Do mesmo modo que a Constituição Federal outorgou competência aos Estados e Distrito Federal para instituição do ICMS, previu também a possibilidade de lei complementar regulamentar a forma de concessão de benefícios fiscais do imposto.
Tanto a LC 24/75, recepcionada pela CF/88, como a LC 160/17 regulam a forma de concessão desses benefícios fiscais, mediante celebração de convênio no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). As legislações indicam a possibilidade de os Estados e Distrito Federal estabelecerem condições para fruição de benefícios fiscais concedidos mediante celebração de Convênio, assim como o art. 178 do CTN.
São denominados benefícios fiscais condicionados, nos quais se exige alguma contraprestação pelos contribuintes, geralmente, a prática de determinada conduta voltada a promoção de algum objetivo público.
Os benefícios fiscais condicionados se diferenciam dos benefícios fiscais incondicionados pela necessidade de implementação de condição onerosa para sua concessão, em oposição às condições genéricas previstas na aplicação da própria norma concessiva.[1]
Sempre será necessário cumprir determinada condição para aplicação de qualquer norma, o que diferencia essas duas categorias de benefícios fiscais é a necessidade de praticar outra conduta, não necessariamente correlacionada com a regra-matriz de incidência do imposto.
Portanto, as condições para fruição de benefícios fiscais obedecem a uma lógica extrafiscal: utiliza-se a cobrança de tributos para implementação de determinadas políticas públicas. A lei do bem é um exemplo de amplo conhecimento, com a criação do programa de inclusão digital e dos incentivos à inovação tecnológica, criou-se condições para redução da carga tributária como a aquisição de determinados produtos nacionais; limitação do preço da venda; aquisição de bens para desenvolvimento de tecnologias etc.
Aproveitando-se desta possibilidade, os Estados e Distrito Federal encontraram uma forma engenhosa de incrementar as suas arrecadações: instituir depósitos a fundos gerenciados pelos próprios entes, como condição para fruição de benefícios concedidos.
A nacionalização desta imprudência legislativa surgiu com a celebração do Convênio CONFAZ 42/16, entretanto não foi a primeira vez que algum Estado exigiu a realização de depósitos em fundos como condição para fruição de benefícios fiscais concedidos.[2] O Convênio autorizou aos Estados suprimirem até 10% dos benefícios concedidos, obrigando os contribuintes a realização de depósito desse montante em fundos de desenvolvimento econômico ou de equilíbrio fiscal, regularmente constituídos pelos entes, sob pena de perda definitiva do benefício concedido.[3]
Ao contrário da lógica extrafiscal, o Convênio CONFAZ 42/16 possui caráter puramente arrecadatório. Sua estrutura normativa apresenta as mesmas características de um tributo e, mesmo se o considerando como condição onerosa, não se concilia com o sistema jurídico.
Em primeira análise, não faz sentido estabelecer um sistema de competências tributárias rígido na CF/88 e, ao mesmo tempo, flexibilizar os meios de financiamento da atividade estatal, permitindo a exigibilidade de prestação pecuniária pela prática de determinadas condutas, sem a atribuir natureza tributária.
Esses depósitos mais se assemelham às contribuições (não-vinculados, irrestituíveis e destinados) que às condições onerosas. E sendo classificados desta forma, carecem de correspondência com as normas de competência tributárias outorgadas aos Estados e Distrito Federal na CF/88, tornando-os inconstitucionais.
Não há, no texto constitucional, competência outorgada aos Estados para instituírem cobrança pela fruição de benefícios fiscais.
O motivo desta publicação reside, justamente, na análise desse tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o ajuizamento da ADI 5635 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que questionou a constitucionalidade da criação do FEEF – Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal e FOT – Fundo Orçamentário Temporário, criado em substituição ao FEEF, pelo Estado do Rio de Janeiro, bem como os depósitos para financiamento desses fundos, com fundamento no Convênio CONFAZ 42/16.
Os dois argumentos mais relevantes da Ação perpassaram pela violação de normas de competência tributária, com invasão da competência residual da União (art. 154, I da CF), e a impossibilidade de afetação das receitas de impostos – se os depósitos forem interpretados como um adicional de ICMS.
Especificamente sobre a afetação das receitas dos depósitos, analisando a questão sob um prisma extrajurídico, os Estados e Distrito Federal são obrigados a partilhar com os municípios 25% o produto da arrecadação do ICMS. Em meio a uma guerra fiscal entre Estados, é compreensível a irresignação de representantes municipais contra legislações que, ao invés de instituírem uma redução dos benefícios concedidos, se aproveitam deste conflito para aumentarem as arrecadações estaduais, em detrimento da partilha prevista no art. 158, IV da CF.
Em 6 de outubro de 2023, foi realizado o julgamento da ADI 5635, no qual a maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, para dar intepretação conforme à CF/88 das leis fluminenses. O Min. Luís Roberto Barroso, relator da ADI, consignou, em resumo, que: i) os depósitos possuem natureza jurídica de ICMS, sendo considerados aumento do imposto; ii) não é possível vincular suas receitas a fundos, em razão da redação do art. 167, IV da CF/88 e iii) sendo ICMS, deve-se garantir a não cumulatividade do imposto.[4]
Votou também pela constitucionalidade dos fundos, embora seja vedada a vinculação das receitas obtidas com o adicional de ICMS a sua manutenção.
Tratar os depósitos como aumento de ICMS gera tantos problemas quanto atribuir natureza de condição onerosa para fruição de benefício fiscal, em especial, porque o voto do vencedor não especificou, de forma clara, como seria aplicada a não-cumulatividade ao adicional de ICMS.
Os enunciados jurídicos da legislação e do Convênio CONFAZ 42/16 não são estruturados para instituição de um imposto. A materialidade que enseja a realização do depósito é a fruição de benefício fiscal e, como forma de contornar esse problema, o Min. Relator consignou que o cálculo do adicional pode ter como referencial a própria operação beneficiada:
“A própria concessão dos benefícios fiscais relativos ao ICMS se atrela a uma operação e pode servir como referencial para o cálculo do crédito.”
A primeira grande questão é o tratamento conferido às isenções. Se aceita a teoria moderna, que as caracteriza como mutilação parcial de algum dos critérios da regra-matriz de incidência[5], não há incidência do imposto na operação referência. Se os depósitos são adicional de ICMS e seguem a mesma materialidade da operação referência, não deve haver incidência do adicional, igualmente. Neste caso, a instituição de adicional de ICMS também não incidiria.
Mas considerando a teoria da dispensa legal do pagamento e as consequências prováveis do julgado, há uma inconsistência no voto do grave Min. Relator: a ausência de garantia dos créditos em operações isentas. Sabe-se que o ICMS é um imposto não-cumulativo, com um sistema apuração de créditos e débitos, deduzindo-se os primeiros dos segundos para apuração do valor devido, sendo vedada o aproveitamento do crédito nas operações com isenção (art. 20, § 1º da LC 87/96).
Se o voto vencedor garantiu a aplicação da não-cumulatividade, e o adicional de ICMS é atrelado a operação principal (nos termos do voto do relator), neste caso, o contribuinte terá direito ao crédito, e a vedação a tomada de crédito contida na Lei Kandir seria inconstitucional?
E os casos envolvendo concessão de créditos fictícios em renúncia aos créditos escriturais, considerando a necessidade de aplicação da não-cumulatividade, será conferido o mesmo tratamento ao adicional de ICMS? Ou o contribuinte terá que apurar seu ICMS de duas formas, com os créditos presumidos e créditos escriturais.
Diante da grande quantidade de tipos de benefícios fiscais, certamente surgirá quantidade proporcional de questionamentos acerca do tratamento dado a cada um deles.
Então, será que o STF errou ao analisar esse tema? Não teria sido melhor reconhecer a inconstitucionalidade da cobrança? Nesse tipo de julgamento, tem-se a impressão que o consequencialíssimo jurídico (percepção do impacto financeiro nas contas públicas) é mais influente na corte que a própria Constituição.
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[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 8ª Edição. São Paulo: Noeses, 2021, p. 575-576.
[2] O STF já havia analisado, na ADI 2.056, a natureza tributária de lei estadual do Mato Grosso do Sul, que instituiu um depósito ao Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul – FUNDERSUL. Naquela oportunidade, concluiu pela ausência de natureza tributária do depósito, pois a legislação o tratava como uma faculdade, carecendo de compulsoriedade.
[3] Cláusula primeira Ficam os estados e o Distrito Federal autorizados a, relativamente aos incentivos e benefícios fiscais, financeiro-fiscais ou financeiros, inclusive os decorrentes de regimes especiais de apuração, que resultem em redução do valor ICMS a ser pago, inclusive os que ainda vierem a ser concedidos:
I – condicionar a sua fruição a que as empresas beneficiárias depositem em fundo de que trata a cláusula segunda o montante equivalente a, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício; ou
II – reduzir o seu montante em, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício.
1º O descumprimento, pelo beneficiário, do disposto nos incisos I e II do caput por 3 (três) meses, consecutivos ou não, resultará na perda definitiva do respectivo incentivo ou benefício.
[…]
Cláusula segunda A unidade federada que optar pelo disposto no inciso I da cláusula primeira instituirá fundo de desenvolvimento econômico e ou de equilíbrio fiscal, destinado ao desenvolvimento econômico e ou à manutenção do equilíbrio das finanças públicas estaduais e distrital, constituídos com recursos oriundos do depósito de que trata o inciso I da cláusula primeira e outras fontes definidas no seu ato constitutivo.
[4]Acesso em: file:///C:/Users/guilherme.ripamonti/Downloads/5539096%20(1).pdf
[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 8ª Edição. São Paulo: Noeses, 2021, p. 575-576.