A despeito de constar recorrentemente no debate público, reforma administrativa não parece ser um conceito adequado. Pressupõe um único movimento de mudança realizado na estrutura do Estado, que produziria, sob as mais variadas óticas, colorações políticas e caminhos propostos, melhores serviços públicos à população brasileira.
Discussões nacionais e internacionais, no entanto, indicam que não existe uma “bala de prata”, uma solução mágica, uma única reforma que, após concluída, deixaria como resultado um Estado com tamanho e capacidades adequadas. A sociedade está em constante transformação e, consequentemente, o Estado também precisa estar.
O debate raso procura fórmulas, soluções, mudanças estruturais disruptivas, regras inovadoras que, ao entrarem em vigor, mudariam a forma como o Estado está constituído e como se relaciona com a sociedade. Buscam-se sempre respostas fáceis, rápidas e baratas. Especialmente no caso da reforma administrativa, infelizmente elas não existem.
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Talvez um debate mais qualificado, no entanto, apesar de levar mais tempo e exigir maior pluralidade e maior tolerância com divergências, implique transformações contínuas, que ultrapassem interesses imediatos de governo e pensem em interesses estratégicos de país, na burocracia pública como instrumento de bem-estar social, preservando o que se mostra necessário preservar e aprimorando o que puder ser aprimorado.
O governo anterior impulsionou a discussão ao apresentar uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 32/2020. A proposta original do Poder Executivo foi submetida à Comissão de Constituição e Justiça e a uma comissão especial na Câmara dos Deputados, tendo sido alterada e aprovada em ambas as instâncias. Formalmente, estaria pronta para ser pautada em plenário.
Com a mudança de governo, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), que passou a conduzir o debate, tem defendido a necessidade de transformações, mas não por alterações constitucionais. E a pauta conduzida pelo MGI nesse tema, é preciso reconhecer, obteve avanços importantes e necessários à qualificação da burocracia pública.
Apenas para citar alguns exemplos: valorização de carreiras transversais, definição de diretrizes de carreiras, discussão formal para revisão de arranjos institucionais, reformulação das regras e do modo de realização de concursos públicos, qualificação do estágio probatório, entre várias outras medidas.
Um dos projetos de lei encaminhados pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, o PL 1466/2025, concretizava uma série de acordos remuneratórios firmados com as entidades representativas dos servidores públicos federais e instituía outras medidas de gestão entendidas como aprimoramentos na burocracia pública.
O PL foi aprovado pela Câmara, mas não sem sofrer mudanças. As alterações no Sistema de Desenvolvimento na Carreira (Sidec), previsto na Lei 11.890/2008, que buscavam estimular uma cesta de critérios como condição para promoção dos servidores, foram retiradas.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), deixou claro que uma reforma administrativa será prioridade em sua gestão, prometeu um Grupo de Trabalho para discutir o tema, com representantes de todos os partidos e prazo de 45 dias para apresentar uma proposta e indicou que temas como critérios de promoção e avaliação devem ser tratados nesse grupo.
O deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ) foi indicado coordenador dos trabalhos. Motta sinalizou a intenção de votar o tema ainda no primeiro semestre desse ano. A próprio opção pela constituição de um Grupo de Trabalho – e não uma comissão formal –, mesma estratégia utilizada no caso da reforma tributária, indica a prioridade que o presidente da Câmara deu ao tema, bem como a maior capacidade de sua governança sobre os resultados obtidos.
Propostas de alterações na máquina pública, portanto, parecem ter voltado à agenda política com patrocínio expressivo de atores capazes de influenciar diretamente a produção legislativa. Como é natural, começam a se formar – ou a se reorganizar – coalizões de defesas de interesses variados. Nesse cenário, de modo a contribuir com o debate público, talvez seja oportuno apresentar algumas reflexões a serem consideradas pelo Grupo de Trabalho na Câmara ou por outras instâncias e atores dispostos a discutir o tema.
Em primeiro lugar, a despeito de o Poder Legislativo contar com quadros técnicos extremamente qualificados em processo legislativo, não custa lembrar que o artigo 61 da Constituição Federal atribui ao presidente da República a iniciativa privativa de projetos de lei que disponham sobre cargos, funções ou empregos públicos, servidores públicos e organização administrativa.
Propostas infraconstitucionais sobre esses temas, portanto, devem partir do Poder Executivo, o que permite concluir que o GT instituído na Câmara ou apresentará seus resultados para avaliação do Poder Executivo ou proporá alterações na própria Constituição Federal, para as quais não há reserva de iniciativa. O segundo caso, até o momento, parece o mais provável.
Em segundo lugar, é imprescindível que quaisquer propostas de alteração na burocracia pública envolvam múltiplos atores, perspectivas, instâncias e experiências. Considerando a complexidade do tema, é importante envolver especialistas que conheçam de fato a máquina pública (e há uma infinidade de especificidades a serem observadas), atores políticos, usuários dos serviços, burocratas profissionais, acadêmicos, organizações da sociedade civil, etc.
Qualquer proposta só será viável se possuir condições de ser implementada. Já há um conhecimento acumulado sobre gestão pública e sobre alterações na estrutura do Estado que não pode ser desconsiderado.
Ainda nesse sentido, e diante da complexidade do tema, causa espécie a previsão de um prazo exíguo de 45 dias para o Grupo de Trabalho apresentar seus resultados. Mesmo que o prazo seja apenas um indicativo e possa ser prorrogado, muito dificilmente o tema será discutido com a qualidade necessária nesse período.
O deputado Pedro Paulo já sinalizou a intenção de realizar audiências públicas e outros eventos para subsidiar os trabalhos, que, se forem levados a sério, reforçam a inviabilidade do prazo previsto.
Terceiro ponto importante é considerar a diversidade dentro do próprio setor público. Há uma percepção baseada unicamente no senso comum e sem qualquer aderência à realidade de que a referência a “servidor público” abarca toda e qualquer pessoa que trabalha para o Estado. A ideia de servidor público, nesse sentido, já se apresenta carregada de vieses, estereótipos, preconceitos e percepções socialmente construídas.
Ocorre que o serviço público é extremamente diverso, em vários aspectos. Há distinções nos níveis de institucionalidade, na maturidade, na natureza, no arranjo organizativo, na prioridade governamental, nos atores envolvidos, na operacionalização e em tantos outros aspectos relativos às políticas públicas e, consequentemente, às estruturas burocráticas que as implementam (pessoal e instituições, em especial).
Há profundas diferenças, em vários níveis, dentro do Poder Executivo Federal, entre os diferentes Poderes e, mais evidentemente, entre os diferentes entes federados. As discussões precisam considerar essa diversidade. Respostas únicas e pretensamente aplicáveis a todos os casos são arriscadas.
Ao mesmo tempo, as discussões precisam ser isonômicas. O enfrentamento aos supersalários, por exemplo, tema que já foi indicado como objeto do Grupo de Trabalho, será inócuo se não for aplicado a servidores e membros de todos os Poderes. O equilíbrio entre promover isonomia onde necessária e considerar a diversidade do setor público quando couber será certamente um desafio.
O risco é que eventuais propostas, dado o histórico brasileiro, acabem traçando regras gerais, mas não para todos: a categoria x ou a carreira y, dadas as suas “naturezas distintas”, precisariam, pode-se argumentar, de “tratamento diferenciado”. Em outras palavras, há o risco de se criar mais distinções injustificadas e privilégios corporativistas.
Outra reflexão importante é que algumas regras sobre Administração Pública estão previstas na Constituição Federal, ao mesmo tempo em que estados e municípios também possuem autonomia administrativa para se organizarem a seu modo, observadas as balizas constitucionais.
Alterações constitucionais, portanto, impactam um conjunto enorme e heterogêneo de diferentes Administrações Públicas e, por isso, precisam ser realizadas com parcimônia e com consciência sobre as consequências para todo o país. Os sinais emitidos até o momento, reitera-se, parecem indicar que o Grupo de Trabalho caminha para uma alteração constitucional, o que reforça essa preocupação.
Uma quinta reflexão importante é a de que a Administração Pública, a estrutura burocrática, as normas, valores e princípios que regem o setor público refletem o modelo de Estado que a sociedade democraticamente escolhe que seja adotado. Ou seja, se a opção for no sentido de um Estado pouco atuante na promoção de bem-estar social, naturalmente as capacidades institucionais desse Estado serão reduzidas.
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Se, por outro lado, a opção for por um Estado de bem-estar social nos moldes daquele criado no final do século 19, é preciso que esse Estado seja capaz de entregar os serviços e as políticas necessários a tal finalidade. A Constituição Federal de 1988, não por acaso chamada de Constituição Cidadã, parece indicar qual a escolha feita. A Administração Pública precisa, portanto, ser capaz de entregar o que a Constituição promete.
O Grupo de Trabalho está inserido em um contexto no qual uma variável importante também será decisiva: o tempo. É difícil imaginar que uma votação ocorra ainda no primeiro semestre desse ano, como sinalizou o presidente Hugo Motta. Como o ano que vem será dominado pelo contexto eleitoral e como servidores públicos, a nível nacional, constituem uma importante variável político-eleitoral, é pouco provável que algo seja votado em 2026.
As manifestações públicas do deputado Pedro Paulo, até o momento, autorizam algumas inferências. O tema dos supersalários parece, felizmente, inescapável (o nível de distorção que alcançamos indica que é chegado o “espírito do tempo” ou zeitgeist para enfrentar a questão). Discussões sobre avaliação de políticas e serviços públicos, indicadores e bônus por desempenho também foram mencionados.
Essas não são discussões recentes. Basta lembrar que a Emenda Constitucional 19/1998, incluiu no texto constitucional o § 3º do artigo 37, segundo o qual:
“3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; […]”
Incluiu ainda o § 7º do artigo 39, que dispõe:
Art. 39. […] § 7º Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disciplinará a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade.
O § 3º do artigo 37 embasou a edição da Lei 13.460/2017, que dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da Administração Pública. Tais dispositivos, aparentemente, ou nunca foram implementados ou não geraram os impactos esperados.
Percebe-se que meramente incluir normas em lei (e até na Constituição, como se vê) não gera, espontânea e magicamente, os efeitos pretendidos. É preciso que o Grupo de Trabalho tenha isso em mente e considere não apenas alterações normativas, mas sobretudo sua viabilidade, operacionalização e efetividade no cotidiano de trabalho.
A despeito dessas sinalizações, a discussão sobre o Grupo de Trabalho está incipiente e, por isso, ainda não é possível determinar para onde ela caminhará. No entanto, alguns cenários podem ser delineados. O primeiro é que, como um Grupo de Trabalho com “representantes de todos os partidos” dificilmente chegará a um consenso, a discussão produza exposição política e debates acalorados, mas nenhum resultado concreto. Não parece um cenário improvável.
Outro cenário seria o de, justamente pela controvérsia do tema, o presidente da Câmara e os líderes de alguns partidos direcionem, ao fim a ao cabo, os resultados do Grupo de Trabalho e votem uma proposta sob protesto de outros grupos políticos. Nesse caso, o número de variáveis envolvidas, inclusive a posição que o Senado adotará, tornam o desfecho incerto.
Um terceiro cenário seria o de que as coalizões políticas envolvidas na discussão alcancem um “produto mínimo viável” e apresentem uma proposta pouco controversa, ainda que meramente cosmética, como forma de dar uma resposta ao tema que já está na agenda pública. Nesse caso, os efeitos concretos da reforma seriam de baixo impacto.
Talvez o Grupo de Trabalho caminhe para outro cenário, totalmente imprevisível. A ver. Importante apenas que fique claro: não há uma solução simples.