No Brasil, respeita-se o direito de ir e vir. Pelo menos é o que diz o artigo 5º, inciso XV de nossa Carta Magna. O dispositivo estabelece que a liberdade de locomoção só é condicionada por dois fatores: o país estar em tempos de paz e as limitações impostas por lei. Afora isso, as pessoas podem se deslocar como bem entenderem dentro do território nacional.
Esse direito à locomoção era exercitado por Julieta Hernández de um modo intenso e profundo: artista itinerante, ela viajava pelo Brasil de bicicleta, realizando performances circenses por onde passava. Durante oito anos, a jovem venezuelana percorreu pelo menos nove estados brasileiros, até decidir retornar a sua terra natal.
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No caminho de volta, chegou à cidade amazonense de Presidente Figueiredo. Ali, era a única hóspede de um refúgio, onde um casal a agrediu, estuprou, queimou e assassinou de forma bárbarai. A jornada de Julieta se encerrava aos 38 anos de idade.
Essa morte atroz evidencia como a liberdade de locomoção no Brasil é um direito relativo, especialmente para quem pertence ao gênero feminino.
Embora o caso tenha provocado comoção tanto no Brasil quanto na Venezuela, houve quem culpasse a vítima por seu destino, quem alegasse que ela não teria sido morta se tivesse sido mais prudente. Há sempre no ar, na cultura machista em que nos inserimos, a ideia de que uma mulher viajando de bicicleta sozinha, em uma região tão remota, assume o risco de perder a vida.
Talvez isso seja verdade do ponto de vista de um local inóspito, cujo perigo reside na flora, na fauna e no clima. Porém, Julieta não comeu uma planta
venenosa, não foi atacada por um animal selvagem ou fulminada por um raio. Ela foi brutalizada por outros seres humanos.
É claro que a tragédia com Julieta poderia ter acontecido com um homem, mas isso é muito menos provável.
Mulheres viajando sós são vítimas de agressões nos quatro cantos do mundo. Esse fato é um aspecto de um panorama maior de violência de gênero, que perpassa a maior parte das culturas neste planeta. Isso se traduz em as mulheres correrem maior risco de agressão do que os homens em praticamente qualquer lugar em que se encontrem, segundo uma representante da ONU mulheresii.
Numa pesquisa realizada em 2021 pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotivas, 77% das mulheres afirmaram temer sair às ruas; 81% das entrevistadas declararam ter sofrido violência pelo menos uma vez em seus deslocamentos; 92% evitam sair à noite e 87% escolhem onde se sentar no transporte público pensando na própria segurançaiii.
Até a vestimenta é fonte de preocupação para as mulheres: 82% deixam de usar determinados tipos de roupas e acessórios por medo de se tornarem alvosiv.
Não se pode deixar de apontar igualmente o fator racial como agravante do problema. As mulheres negras são tradicionalmente as vítimas mais frequentes de violência de gênero neste país.
O que se tem no Brasil, então, é uma liberdade condicionada de ir e vir. Uma liberdade seletiva, mais ampla para os homens e mais restrita para as mulheres. Uma liberdade que, na prática, exibe-se mais como uma prisão cujas grades são o medo. Nossas concidadãs encontram-se diuturnamente limitadas no seu direito à locomoção. Restam impedidas de se movimentar nos horários, locais e modos que bem entenderem.
Existem propostas para adoção de um planejamento urbano e de transportes voltado à segurança das pessoas do gênero femininov. Trata-se de um ponto importante para enfrentamento desse desafio. Afinal, se o desenvolvimento de cidades e de seu transporte público levar em conta a proteção às mulheres, elas certamente se sentirão mais seguras. Contudo, isso ainda é insuficiente.
O fato é que não há como assegurar liberdade plena de ir e vir para as mulheres sem a participação massiva dos homens, pois são eles os maiores agressores. São eles que praticam a esmagadora maioria dos casos de assédio, violência (física e verbal) e feminicídios.
Dificilmente conseguiremos assegurar o direito equânime à locomoção entre os gêneros, se não for promovida uma mudança de mentalidade da população brasileira, principalmente de sua parcela masculina.
Homens não podem seguir aceitando que outros homens naturalizem a violência de gênero. O assédio e a violência – independentemente da forma que assumam – não podem continuar a ser uma prática realizada sem o devido repúdio de todas as pessoas, em todos os círculos sociais. O respeito à integridade da mulher deve ser colocado como prioritário em campanhas de direitos humanos, nas escolas e, acima de tudo, nos lares.
Cabe às famílias quebrar o padrão patriarcal de desrespeito às mulheres, instruindo filhos e filhas a respeitarem igualmente todas as pessoas, não importa o gênero.
Nessa seara instrucional, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) realizou em 2020, dentro de seu projeto Encontros da Cidadania, uma série de webinários, transmitida por seu canal no YouTube, sobre o tema da violência e da discriminação contra a mulher, visando debater o problema e apontar possíveis soluções. O tema continua atual e acessível naquela plataforma de vídeos on-line.
Além disso, a PFDC mantém um Grupo de Trabalho voltado à defesa dos direitos das mulheres, das crianças, dos adolescentes e dos idosos, o qual busca criar condições para tornar o Brasil um lugar mais seguro para sua população feminina.
Julieta Hernández perdeu a vida por ter tido a coragem de exercer seu direito constitucional de ir e vir. É lamentável que não consigamos, neste país, assegurar algo tão básico quanto uma mulher ir de um lado a outro sem estar sob a sombra do medo.
Urge que nos empenhemos em modificar esse cenário. Julieta deveria estar entre nós e, se nada fizermos, outras Julietas perecerão em nossas ruas, avenidas e estradas. O inciso XV do artigo 5º de nossa Constituição é para todos e todas. Que nós possamos fazer com que ele transcenda o simples registro escrito, para incorporar-se ao cotidiano de todas as pessoas, tornando-nos efetivamente uma nação em que a liberdade de ir e vir de fato exista.