O dia 8 de janeiro de 2023 ainda não terminou. Todos os cidadãos brasileiros estarão presos nele enquanto houver forças políticas relevantes que, na prática, endossam rupturas institucionais. Ao boicotar a celebração do triunfo da democracia sobre os golpistas que invadiram as sedes dos Três Poderes em Brasília naquele dia, políticos de direita gritam em alto e bom som que, num futuro talvez não muito distante, não teriam problemas em apoiar a subversão da ordem constitucional. Se o cavalo passar selado, vão montar nele sem pestanejar.
Como chamar de consolidada uma democracia em que 30 senadores — ou seja, cerca 40% da câmara alta do Congresso Nacional — fazem um manifesto contra um ato que celebra a resiliência do regime por meio da qual eles foram investidos de autoridade? E o boicote de governadores do Centro-Sul, muitos dos quais são crias do bolsonarismo? De nada adianta deixar o verdadeiro líder do levante inelegível — o ex-presidente Jair Bolsonaro — se apenas os bagrinhos vestidos de verde e amarelo forem processados, julgados e condenados à luz do estrito rigor da lei.
Sim, caro leitor, caro leitora. No dia do golpe — que chegou a ocorrer com a invasão dos Poderes, mas foi devidamente debelado—, Bolsonaro estava em Miami, mas sem seus constantes ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao sistema eleitoral ao longo de quatro anos no poder dificilmente teríamos um movimento tão amplo de contestação da ordem democrática vigente, com civis e militares claramente simpáticos a um golpe. Não esperem, porém, qualquer autocrítica da direita nesse sentido, haja vista que muitos de seus líderes e adeptos chamam até hoje o início da ditadura militar de 1964 de revolução ou movimento.
Esqueçam as pesquisas que indicam amplo apoio ao regime democrático. A concepção de democracia varia significativamente e ao longo do espectro político. Ainda sobre a ditadura militar, lembrem-se que, de acordo com reiteradas declarações, ela é vista pelo chefe-mor da direita brasileira como a verdadeira defensora da democracia.
Tal discurso tem sua coerência interna se levarmos em conta que o bolsonarismo caracteriza-se por defender um majoritarismo — ou seja, um regime no qual a maioria poderia desprover a minoria de direitos fundamentais. Disto decorrem aberrações como, por exemplo, defender o enforcamento de ministros do Supremo sem achar que se trata de um crime. Para além dos alvos físicos, os golpistas pretendiam em última instância esquartejar a Constituição e, com suas folhas rasgadas e sangue de compatriotas legalistas, batizar um novo regime em que um presidente que não fosse Lula teria o beneplácito militar para atuar como poder moderador.
Basta reler a chamada minuta do golpe encontrada em meio a pertences de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça ao final do governo Bolsonaro e secretário de Segurança do Distrito Federal à época da intentona bolsonarista. Caso o golpe de 8 de janeiro tivesse sido bem sucedido, o day after não teria sido muito diferente do rascunho que previa estabelecer Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral. Estaria aberta a porta a todo tipo de arbítrio.
O que fazer para conferir normalidade democrático-institucional a um Brasil que, dado o alto grau de radicalização da direita, não consegue ver num ato de celebração do regime do povo e da ordem legítima um ponto de convergência nacional, um consenso mínimo para a convivência entre desiguais? A dura verdade é que mesmo a democracia — aqui entendida como o regime em que a minoria está protegida da tirania da maioria em meio a uma ordem constitucional permeada por eleições livres e regulares que abrem a perspectiva para a alternância de poder — não pode ser empurrada goela abaixo de ninguém.
Nesse sentido, a realidade política se impõe não como covardia, mas como temperança. Uma eventual prisão de Bolsonaro criaria apenas um mártir em torno dos mesmos governadores e 30 senadores que caracterizam a lembrança do golpe como um ato partidário, favorável ao governo Lula, mobilizando, assim, a base política em estado de constante radicalização. O problema é que talvez a totalidade da direita que faz oposição à atual administração comprou e vende a ideia de que o presidente e a centro-esquerda (chamados de “comunistas”) agem em conluio com o STF como um suposto partido único ditatorial que viola o princípio defendido em marchas bolsonaristas de que “supremo é o povo”.
Suprema é a ordem constitucional aprovada pelo povo e as escolhas eleitorais dele. Esse deve ser o espírito da memória a ser construída sobre o 8 de janeiro. Jamais esquecer o que se passou naquele dia é o fundamento que nos afasta da barbárie. Não se engane, porém. Ela está à espreita e vai se aproveitar de movimentos internacionais e nacionais para prevalecer.
Nesse sentido, é necessário observar os eventuais efeitos de um segundo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos sobre aventuras golpistas que, não importa o peso da lei, continuarão a avançar enquanto ideias que defendem a implantação de um majoritarismo no Brasil tiverem respaldo popular. A primazia da política sobre a lei parece ser um fato incontornável. Que os democratas usem, portanto, a boa política balizada pela lei existente para persuadir o povo a seguir o caminho oposto aos grilhões que o bolsonarismo pretende nos impor.