A geração distribuída voltou a ser alvo de críticas infundadas, sem qualquer embasamento técnico, na mais recente polêmica do setor elétrico. Em artigos recentes, tem sido responsabilizada, total ou parcialmente, pelo curtailment – os cortes na geração eólica e solar promovidos pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em algumas regiões do país devido à falta de infraestrutura de transmissão para escoar a energia gerada.
Estima-se que esses cortes tenham causado prejuízos de cerca de R$ 2 bilhões a geradores eólicos e solares, levando associações do setor a acionar a Justiça. Diante desse cenário, entidades que defendem agentes de geração têm se movimentado nos tribunais em busca de paralisação dos cortes e compensação pelos prejuízos.
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Nessa nova narrativa enviesada, a geração distribuída é acusada de ampliar a produção de energia a partir de fontes renováveis intermitentes, provocando um descompasso entre a geração e a transmissão de energia, o que fragiliza o sistema elétrico. Esse argumento ganhou força após o apagão ocorrido em 15 de agosto de 2023, que deixou sem energia elétrica vários estados e levou o ONS a intensificar o curtailment como ferramenta para evitar novos episódios semelhantes.
No entanto, uma análise fundamentada em critérios técnicos desmonta facilmente essa narrativa. Ao se verificar as razões que levaram ao surpreendente apagão de 2023, observa-se que o descompasso verificado entre a oferta de energia e a capacidade de escoamento se deu no sistema de transmissão de energia.
Portanto, está relacionado com a geração centralizada dessas fontes. É um erro, portanto, responsabilizar a geração distribuída pelo problema, visto que está localizada nas redes de média e baixa tensões das distribuidoras, sem impactar diretamente a rede de transmissão.
O crescimento da geração distribuída, hoje com 38 GW de capacidade instalada, tem incomodado a geração centralizada, que vê sua fatia de mercado diminuir. O consumo em baixa tensão tem crescido a uma taxa até maior do que o próprio Produto Interno Bruto (PIB), o que nos mostra que a carga tem aumentado mesmo com o crescimento da geração distribuída.
De 2020 a 2023, o PIB cresceu 7,41%, enquanto o consumo de baixa tensão registrou expansão de 9,18%, para 254,7 mil GWh, aumento de 21,4 mil GWh no período.
Sendo assim, ao considerarmos a expansão da geração distribuída, estimamos que a sua geração acompanhou o crescimento da carga de baixa tensão, ou seja, a GD supriu essa nova demanda e, portanto, não “retirou” energia do sistema. A GD passou de 4,2 mil GWh para 25,5 mil GWh, um aumento de 21,3 mil GWh, volume muito próximo ao aumento do consumo em baixa tensão.
O fenômeno que temos hoje, portanto, não é um excesso de energia, mas sim um deslocamento descentralizado da curva de carga, indicando que a melhor solução para o problema é o uso conjunto da geração distribuída a sistemas de armazenamento de energia de bateria (BESS).
Aplicar curtailment à geração distribuída significa impedir consumidores de gerar sua própria energia, violando direitos individuais e forçando-os a pagar por uma eletricidade que poderiam produzir localmente. E desviaria o foco do real problema: a sobrecarga na transmissão, especialmente no Nordeste, onde a maior parte da energia renovável é gerada.
Vale lembrar que a maior parte da oferta de energia renovável está localizada na região Nordeste e, com pouca capacidade de escoamento, o sistema sofre sobrecarga.
A geração distribuída, ao contrário das alegações, alivia a infraestrutura elétrica ao reduzir a necessidade de investimentos em transmissão e distribuição. Ela reforça o sistema ao injetar energia próximo ao ponto do consumo, reduz perdas e aumenta a eficiência. Além disso, ao baratear a conta de luz, incentiva o aumento do consumo nas unidades consumidoras.
Ao atribuir a responsabilidade do curtailment à geração distribuída, desvia-se o foco de questões estruturais do setor elétrico que respondem por alguns dos componentes dessa crise. Uma dessas questões é o descompasso entre a expansão da geração e a da transmissão.
No modelo atual, cabe aos agentes ampliar a geração, ao passo que a ampliação da rede de transmissão continua a ser definida pelo governo federal e operacionalizada por meio dos leilões de linhas de transmissão.
Enquanto as usinas hidrelétricas e térmicas, que são projetos de maturação mais longa, respondiam completamente pela oferta de energia, antes da entrada das renováveis, a expansão da transmissão se deu no timing adequado. Com o aumento de usinas de fontes renováveis em operação, com prazos de construção mais curtos, as disparidades começaram a aparecer.
Outro problema é que a sinalização de custos por meio da Tarifa de Uso da Transmissão (TUST) e da Tarifa de Uso da Distribuição (TUSD) não tem cumprido sua função de oferecer sinais adequados de custos para os agentes que mais utilizam o sistema.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) procurou minimizar o problema melhorando o sinal locacional, com a publicação da Resolução Normativa 41/2022, mas não conseguiu uma solução completa devido às dimensões continentais do país. A ideia do sinal locacional é cobrar dos agentes que realmente utilizam a rede (transmissão e distribuição) e diminuir a cobrança de quem gera próximo à carga, pois utiliza bem menos.
A raiz da crise energética atual está em um modelo desatualizado, que distancia os agentes das reais necessidades da operação e do planejamento. Soma-se a isso a definição de uma regulamentação que, com frequência, não guarda proximidade com a eficiência e a alocação justa dos custos.
Com uma regulação adequada iremos para o próximo passo: buscar a controlabilidade com a implantação de baterias, criando assim um cenário de cooperação com a rede elétrica. Defendemos uma política pública que possibilite a convergência das diferentes matrizes – hidráulica, eólica e solar, centralizada e distribuída – em busca de eficiência tarifária e segurança energética.
É necessário planejar em longo prazo, adicionando o armazenamento de maneira eficiente e evitando, assim, expansões adicionais da infraestrutura de fios.
É nesse sentido que o Leilão de Reserva de Capacidade, um mecanismo utilizado no setor elétrico para garantir a disponibilidade de energia no futuro, evitando situações de racionamento ou falta de energia, adiciona resiliência e contribui para convivermos com as matrizes intermitentes de maneira mais satisfatória.
Condenar a geração distribuída, a solar ou a eólica nos leva para o cancelamento de uma base de ativos extremamente eficiente do país que deve ser fortalecida e desenvolvida. Precisamos de soluções que permitam a todos os agentes confiar no sistema interligado nacional.