A inteligência artificial é o novo hype da economia mundial. E mesmo assim, apesar dos grotescos investimentos feitos por todas as big techs e por fundos de venture capital, há um custo escondido por trás dessa revolução tecnológica, que acaba desacelerando sua escalabilidade e afetando conceitos de soberania nacional: o consumo massivo de água.
O processamento intensivo de dados que viabiliza a inteligência artificial generativa depende de vastos data centers equipados com milhares de processadores trabalhando simultaneamente. Essa operação gera calor extremo, exigindo sistemas de resfriamento industrial que consomem volumes extraordinários de água – frequentemente milhões de litros por dia em uma única instalação.
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Os números são impressionantes. O treinamento do GPT-3, um dos modelos de linguagem mais conhecidos, consumiu aproximadamente 700 mil litros de água[1]. Para colocar isso em perspectiva, é água suficiente para abastecer uma família de quatro pessoas por mais de dois anos. Quando multiplicamos isso pelos milhares de modelos sendo treinados simultaneamente ao redor do mundo, o impacto se mostra colossal.
Cada consulta ao ChatGPT, cada meme gerado pelo Dall-E, cada linha de código produzida pelo GitHub Copilot representa não apenas eletricidade consumida, mas também litros de água evaporados para manter os servidores em temperatura operacional.
Essa demanda hídrica, muitas vezes invisível ao usuário final, está transformando a água em um recurso estratégico tão crucial quanto os semicondutores para a economia digital. Como proteger nossos recursos hídricos diante da crescente demanda por infraestrutura digital? Esta não é apenas uma questão ambiental – e não é esse o objetivo desse texto, deixemos o ESG para quem entende disso –, mas uma questão de soberania nacional.
O Brasil detém aproximadamente 12% da água doce disponível no planeta. Somos a maior potência hídrica mundial, com recursos que se tornam cada vez mais estratégicos numa era onde a água se torna tão valiosa quanto o petróleo foi no século 20. Diante da expansão acelerada da IA e sua sede por recursos hídricos, é importante que pensemos como sociedade de qual maneira possamos proteger (e também monetizar!) este ativo nacional estratégico.
O Chile oferece um exemplo dramático do que pode acontecer quando não planejamos adequadamente. A região de Santiago enfrenta uma seca histórica há mais de uma década. Mesmo assim, grandes empresas de tecnologia instalaram data centers na região, criando pressão adicional sobre recursos já escassos. A pressão popular forçou algumas empresas a mudarem para tecnologias de resfriamento a ar, mais caras mas menos intensivas em água[2].
Na Espanha, a região de Aragón vive um conflito aberto entre agricultores e a Amazon. Os data centers da empresa consomem mais de 755 mil metros cúbicos de água por ano – volume suficiente para irrigar milhares de hectares de cultivo. Os agricultores locais protestam contra o que veem como uma competição desleal por um recurso essencial para sua sobrevivência econômica[3].
Imagine cenários futuros em que comunidades inteiras precisem se deslocar porque a água local foi direcionada para alimentar algoritmos. Ou onde o custo da água aumente exponencialmente porque a demanda digital superou a oferta natural. Estes não são cenários de ficção científica – são possibilidades reais que já começam a se materializar em diversas partes do mundo.
A água está se comportando como outras commodities estratégicas do passado. Assim como o controle do petróleo definiu geopolíticas no século 20, e como minerais raros definem disputas tecnológicas hoje, a água será um ativo geopolítico central no século 21. Historicamente o Brasil se posiciona como (i) grande exportador de commodities – soja, minério de ferro, petróleo; e (ii) mercado importador de produtos industrializados de alto valor agregado.
A questão da água, no entanto, precisa ser encarada como uma oportunidade única de transformar abundância natural em poder geopolítico e tecnológico. O Brasil não pode se fechar para as grandes corporações detentoras da tecnologia da IA, mas pode exigir, como contrapartida para aqueles que explorarem sua água, o compartilhamento da tecnologia, em prol do desenvolvimento nacional, tal qual ocorre nas grandes transações comerciais no segmento da indústria bélica. O Brasil não pode ser apenas espectador desta transformação.
Na era da IA, quem controla a água controla uma parte significativa da infraestrutura digital mundial. O conceito de soberania nacional precisa ser repensado para a era digital. Não basta ter autonomia tecnológica se não tivermos controle sobre os recursos que alimentam essa tecnologia. Da mesma forma, não adianta proteger nossas reservas hídricas se não conseguirmos desenvolver nossa própria capacidade em IA.
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A soberania digital e a soberania hídrica são duas faces da mesma moeda. O Brasil precisa estabelecer políticas públicas que reconheçam essa conexão e criem instrumentos integrados de proteção. O tempo é urgente. Enquanto debatemos, outros países avançam e nossa janela de oportunidade se fechará.
A água é a vantagem competitiva natural que pode alçar o Brasil a um patamar geopolítico nunca antes vivenciado. O futuro da soberania brasileira pode estar fluindo pelos canos dos data centers que permitiremos instalar hoje. E somente o direito e a regulação adequada poderão colocar o Brasil nesse trilho.
[1] ZHAO, Shaolei. Making AI less ‘thirsty’: Uncovering and addressing the secret water footprint of AI models. Communications of the ACM, New York, v. 68, n. 6, p. 26-28, jun. 2025. DOI: https://doi.org/10.1145/3724499
[2] THE INTERCEPT BRASIL. Grupo de vizinhos venceu Google e barrou data center no Chile. The Intercept Brasil, 14 jul. 2025. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2025/07/14/grupo-vizinhos-venceu-google-barrou-data-center-chile/
[3] ISTOÉ DINHEIRO. Região espanhola de Aragão se torna oásis europeu para centros de dados. IstoÉ Dinheiro, [s. l.], 2025. Disponível em: https://istoedinheiro.com.br/regiao-espanhola-de-aragon-se-torna-oasis-europeu-para-centros-de-dados