Neste último de três artigos sobre a privatização da Sabesp trato do mecanismo de subsídio às tarifas concebido pelo governo do estado, bem como apresento algumas críticas ao processo de desestatização, tal como ele se desenrolou até o momento.
Começo abordando um ponto sensível: a Sabesp cobrará mais ou menos pelos serviços prestados? A privatização conseguirá produzir simultaneamente aumento de investimentos e modicidade tarifária?
Um argumento muito comum na defesa de desestatizações é a possibilidade de redução dos preços dos serviços: sai o Estado – que possui poucos incentivos para diminuir custos de operação e é muitas vezes atrapalhado nesse aspecto pela legislação – e entra o operador privado, que pode operar com mais liberdade de gestão. Esse argumento, embora bastante razoável, dificilmente condiz com a realidade. Isso porque os investimentos que costumam estar associados a processos de desestatizações impõem custos que superam eventuais economias que a gestão privada propicia.
Tal como ocorreu em outros setores que passaram por intenso processo de desestatização, o saneamento básico também não vivenciará um período de redução de tarifas, especialmente nos próximos anos. Isso porque o volume de investimentos necessários ao atingimento das metas de universalização em 2033 necessariamente levará ao aumento do preço pago pelos usuários na maior parte do país.
A criação de mecanismos de redução ou contenção de tarifa de serviços públicos, em meio a um contexto em que elevados investimentos tendem a aumentar seu preço, é uma medida que pode fazer sentido em muitos contextos. No processo de privatização da Sabesp, o instrumento escolhido para tal redução ou contenção da tarifa foi o Fundo de Apoio à Universalização do Saneamento no estado de São Paulo (FAUSP). Essa escolha, todavia, talvez não tenha sido a medida mais acertada.
Em primeiro lugar, porque há insegurança jurídica em razão do art. 167, XIV, da Constituição Federal, o qual proíbe a criação desse tipo de órgão “quando seus objetivos puderem ser alcançados mediante a vinculação de receitas orçamentárias específicas ou mediante a execução direta por programação orçamentária e financeira de órgão ou entidade da administração pública”. Essa regra constitucional é recente[1] e não tem recebido a devida atenção, apesar de fazer bastante sentido num país em que vigora o orçamento-programa e cujos fundos setoriais tradicionalmente não conseguem realizar as despesas e missões para os quais são concebidos.
Cabia ao governador, quando do envio para a Alesp do projeto da lei autorizativo da privatização, explicar a inevitabilidade da criação do fundo cuja aparente inconstitucionalidade pode ser arguida a qualquer momento, colocando em risco um aspecto central do modelo de privatização. E cabia à Alesp ter proposto uma alternativa melhor.
Em segundo lugar, há uma indefinição a respeito da abrangência territorial do FAUSP. A redação da Lei estadual 17.853/23 é imprecisa porque parece autorizar que o fundo possa ser usado não só na área da Sabesp, mas em todas as outras URAEs que foram criadas. Talvez seja esse o reconhecimento definitivo de que o Estado virou mesmo cotitular dos serviços de água e esgoto em todo o seu território. O governo paulista tem afirmado que o fundo vai propiciar, senão a redução, ao menos a contenção da tarifa da Sabesp. Mas, diante da possibilidade de que tantos operadores acessem seus recursos, haverá capital suficiente?
Diante da dúvida sobre seu âmbito de aplicação, há risco de que o FAUSP seja uma espécie de “fundo universal de pagamentos de pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro”, acessível a todos os operadores de saneamento paulistas.
Além disso, temos de lidar com a ausência de dados sobre as estimativas de receitas iniciais do fundo e como elas comporão a equação econômico-financeira do contrato. Sem tal informação, não temos como discutir adequadamente se as suas finalidades são adequadas.
Caso tivéssemos mais informações sobre o papel esperado do fundo na privatização, poderia ser feita uma análise custo-benefício que evidenciasse o que é mais desejável como objetivo de política pública: gastar bilhões de reais para baixar o custo de um bem escasso e de uso não raro negligente ou usar esse dinheiro para outras formas de combate à vulnerabilidade socioeconômica e à degradação ambiental. Em outros termos: precisamos baratear a água ou seria melhor aplicar recursos do fundo em outras ações de sustentabilidade ambiental?
Para saber se a finalidade do fundo deveria ser subsidiar as tarifas, tal análise deveria levar em conta os índices de inadimplência da Sabesp. Caso verificássemos que todos os inscritos no CadÚnico do governo federal estão efetivamente contemplados pela tarifa social vulnerável da Sabesp e que a inadimplência é baixa, ainda assim faria sentido o subsídio via FAUSP?
Infelizmente a Sabesp “não adota em seus indicadores de inadimplência a divisão por faixa de consumo” (palavras da empresa[2]) – de modo que é difícil aferir se a tarifa realmente precisa ser subsidiada porque pessoas pobres não estão conseguindo arcar com essa despesa. O quanto a inadimplência decorre de pessoas ricas que simplesmente se esquecem de pagar a conta da casa de veraneio? Sem tais dados, é difícil saber se o fundo é necessário. Temos aqui mais um exemplo de como a opacidade dificulta a criação de um bom modelo regulatório.
A antecipação das metas do marco legal para 2029 irá fazer enorme pressão sobre a tarifa da Sabesp. Para além da opção de subsídio tarifário via FAUSP, tal pressão poderia ser atenuada por meio do repasse dos ganhos de eficiência à tarifa. Saber o quanto o ganho de eficiência será internalizado pela empresa privatizada e o quanto será compartilhado com os usuários é algo essencial para entendermos o quanto o FAUSP poderá ser operacional e necessário.
E aqui estamos falando, portanto, do modelo tarifário. Trata-se de algo tão relevante quanto o plano de investimentos. Em mais um exemplo de contradição às boas práticas regulatórias, aspectos do modelo tarifário foram anunciados numa entrevista a um veículo de imprensa em novembro passado. Ali havia informação suficiente para confirmar que o principal pleito dos potenciais investidores (a possibilidade de a Sabesp internalizar ganhos de eficiência) foi, ao que consta, atendido. Não é um pleito nada irrazoável e, a depender de como isso seja tratado no contrato ou nas normas regulatórias, pode ser uma medida correta. Mas é bem pouco razoável que um aspecto central da privatização seja objeto de uma divulgação tão distante do público.
Apesar da pouca informação em torno do processo de privatização até aqui, ela continua e entusiasma a muitos. Como seria possível a opacidade não ser um obstáculo forte ao sucesso dos planos do governo estadual?
Duas respostas, não excludentes, são possíveis. A primeira: há informação suficiente sobre os custos e receitas da operação futura da Sabesp. Essa informação, ainda que não esteja compilada e acessível ao público, é de algum modo alcançada por empresas experientes do setor de saneamento, que conseguem chegar a uma estimativa razoável que as possibilite avaliar se participarão do processo de privatização.
Outra resposta: a informação é, em certa medida, irrelevante. O histórico de concessões de serviço público no Brasil demonstra que, em pouco tempo, o contrato original pode ser mudado profundamente; isso não é ilegal e faz parte da lógica de um contrato de longo prazo. Não é nada difícil imaginar que, pouco tempo depois de que os novos donos da Sabesp tomem as rédeas da empresa, sejam constatadas inúmeras inconsistências, incompletudes e deficiências no plano de investimentos a cargo da empresa. Não será difícil à futura Sabesp explicar que, para atingir as metas de universalização, as obrigações de investimento têm de ser repensadas e/ou a tarifa tem de ser elevada.
Espera-se, portanto, que o edital de privatização consiga diminuir a insegurança jurídica que decorre da recente Lei estadual nº 17.853/23 e dos decretos que regulamentam as URAEs. Tão importante quanto resolver essas questões é verificarmos se os principais problemas que têm sido enfrentados nas recentes concessões de água e esgoto também receberam a devida atenção pelo governo do estado. Tais problemas dizem respeito, sobretudo, a uma significativa discrepância entre informações fornecidas pelo poder concedente e o posterior estado real das coisas verificado pelas concessionárias.
Todo processo de desestatização pode sofrer de erros e imperfeições. Mas a experiência brasileira em concessões prova que a pressa na fase de elaboração de estudos, diagnósticos e dos documentos de licitação tende a aumentar substancialmente o número de problemas na execução dos contratos. É uma triste saga que começa com as primeiras concessões ferroviárias e rodoviárias em meados dos anos 1990 e chega aos nossos tempos, abrangendo quase todos os setores, em todas as esferas federativas. Seja por conta do timing político ou por necessidades fiscais, o afã de realizar a desestatização a toda velocidade é algo comum na gestão pública brasileira e tem produzido um passivo regulatório e fiscal que poderia ser evitado.
A privatização da Sabesp vai entrar em sua fase mais importante agora. Vejamos se teremos uma melhora da qualidade do processo ou se ele continuará a apresentar pontos problemáticos para a futura operação dos serviços.
[1] Introduzida pela Emenda Constitucional 109/21.
[2] Resposta à solicitação de dados de inadimplência com base na Lei de Acesso à Informação.