Olá, querido leitor. Voltamos ao instigante tema da geolocalização, como prometido na última edição da coluna. Havíamos antecipado o pensamento do Tribunal Superior do Trabalho (SBDI-1) a respeito da validade desse tipo de prova digital. E estávamos prestes a definir, do ponto de vista técnico, o fenômeno da geolocalização – porque, na verdade, estamos a tratar de uma metonímia (lembra-se das aulas de Língua Portuguesa?): designamos o meio de prova com o nome do fenômeno físico-digital que o fornece (fonte de prova) –, para em seguida enfrentar os desafios jurídicos que a novidade impõe. Sigamos daí.
A geolocalização é uma ferramenta de ubicação digital que pode ser operacionalizada por meio de GPS (Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global), registros de ERB (Estações Rádio Base) e serviços de localização de dispositivos móveis.
De acordo com diversos tutoriais de geolocalização disponíveis nos sítios eletrônicos dos tribunais e de outros órgãos (inclusive da Google), é possível acessar o histórico de localização do Google e da Apple por meio de seus dashboards, bem como obter informações de ERB mediante autorização judicial, sem maiores dificuldades operacionais.
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Note-se que essas fontes são consideradas altamente precisas, mas podem apresentar margens de erro conforme as condições climáticas e topográficas, como já antecipamos.
É que os dados de geolocalização podem apresentar variações conforme o meio ambiente em que foram coletados, por exemplo. Assim é que, em áreas urbanas densamente povoadas, a presença de edificações e/ou de espelhos d’água pode interferir na precisão do sinal GPS, levando a margens de erro de diferentes dimensões que, de toda forma, devem ser consideradas na análise processual e podem ser decisivas quando a questão espácio-temporal – i.e., onde estava o trabalhador entre determinados horários – envolver locais que não estejam muito distantes entre si (o refeitório e o almoxarifado de uma empresa de grande porte, por exemplo).
De outra parte, vale sempre lembrar que a obtenção de dados por ERB requer autorização judicial, pois envolve a interceptação de informações armazenadas por operadoras de telefonia móvel (conquanto sejam “dados estáticos”, o que afasta a incidência da Lei 9.296/1996, que restringe a autorização aos juízes com competência criminal, nos termos da letra constitucional). E, ainda que a parte interessada obtenha essa autorização, haverá dois outros aspectos técnico-jurídicos a se tomar em primeira consideração:
- a uma, a necessidade de preservação da cadeia de custódia dos dados de geolocalização, nos termos do artigo 158-A do CPP (per analogiam), sendo certo que a autenticidade da prova digital deve ser garantida desde a sua coleta até a sua apresentação em juízo, convindo adotar protocolos que assegurem a integridade das informações, como aqueles predispostos na Norma ISO/IEC 27037:2013 (que estabelece diretrizes para identificação, aquisição e preservação de evidências digitais em diferentes contextos e jurisdições, assegurando maior confiabilidade para os respectivos usos forenses); e
- a duas, a necessidade de se preservar, contra ações de terceiros, o sigilo das informações pessoais obtidas e encartadas aos autos, o que torna conveniente, as mais das vezes, a decretação do segredo de justiça (CRFB, artigo 93, IX, in fine, para os “casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”), protegendo as partes contra o uso indevido dos dados, ao qual se podem associar medidas técnicas como a anonimização e a criptografia das informações, na esteira do artigo 6º, V, VII e VIII, da LGPD, minimizando-se os riscos à privacidade e à intimidade do obreiro.
Assim, na direção do que decidido ao ensejo do ROT 23218-21.2023.5.04.0000, a admissibilidade da geolocalização exige observância de restrições temporais e espaciais, manutenção do sigilo processual e resguardo da privacidade do trabalhador. Os tribunais internacionais têm admitido provas digitais sob critérios rigorosos de conformidade científica, conforme os casos Ben Faiza v. France (CEDH) e Daubert v. Merrell Pharmaceuticals (U.S. Supreme Court, 509 US 579, 1993), citados naquele próprio precedente.
Em Daubert v. Merrel, na verdade, não se discutem propriamente provas digitais, mas o alcance e a extensão da Regra 702 das Federal Rules of Evidence (1975), que reza:
If scientific, technical, or other specialized knowledge will assist the trier of fact to understand the evidence or to determine a fact in issue, a witness qualified as an expert by knowledge, skill, experience, training, or education, may testify thereto in the form of an opinion or otherwise. The opinion must have foundational reliability. In addition, if the opinion or evidence involves novel scientific theory, the proponent must establish that the underlying scientific evidence is generally accepted in the relevant scientific community. (Amended effective September 1, 2006.)
A partir da fixação de uma nova interpretação para esse texto legal, entendendo-o inclusive como sobrelevante em relação a qualquer precedente ou regra consuetudinária anterior (como o chamado “padrão Frye”, oriundo de U.S. 293 F. 1013, Frye v. United States, 1923) –, a Suprema Corte estadunidense entendeu que a opinião de um expert, ancorada em dados científicos, somente pode ser admitida caso se origine de um método reconhecidamente válido e previamente testado, o que pressupõe cinco condições:
- a técnica aplicada pode ser ou já foi testada;
- a teoria foi submetida à revisão e publicação por pares;
- a taxa de erro é conhecida;
- há padrões de controle e manutenção das operações e dos procedimentos; e
- a teoria é amplamente aceita pela comunidade científica. São os mesmos critérios que permitem afiançar, em processos trabalhistas, o valor probante superior das provas digitais por geolocalização.
Veja-se que, a rigor, estamos a tratar de prova com sensível teor técnico-científico, a envolver minúcias físico-matemáticas que podem fazer grande diferença (v., supra, o tópico anterior). Por isso mesmo, temos sustentado que a avaliação dos dados obtidos por geolocalização deve sempre ser secundada, nos autos, por uma análise propriamente pericial, ainda que simplificada – na linha do artigo 464, §3º, do CPC/2015 (“prova técnica simplificada”, que passa a admitir inclusive a forma oral, por intermédio da oitiva de testemunhas técnicas ou expert witnesses) –, já que o juiz atua no processo como agente estatal ex intelligentia, não como perito ou expert, ainda que domine as técnicas relacionadas à interpretação dos dados de geolocalização, ou ainda que se valha de programa ou plataforma para esse efeito (como, por exemplo, o veritas do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, que é inclusive referenciado no voto condutor do ROT 23218-21.2023.5.04.0000, e permite a “expedição de relatório amigável”).
À guisa de conclusão, interessa dar o braço a torcer e registrar que a geolocalização constitui, sim, uma fonte probatória relevante para os usos dos processos trabalhistas. A sua utilização, no entanto, deve ser feita com cautela e comedimento, de modo a evitar nulidades processuais, abusos instrutórios e/ou violação de direitos e garantias materiais.
O avanço tecnológico permite maior segurança na aferição da veracidade das informações prestadas – inclusive por partes e testemunhas, no âmbito das provas orais –, mas é fundamental que o Poder Judiciário estabeleça critérios mínimos para sua admissibilidade e valoração, garantindo um equilíbrio entre a eficácia probatória e a proteção dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores.
A fim de não banalizar a invasão judicial na esfera de privacidade/intimidade dos trabalhadores, impende que as questões de fato afetas à jornada de trabalho (e outras que possam sugerir “solução cabal” mediante o emprego de provas digitais por geolocalização) sejam dirimidas, como regra, com a produção, a admissão e a valoração de provas documentais e testemunhais, sob a lógica clássica da Súmula 338 do TST.
Em hipóteses excepcionais, porém, quando uma das partes – aquela sobre a qual pesaria o ônus da prova – não tiver justificadamente como produzir provas documentais ou testemunhais bastantes, ou quando as provas assim produzidas levarem a um estado de perplexidade (prova dividida), deve o juiz do trabalho admitir a produção da prova por geolocalização, a requerimento da parte interessada ou mesmo ex officio, sob o manto do artigo 765 da CLT.
E deve ser assim porque o elemento da proporcionalidade em sentido estrito sempre impele aos juízos de ponderação, no sentido de se identificar qual seria o prejuízo contextualmente mais aceitável; mas isso apenas se não estiver em causa aspecto da Wesenskern (núcleo essencial irredutível) do devido processo formal.
Ora, esse núcleo tende a estar em risco quando uma das partes processuais se vê conduzida a um estado de indefesa circunstancial. Noutras palavras, a tutela constitucional dos dados pessoais deve, sim, gozar de primazia na hierarquia de interesses e valores que informa a decisão judicial em matéria probatória, ex vi do artigo 5º, LXXIX, da Constituição da República.
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Mas, por outro lado, não pode se degenerar como uma espécie de “oportunismo sistêmico anti-intrusão”[1] que simplesmente estorve qualquer possibilidade de êxito processual ao empregador que, nos estritos lindes das normas-princípios da finalidade (LGPD, artigo 6º, I), da necessidade (LGPD, artigo 6º, II) e da predita proporcionalidade em sentido estrito (presente na LGPD, artigo 6º, I, mas como “legitimidade”,[2] apresente razões bastantes para pleitear em juízo a produção da prova digital por geolocalização. “Virtus in medium est”, diria Aristóteles.
E então, querido leitor? Curtiu? Aproveitamos o ensejo e tratamos um pouquinho mais do fascinante tema da proteção constitucional (e legal) dos dados pessoais. O que virá pela frente? Opine, sugira, critique. Você é o réu do seu juízo.
[1] VAN LOO, R. Privacy pretexts. Cornell Law Review, 108 (2), 2884, 2023, p. 67. Disponível em: https://www.cornelllawreview.org/wp-content/uploads/2023/03/2884.pdf. Acesso em: 10 fev. 2025.
[2] V. FELICIANO, G. G. Proteção de dados pessoais e os impactos nas relações de trabalho: princípios, aplicações e crítica. São Paulo: Thomson Reuters/Revista dos Tribunais, 2023, subseção 4.2.