Quando o livro Guerra pela eternidade, do estadunidense Benjamin Teitelbaum, foi publicado no Brasil, ainda em meio à pandemia de Covid-19, Olavo de Carvalho foi apontado como o “guru” do bolsonarismo. Olavo seria então parte de um complexo ideológico ainda pouco explorado pelos pesquisadores: intelectuais místicos alinhados a uma corrente conhecida como “tradicionalismo esotérico” orientavam importantes líderes da extrema direita mundial, dentre eles Steve Bannon, guru de Donald Trump, e Aleksandr Dugin, o de Vladimir Putin.
Menos que uma narrativa própria de teorias da conspiração, na qual esses intelectuais místicos atuavam de maneira coordenada para controlar o mundo e corroer os valores da modernidade, o que Teitelbaum nos apresenta são atuações pontuais e até mesmo antagônicas que são tecidas através de um jogo de interesses – no mais das vezes, não explícitos – entre tais “gurus” e os líderes políticos com os quais colaboram. Não seriam, portanto, colaborações inextricavelmente orgânicas, mas antes alinhamentos circunstanciais.
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Olavo faleceu em janeiro de 2022 e desde então discussões surgiram sobre quem ocuparia o lugar de guia intelectual do bolsonarismo. A história é complexa e deve-se evitar a tentação das simplificações. Olavo provavelmente continuará sendo uma das maiores referências para a extrema direita brasileira, como se pode perceber pela frequência na qual é mencionado por personagens importantes desse segmento político.
Porém, os áudios divulgados na última semana pela imprensa, como parte de uma investigação executada pela Polícia Federal, revelam – bem como o documentário Apocalipse nos trópicos, de Petra Costa – a centralidade de Silas Malafaia nas decisões políticas de Jair Bolsonaro.
Tudo indica que o pastor evangélico atue de forma ainda mais direta que Olavo ao influenciar o ex-presidente. Se a relação entre Malafaia e Bolsonaro não pode ser considerada uma novidade, o que tanto Apocalipse quanto os áudios publicizados colocam em evidência é o modus operandi do pastor, a maneira como ele coordena e instrui, seja determinados setores do campo evangélico, seja o próprio Jair Bolsonaro e seus familiares.
Em suas conversas, nota-se um Bolsonaro inseguro e hesitante, aguardando e escutando novas orientações de seu Malafaia – uma imagem muito distante daquela que o ex-presidente procura demonstrar para o público: a de um valentão corajoso e obstinado. Malafaia também parece gozar de muita liberdade em meio à família Bolsonaro: repreende os filhos do ex-presidente, opina sobre as atuações de seus membros e apresenta opiniões de caráter conclusivo sobre a importância e o lugar de cada um deles no jogo político.
Outro ponto perpassa a relação entre os Bolsonaro e Malafaia, e ela é fundamental para compreender parte do ambiente político que vem se desenvolvendo no Brasil nos últimos anos: o poder de Malafaia no meio evangélico. Nesse aspecto, em um primeiro momento, é de espantar o contraste entre o linguajar do pastor, recheado de palavrões e vitupérios, e os valores que sua fé professa. Mas essa diferença pode ser apenas superficial.
Ao longo de todo o processo de crescimento do campo evangélico no Brasil, uma questão primordial ainda carece de maior investigação: o que está acontecendo no país, de fato, talvez não seja uma evangelização – aqui, no sentido de uma mudança de paradigma de um país de maioria católica para de maioria evangélica –, mas antes uma simbiose entre o laico e o religioso em um âmbito distinto das experiências passadas. Tal processo pode estar fundamentado na própria essência do neopentecostalismo, que acredita em uma compensação mundana para a fé e a disciplina religiosa.
O próprio Malafaia, em Apocalipse nos trópicos, afirma sua disposição em se imiscuir em questões políticas. Opera-se então um duplo movimento: à medida que parte do campo evangélico – e seus líderes – assumem aspectos laicos, o campo político se torna mais religioso. Portanto, se existe o temor de que o Estado laico no Brasil acabe, tal não ocorrerá sem uma mundanização da religião, como vem ocorrendo. A religião passa a ser menos sacra e a política menos laica.
A partir desse aspecto, o linguajar e a forma de atuação de Malafaia – e de parte do setor evangélico – não são uma exceção à regra, mas parte de uma sensibilidade político-religiosa que já vem se desenvolvendo pelo menos desde meados dos anos 1990, quando o boom evangélico começou a dar sinais.
Enquanto Malafaia coordena não apenas a família Bolsonaro, mas também um público que se mostra capaz de manifestar as mais absurdas e grotescas reações aos eventos de natureza política – orar para pneus, pedir ajuda a alienígenas etc. –, acreditando que Bolsonaro é um verdadeiro messias encarregado de uma missão divina, parte dos intelectuais e do mundo político que se move a partir de uma esfera racional e iluminista não consegue compreender o fenômeno da “evangelização” brasileira.
A matriz mais profunda que leva a este problema não está no tempo presente, mas sim no fato de que existe um fosso que sempre permaneceu aberto na cultura ocidental: se as universidades incorporaram os valores iluministas e se os intelectuais enxergam o mundo por suas lentes, a propagação de tais valores em meio à população – e muitas vezes, entre os próprios acadêmicos – se deu de forma incompleta, tortuosa, sem jamais se desviar completamente do campo religioso/mágico.
Se o sociólogo alemão Max Weber, na virada do século 19 para o 20, previra um mundo em desencanto, personagens como Silas Malafaia, Valdomiro Santiago e afins se deram conta de que não só tal fato não se concretizou, como a própria mudança tecnológica, aprimorada em redes de televisão e agora nas redes sociais, permitiu a insurgência de revoltosos que acreditavam e clamavam por um mundo mágico de milagres e novos messias.
Desse fosso saíram os novos “gurus” da política que, em seu processo de “reencantamento do mundo” parecem conduzir a sociedade a um período de obscurantismo.