O diálogo não é propriamente uma virtude nacional. É o que se vê, com a força de evidência, a partir do burburinho ruidoso (e, em muitos aspectos, improdutivo) que cerca o PL 4/2025, que visa à reforma do Código Civil.
A objetividade necessária ao enfrentamento de importantes questões jurídicas cedeu espaço ao teatro das paixões: de um lado, despontam os aguerridos defensores da reforma; de outro, seus opositores resolutos. Todos, irredutíveis. Além da indisposição à composição de ideias, críticos e defensores da reforma parecem ignorar a importância da história do direito privado brasileiro como fator de enriquecimento metodológico de suas discussões.
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Acontece que, no caso de um empreendimento legislativo da envergadura do PL 4/2025, recorrer à história do direito privado brasileiro é etapa crucial. Para além dos estudos que considerem aspectos históricos particulares (que podem revelar avanços e involuções em institutos jurídicos específicos), considerado em si, o tema da codificação do direito civil – o que abarca a grande reforma em curso – têm o condão de trazer à luz questões elementares da cultura jurídica privatista.
Esse é o caso da temática acerca das fontes do direito civil, isto é, das instâncias legitimadas à criação de direito. Neste particular, inserem-se, por exemplo, os temas da função de leis extravagantes na regulamentação de matérias específicas e da atividade dos juízes na integração e complementação do direito.
De fato, a polifonia das fontes de direito é um dos grandes desafios dos privatistas. Isso decorre, entre outros fatores, da ampla liberdade conferida, neste âmbito, tanto aos particulares quanto aos tribunais para criar direito (respectivamente, por meio de contratos e de decisões judiciais baseadas em critérios de equidade). Regulamentações específicas, empreendidas por meio de leis extravagantes, assim como o grande peso conferido às opiniões dos juristas (“doutrina”) na compreensão do sentido de legalidade, também contribuem para deixar esse cenário ainda mais complexo.
Guardado o devido distanciamento histórico, vale lembrar que, no Brasil, desde a “Consolidação das Leis Civis”, empreendimento operado por Teixeira de Freitas (1816-1883) na segunda metade do século 19, a ideia era esta – fazer com que o direito civil deixasse de ser, para usar livremente das palavras de Clovis Bevilaqua (1859-1944), principal responsável pela elaboração do Código de 1916, um “emaranhado cipoal”.
Embora as mudanças propostas no PL 4/2025 em muitos aspectos excedam as raias da simples compatibilização do texto de lei com os costumes e precedentes judiciais (a exemplo da exclusão do cônjuge do rol dos herdeiros necessários), um de seus argumentos legitimadores é o (suposto) incremento da segurança jurídica por meio da alteração do texto do código.
Além da polifonia das fontes, outro argumento comumente trazido à discussão pelos defensores de grandes reformas (ou novas codificações) é o de que determinado código se tornou obsoleto vis-à-vis as transformações sociais. Miguel Reale, a fim de justificar a substituição do Código de 1916, em entrevista concedida a Tercio Sampaio Ferraz Jr. e publicada no Jornal da Tarde em 1983, observava que o Código Civil de então não havia acompanhado o desenvolvimento econômico do país. Logo, seria necessário substituí-lo – o que, de fato, veio a acontecer apenas no início dos anos 2000.
Para lembrar das considerações metodológicas do historiador Paolo Grossi em O ponto e a linha. História do direito e direito positivo na formação do jurista do nosso tempo (1988), buscando conferir ao PL 4/2025 um sentido histórico mais amplo, não é difícil perceber que, no Brasil, nos últimos dois séculos a aposta formalista não apenas prevaleceu, como ganhou novos contornos.
Esse traço de nossa cultura jurídica tende a depositar no “momento codificador” e de “feitura da lei” todas as esperanças para que alterações substantivas no sentido do direito sejam empreendidas. A ideia é a de que grandes transformações na lei (em sentido estrito) seriam cruciais para modificar o sentido da legalidade vigente.
Para ficarmos com uma instância ainda estatal, cumpre notar que os tribunais brasileiros vêm exercendo um papel central na produção da normatividade privatista, a ponto de o STF ter, recentemente, ido na contramão do sentido literal do art. 1.641, II, do nosso Código Civil, para autorizar que pessoas maiores de 70 anos optem por não se casar sob o regime da separação obrigatória de bens (ARE 1.309.642 – Tema 1.236). Poderíamos mencionar ainda os famosos enunciados das Jornadas de Direito Civil, que influenciam diretamente a formação de nossa cultura de direito privado.
Não cabe, enquanto proposta de compreensão histórica de um fenômeno, julgá-lo. Perceba-se, não obstante, que, em matéria de legalidade e estabilização do direito, o Brasil enfrenta um paradoxo secular, que está, quando muito, sendo apenas considerado marginalmente por defensores e críticos da reforma do código.
De um lado, existe entre nós uma aposta formalista (na codificação e em reformas na legislação). De outro, uma inclinação antiformalista real, que tende a compreender o direito como produto de múltiplas fontes criadoras de normatividade. Daí alguém poder perguntar-se, por exemplo, se no Brasil “a lei tem o condão de mudar a lei” ou, no caso em questão, se “a proposta de reforma do Código Civil mudará o código”. Dada a realidade pretoriana do nosso direito privado, essas indagações não são um contrassenso.
Codificações não são dados da natureza, autorrealizáveis. Baseiam-se em premissas discursivas e políticas cujas origens podem ser rastreadas. Qualquer codificação, além de ser uma tentativa de controle da criação do direito, aposta na permanência do sentido de legalidade nela plasmado. Indo um pouco além do contexto brasileiro, a literatura histórica especializada tende a associar a mentalidade codificadora às propostas iluministas e aos processos históricos do final do século 18 e começo do século 19 – com especial destaque para a Revolução Francesa e o seu famoso produto jurídico – o Código Civil napoleônico de 1804. Vale mencionar que, à época, o próprio Código Civil napoleônico representou uma tentativa política de monopolização e centralização do sentido do direito privado.
Em contrapartida, até mesmo em função do referido quadrante histórico em que surgem os projetos de codificação na Europa e de sua mentalidade motivadora (ascensão e legitimação do estado burguês monopolista da legalidade), importantes autores dedicados à história do direito, como Paolo Grossi, António Manuel Hespanha e Antonio Padoa-Schioppa, destacaram, cada qual à sua maneira, a falha metodológica em se conferir, como dado universal, tamanha centralidade à lei escrita na produção de sentido da normatividade. Como argumentei, a questão assume contornos específicos no Brasil, cujo conflito entre formalismo (como projeto) e antiformalismo (como realidade) está longe de ser superado.
Como se vê, o PL 4/2025 tem o potencial de trazer à tona questões mais profundas sobre as complexidades envolvendo a cultura jurídica privatista no Brasil. Defensores e críticos da reforma deveriam chamar os historiadores do direito privado para a roda de conversa, de modo a transcender o clima de “tudo ou nada” que tem inspirado a opinião pública sobre o tema nas últimas semanas.