no art. 27 do PLP 68/2024 e os preceitos do Código Tributário Nacional (CTN). Isto porque o referido art. 27 trata do pagamento do IBS e da CBS[1], podendo gerar dúvidas acerca de como essa norma interage com o disposto no art. 156 do CTN que trata das hipóteses de extinção do crédito tributário.
A primeira questão que surge é justamente se o art. 27 traz novas hipóteses de extinção do crédito tributário, portanto, deveria ser interpretado como um meio específico de extinção do IBS e da CBS, ou se em verdade, o referido artigo limitaria à extinção destes tributos às hipóteses nele prescritas, afastando-se então sua extinção pelas demais hipóteses prescritas no art. 156[2]?
Embora em uma primeira leitura, a primeira das interpretações pareça a mais lógica, a dúvida exsurge da inclusão entre as hipóteses de pagamento prescritas no art. 27 do pagamento pelo sujeito passivo (inciso II). Esse pagamento, em nossa leitura, é aquele de que trata o art. 157 e seguintes do Código Tributário Nacional, o que seriam então as outras hipóteses? Seriam elas meramente expletivas, enquadrando-se sob o guarda-chuva do art. 157 do CTN ou teriam elas inovado de alguma forma no Sistema Tributário Nacional.
Outra hipótese que poderia explicar essa distinção feita no art. 27 do PLP 68/2024 seria a necessidade de separar as hipóteses para fins de imputação de que trata o parágrafo único do artigo. Se for isso, parece que andou mal o autor da proposta. Explico, uma leitura mais detida do dispositivo indica que há uma contradição entre os incisos I e II do parágrafo único.
Como se verifica, o inciso II do caput do art. 27 prescreve o pagamento pelo sujeito passivo, enquanto o inciso V do mesmo artigo estabelece o pagamento pelo responsável! Contudo, como se sabe, nos termos do art. 121 do Código Tributário Nacional, o termo sujeito passivo engloba tanto o contribuinte quanto o responsável. Portanto, a despeito da clara redundância entre o inciso II e o inciso V, o parágrafo único do art. 27 prescreve tratamento diverso para os referidos incisos para fins de imputação do pagamento, em clara contradição, o que deverá ser sanado durante a tramitação do projeto.
De se notar ainda que em seu art. 28 o PLP condiciona a tomada de créditos decorrentes da não cumulatividade ao pagamento, tal como disposto no art. 27, não a autorizando no caso de outras formas de extinção débito, como é caso, por exemplo, da compensação. Nesse cenário, há claro desestímulo à outras formas de extinção do crédito tributário em detrimento do pagamento em dinheiro ou em crédito escritural, não se vislumbrando qualquer razão de ordem constitucional para que se faça a referida distinção.
Recorda-se neste contexto, que ao julgar o REsp 1102577/DF[3], tema repetitivo n. 101, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que “O instituto da denúncia espontânea (art. 138 do CTN) não se aplica nos casos de parcelamento de débito tributário”, admitindo efeitos diversos às hipóteses de extinção do crédito tributário. Desta forma, eventual questionamento da limitação à não cumulatividade decorrente da forma de extinção do crédito teria que ser colocado sob o viés constitucional.
Nesse contexto, lembra-se que a Emenda Constitucional n. 132/2023 estabeleceu expressamente no inc. VIII do art. 156-A que o IBS será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.
E no inc. II do §5º do referido art. 156-A estabeleceu que § 5º Lei complementar disporá sobre o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços.
Uma interpretação do referido dispositivo com a notória promessa de simplificação e fim dos efeitos cumulativos, indica que a não cumulatividade a princípio é plena, excepcionadas as operações de uso e consumo pessoal definidas em Lei Complementar[4]. Além disso, note-se que ainda que a redação do inc. II do §5º do referido art. 156-A leve a crer que o Legislador Complementar quem definirá o destino da não cumulatividade, nele há ao menos um limite: quando consigna que haverá hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento, o dispositivo condicional requer que essa não será a única regra, devendo existir hipóteses em que o aproveitamento não demanda o efetivo recolhimento.
De forma que o PLP 68/2024 tal como proposto hoje parece violar frontalmente a redação da EC 132/2023, na medida em que não indica hipóteses em que o creditamento não dependa do efetivo recolhimento, restringindo-se de maneira demasiada o princípio da não cumulatividade. De se registrar que embora aparentemente evidente a inconstitucionalidade deste regramento, inúmeros questionamentos dos contribuintes embasados no princípio da não cumulatividade restaram infrutíferos no âmbito do STF, como ilustra o tema 756[5].
Por fim, importa consignar que a possibilidade de o adquirente realizar o pagamento não resolve o questionamento, pois faz depender o creditamento de efetiva disponibilidade de caixa do contribuinte, gerando discriminação sem fundamento constitucional legitimamente aceito, além de potencial violação ao princípio da livre concorrência.
Neste momento em que o Projeto de Lei Complementar ainda está em tramitação, espera-se que o poder legislativo possa esclarecer tais questionamentos, veiculando normativo com maior segurança jurídica aos contribuintes e com menor potencial gerador de contencioso tributário.
[1] Art. 27. O IBS e a CBS incidentes sobre operações com bens ou serviços serão pagos mediante: I – compensação com créditos, respectivamente, de IBS e de CBS apropriados pelo sujeito passivo, nos termos dos arts. 28 a 37 e das demais disposições desta Lei Complementar; II – pagamento pelo sujeito passivo; III – recolhimento na liquidação financeira da operação (split payment), nos termos dos arts. 50 e 51; IV – recolhimento pelo adquirente, nos termos do art. 52; ou V – recolhimento por aquele a quem esta Lei Complementar atribuir responsabilidade. Parágrafo único. O pagamento de que trata este artigo: I – nas hipóteses dos incisos I e II do caput, será imputada aos valores não pagos do IBS e da CBS incidentes sobre as operações ocorridas no período de apuração na ordem cronológica de emissão do documento fiscal; e II – nas hipóteses dos incisos III, IV e V do caput, será vinculada à respectiva operação.
[2] Art. 156. Extinguem o crédito tributário: I – o pagamento; II – a compensação; III – a transação; IV – remissão; V – a prescrição e a decadência; VI – a conversão de depósito em renda; VII – o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§ 1º e 4º; VIII – a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do artigo 164; IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; X – a decisão judicial passada em julgado. XI – a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei. Parágrafo único. A lei disporá quanto aos efeitos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior verificação da irregularidade da sua constituição, observado o disposto nos artigos 144 e 149.
[3] TRIBUTÁRIO. PARCELAMENTO DE DÉBITO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. INAPLICABILIDADE. RECURSO REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. 1. O instituto da denúncia espontânea (art. 138 do CTN) não se aplica nos casos de parcelamento de débito tributário. 2. Recurso Especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ. (REsp n. 1.102.577/DF, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 22/4/2009, DJe de 18/5/2009.)
[4] Vide art. 29 do PLP 68/2024.
[5] Teses fixadas para o Tema nº 756: “I. O legislador ordinário possui autonomia para disciplinar a não cumulatividade a que se refere o art. 195, § 12, da Constituição, respeitados os demais preceitos constitucionais, como a matriz constitucional da contribuição ao PIS e da COFINS e os princípios da razoabilidade, da isonomia, da livre concorrência e da proteção à confiança; II. É infraconstitucional, a ela se aplicando os efeitos da ausência de repercussão geral, a discussão sobre a expressão insumo presente no art. 3º, inciso II, das Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03 e sobre a compatibilidade com essas leis das IN SRF nºs 247/02 (considerada a atualização pela IN SRF nº 358/03) e 404/04. III. É constitucional o § 3º do art. 31 da Lei nº 10.865/04”. (RE 841979, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 28-11-2022, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n DIVULG 08-02-2023 PUBLIC 09-02-2023)