Mais de um ano depois do prazo final estipulado em lei para a erradicação dos lixões no país, pelo menos duas capitais ainda mantêm depósitos irregulares de resíduos sólidos: Goiânia e Manaus. Nos dois casos, as prefeituras brigam na Justiça para manter os espaços em operação de forma contrária ao que está previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei 12.305/2010.
A lei, que impôs um calendário gradativo para que os municípios brasileiros se adaptassem às novas diretrizes, proibiu a manutenção de lixões a partir do dia 2 de agosto de 2024. No entanto, cerca de 3 mil desses espaços ainda estão em funcionamento, segundo a Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).
Dados da associação mostram ainda que, no ano passado, foram coletados 93,7% dos 81,6 milhões de toneladas de lixo produzidos no Brasil. Do total, 40,3% tiveram destinação incorreta, principalmente para depósitos irregulares. Houve uma leve melhora em relação a 2023, quando 41% foram para lixões.
Mesmo diante desses dados, a capital do Estado de Goiás conseguiu no mês passado reverter, em segunda instância, uma decisão judicial de abril que determinava a interdição progressiva do lixão por falta de licença ambiental. O espaço descumpria o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2020 com o Ministério Público de Goiás (MPGO).
A liminar de primeira instância foi proferida numa ação civil pública ajuizada pelo Estado de Goiás e pela Abrema. As instituições alegaram que uma resolução do Conselho Estadual de Meio Ambiente define que aterros sanitários não são considerados de impacto local e, por isso, não podem ser licenciados pelos municípios.
O município de Goiânia e a Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma) recorreram da liminar. E, em novembro, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) entendeu que o município pode, sim, conceder licença ambiental para o local de despejo de resíduos sólidos da capital. Os desembargadores concordaram com o voto do relator, desembargador Maurício Porfírio Rosa. Segundo ele, a Lei Complementar 140/2011 incluiu como sendo de competência dos municípios todo empreendimento (inclusive aterros sanitários) cujo impacto seja de âmbito local, ou seja, dentro do próprio município.
“Nesse enfoque, a caracterização do impacto como local ou regional deve ser técnica e concreta, caso a caso, e não meramente presumida por resolução. Se não houver prova de que o aterro gera impactos que ultrapassam os limites territoriais do município, permanece válida a competência municipal”, escreveu o relator. “Argumentar que chorume, gases ou odores poderiam extrapolar fronteiras municipais é apenas presunção genérica”.
Para Pedro Maranhão, presidente da Abrema, a conclusão é perigosa e a aproximação do período de chuvas em Goiânia e em Manaus, com chuvas regulares e mais intensas a partir de novembro, aumenta os riscos de contaminação por chorume. O cenário, lembra ele, foi visto recentemente em acidentes ambientais que ocorreram no decorrer deste ano. “A acomodação irregular dos resíduos e as falhas na coleta do metano tornam o local suscetível a desmoronamentos e incêndios, como os ocorridos em Padre Bernardo e Piracanjuba [ambos em Goiás]”, alerta.
“O lixão de Goiânia ameaça a população de diversas formas. Não importa se o aterro sanitário é privado ou público, desde que ele garanta o manejo seguro dos resíduos para que essas fatalidades não sejam sequer cogitadas”, ressalta Pedro Maranhão.
Um relatório técnico, feito por analistas ambientais da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Goiás (Semad), apontou 12 irregularidades graves no lixão de Goiânia. No entanto, a secretária da pasta, Andréa Vulcanis, disse em entrevista no canal da Semad no YouTube ser impossível regularizar o lixão para se adequar às normas ambientais. A declaração foi feita com base no relatório produzido pela Semad e sem estudos da Prefeitura de Goiânia e da Amma que comprovem que os problemas são reversíveis.
“As informações técnicas indicam que não é mais possível reverter a condição do lixão de Goiás para uma situação de um aterro sanitário. É muito volume de lixo e são muitos anos de descuido com a gestão adequada. Além disso, tem comunidades e bairros inteiros a menos de 300 metros de distância do lixão. Por mais que se faça investimento, não é possível reabilitar essa área”, explica.
Ela acredita que o que deve ser feito é paralisar o depósito de lixo e fazer as medidas de remediação. “É preciso manter a estabilidade da pilha de lixo, cuidar dos gases para não haver explosão e fazer a gestão do chorume para evitar aquela contaminação. As ações de manutenção para evitar o agravamento desses danos vão ter que acontecer ao longo de muitas décadas”, ponderou a secretária.
Em Manaus, com 2,3 milhões de habitantes, a prefeitura conseguiu em 2024 a homologação na Justiça de um TAC com o Ministério Público do Amazonas que permitiu a expansão do aterro sanitário da cidade para continuidade do uso do espaço até 2028, quando deverá entrar em funcionamento um novo aterro, em local distinto do atual. Construído em 1986, o atual depósito de resíduos está com a vida útil vencida desde 2024. Ele fica na rodovia AM-010, que liga a cidade ao município de Itacoatiara.
Atualmente, Manaus produz diariamente cerca de 2,4 mil toneladas de lixo. Apesar de já haver um aterro sanitário licenciado na região, que poderia substituir o atual, a Prefeitura de Manaus decidiu construir uma nova estrutura. Com custo estimado entre R$ 20 milhões e R$ 25 milhões, a previsão é que o novo depósito de resíduos sólidos entre em funcionamento somente em fevereiro de 2026, com vida útil de 20 anos.
“Fizemos um abaixo-assinado cobrando a suspensão do TAC. A sociedade civil não teve acesso à planta do novo aterro, e nem ao planejamento de nada. Manaus até hoje não tem um plano de resíduos sólidos. Esse lixão representa uma ameaça contínua, e a sua expansão agravará ainda mais os danos ambientais”, alerta Ademir Ramos, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordenador do Projeto Jaraqui, fórum que reúne intelectuais, estudantes e a população para discutir questões que afligem a sociedade manauara.
Enquanto isso, o Centro de Tratamento e Transformação de Resíduos (CTTR), construído pela iniciativa privada, está pronto para entrar em funcionamento desde o fim de 2023. A nova estrutura poderá receber resíduos de todas as cidades localizadas em um raio de 150 quilômetros de Manaus.
“A situação do lixão é gravíssima. Tem famílias próximas, é perto do aeroporto de Manaus. Com a chegada do verão e das chuvas, aumenta ainda mais o risco de a pilha implodir. Em vez de construírem o novo aterro em outro lugar, fizeram um ‘puxadinho’ ao lado do atual. Por que a prefeitura não chama a iniciativa privada para discutir e avaliar alternativas sustentáveis?”, questiona Ademir Ramos.
O sistema de mantas do CTTR vai drenar para lagos de contenção de águas pluviais e chorume e há um sistema de tratamento do chorume, que utiliza a tecnologia de osmose reversa para purificar o líquido contaminante. Essas tecnologias, segundo a Abrema, garantem que não haverá contaminação do terreno e dos cursos d´água.
O CTTR também vai produzir biogás a partir das emissões dos gases de efeito estufa gerados na decomposição dos resíduos depositados no local e inserir o biogás na rede de distribuição de gás natural em Manaus.
Segundo a Abrema, do total de resíduos gerados no Brasil em 2024, apenas 11,7% foram reaproveitados para geração de insumos energéticos, sendo que 8% foram usados para geração de eletricidade, principalmente a partir do reaproveitamento do biogás gerado naturalmente pela decomposição do material. Outros 3,2% foram utilizados para produção do biometano, combustível limpo e renovável que pode substituir combustíveis fósseis no abastecimento dos carros, nas residências e nas indústrias, contribuindo para a descarbonização da economia.