Há algo de muito certo no reino da Dinamarca

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Assim como os brinquedos Lego originados na cidade dinamarquesa de Billund permitem que, peça por peça, se construa um carro de Fórmula 1, um castelo como o Taj Mahal ou até mesmo a nave mais veloz da galáxia, a Millennium Falcon, a Dinamarca tem estruturado, nos últimos anos, um engenhoso sistema de contratações públicas na área da saúde, caracterizado por dois componentes principais.

O primeiro é a AMGROS, uma empresa público-privada de propriedade das cinco regiões dinamarquesas (Dinamarca do Sul, Jutlândia Central, Jutlândia do Norte, Região da Capital e Zelândia) que opera como um marketplace eletrônico centralizado em um único ente estatal. O segundo é a SKI (Statens og Kommunernes Indkøbsservice A/S), que atua na modelagem de e-procurement para contratações públicas de forma mais amplificada no âmbito da compra de bens e prestação de serviços.

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Nessa esteira, tem-se no território dinamarquês a prevalência de um sistema misto para aquisições públicas ora marketplace, ora e-procurement modelagem essa que também se almeja no âmbito brasileiro com a edição proposta pelo PL 2133/2023 com a previsão normativa do CIX.

Diante desse potencial destino semelhante em terras brasilis torna-se relevante pesquisar até que ponto a Dinamarca tem conseguido coadunar tais modelagens e se é efetivamente proveitosa no âmbito da eficiência governamental no âmbito das compras públicas atreladas à saúde pública.

Em números segundo Gisela Hostenkamp, pesquisadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade da Dinamarca do Sul, o Sistema AMGROS é responsável pela aquisição de quase toda a totalidade (98%) de todos os medicamentos fornecidos aos hospitais públicos no território dinamarquês. Só no exercício fiscal de 2024 o custo de aquisição de medicamentos hospitalares ultrapassou a marca de DKK 10 bilhões (R$ 8,54 bilhões), um aumento de 8% em comparação aos DKK 9,4 bilhões em 2023 (R$ 8,03 bilhões).

O mecanismo que torna a AMGROS tão significativa tem por base o desenvolvimento do LEVPortal, plataforma que automatiza o processo de procurement permitindo que incorpora funcionalidades técnicas avançadas que incluem comunicação eletrônica integral. Assim, todos os pedidos das farmácias hospitalares são transmitidos eletronicamente via AMGROS para os fornecedores, eliminando processos manuais e reduzindo significativamente o tempo de processamento.

Somado a isso o sistema oferece transparência pública total do processo competitivo entre fornecedores, com auditoria completa de todas as transações. Ante a automação a redução de erros é significativa eliminando erros manuais e negociações presenciais demoradas, ou seja, ao falarmos em LevPortal estamos falando da efetiva criação de um PNCP (Portal Nacional das Contratações Públicas), conforme o previsto no art.174 da Lei 14.133 de 2021, mas especializado na saúde pública e na compra de medicamentos.

A outra peça fundamental no Lego das aquisições públicas dinamarquesas é o efetivo PNCP geral dinamarquês, o Portal Nacional Udbud.dk, operacionalizado e fiscalizado pelo equivalente ao Cade dinamarquês, o Konkurrence-OG Forbrugerstyrelsen. A sistemática desse portal se assemelha à dinâmica dos acordos-quadro (rammeaftaler). Eles constituem o mecanismo central de funcionamento do sistema SKI, operando como contratos guarda-chuva que estabelecem termos, condições e preços para categorias específicas de bens e serviços por períodos de até quatro anos.

O SKI gerencia aproximadamente 40 a 45 acordos-quadro ativos divididos em 15 categorias principais de produtos, incluindo TI, comunicação, móveis, energia e serviços especializados. Estes acordos funcionam como instrumentos de pré-qualificação que permitem às autoridades públicas dinamarquesas selecionar (call off) contratos específicos sem necessidade de conduzir novos processos licitatórios completos, criando eficiência operacional significativa.

O sistema é voluntário para municípios e regiões, mas oferece acesso facilitado a mais de mil organizações dinamarquesas que podem utilizar os contratos estabelecidos pela SKI.

Já no Portal Nacional Udbud.dk a operacionalização se dá de outra forma. Quando uma autoridade pública necessita de bens ou serviços cobertos por um acordo-quadro existente, ela pode realizar miniconcorrências entre os fornecedores pré-qualificados no acordo.

O portal facilita este processo através de funcionalidades como sistemas dinâmicos de aquisição (DPS), particularmente evidenciado no SKI 02.06 (software padrão), que permite a adesão contínua de novos fornecedores sem limitação temporal rígida.

Diferentemente dos acordos-quadro tradicionais, o DPS oferece maior flexibilidade ao permitir que fornecedores se cadastrem continuamente e autoridades públicas adquiram suítes de aplicações que atravessam diferentes áreas de serviço, superando as limitações das “caixas” predeterminadas dos acordos convencionais. Esta arquitetura híbrida – combinando acordos-quadro estruturados com sistemas dinâmicos flexíveis – permite ao SKI processar eficientemente os DKK 12,7 bilhões anuais em compras públicas.

A digitalização completa implementada pela Dinamarca nos últimos anos estabeleceu o país como pioneiro mundial em procurement eletrônico, principalmente levando em conta que o sistema AMGROS já existe desde 1990

Ao longo das últimas décadas tem-se consolidado um ecossistema tecnológico integrado que abrange invoicing eletrônico obrigatório desde 2005 através da rede europeia PEPPOL e a plataforma nacional NemHandel, processando 99% das faturas B2G em formato eletrônico.

Além disso, o sistema incorpora e-catalogs e e-orders (suspensos temporariamente em 2021, mas com implementação planejada), enquanto o LEVPortal do AMGROS utiliza certificados eletrônicos integrados com o ESPD (European Single Procurement Document) para automatizar declarações de conformidade regulatória alinhadas com o Direito da União Europeia.

O Portal Nacional Udbud.dk oferece compatibilidade móvel completa através de aplicativo que permite busca de licitações via smartphone, enquanto integra e-CERTIS para mapeamento transfronteiriço de certificados necessários em procedimentos de contratação pública.

A infraestrutura utiliza padrões OIOUBL (formato nacional dinamarquês) em conjunto com PEPPOL BIS Billing 3.0, garantindo interoperabilidade total com sistemas europeus, e incorpora Lei de Contabilidade Digital de 2022, que obrigou uso de Sistemas de Contabilidade Digital (DBS) certificados com conformidade total exigida até janeiro de 2026, criando um ecossistema digital abrangente que processa anualmente DKK 424 bilhões em contratações públicas com transparência, eficiência e redução de custos operacionais.

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O sistema dinamarquês de contratações públicas à moda Lego com suas duas peças (AMGROS e SKI) oferece lições cruciais para a proposta brasileira, pois evidencia a possibilidade da criação de um sistema geral automatizado e de um sistema especializado no âmbito da saúde pública

É algo parecido com o que está em discussão no Congresso Nacional com o CIX (Sistema de Compra Instantânea) proposto no PL 2133, especialmente no âmbito da eficiência operacional e no desenvolvimento de sistemas eletrônicos avançados que elevam a capacidade de transparência das contratações públicas.

O modelo LEVPortal do AMGROS e os acordos-quadro dinâmicos do SKI demonstram como a digitalização completa incluindo e-invoicing obrigatório via PEPPOL, e-catalogs, certificados eletrônicos e compatibilidade móvel podem processar R$ 370 bilhões em contratações com transparência total e economias de 49% sobre preços de lista.