Fraldas, perfumes e armas devem ter a mesma tributação?

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A reforma tributária avançou no combate às desigualdades e tem o potencial de tornar a tributação brasileira menos injusta. O mesmo espírito da Emenda Constitucional 132/2023 deve permear a regulamentação: é preciso refletir sobre o PLP 68/2024, de modo que a busca por simplificação não ofenda os princípios constitucionais que visam justamente à realização da justiça tributária.

Atualmente, fraldas infantis e geriátricas são tributadas em cerca de 27,25%; os perfumes, por serem itens de luxo, sofrem uma tributação em torno de 64,8%; já os revólveres, que são bens que causam dano à vida e à saúde, têm tributação de cerca de 89,25%[1].

A despeito de a alíquota sobre fraldas ser elevada quando comparada a outros itens essenciais, a diferença atual de tributação entre esses três produtos decorre do princípio da capacidade contributiva. A Constituição brasileira estabelece que esse princípio, quando observado na tributação do consumo, traduz-se no princípio da seletividade.

Portanto, na tributação indireta, o Estado deve utilizar a seletividade para isentar ou tributar de forma reduzida os produtos de primeira necessidade e para elevar as alíquotas sobre produtos supérfluos[2]. Por isso, na tributação do consumo, o princípio da capacidade contributiva concretiza-se não no seu aspecto subjetivo (de pessoas tributáveis), mas sim no seu aspecto objetivo (bens tributáveis)[3].

Com o PLP 68/2024, todos esses produtos serão tributados na alíquota padrão, estimada pelo Ministério da Fazenda em 26,5%. Assim, os perfumes terão uma tributação reduzida em quase 60% e os revólveres em cerca de 70%. Confira-se:

Fonte: Elaboração das autoras

Tal distorção ocorre por dois problemas. O primeiro refere-se ao Imposto Seletivo (IS). Atualmente, perfumes e armas têm alíquotas majoradas especialmente pelo IPI. Todavia, com a reforma tributária, o papel extrafiscal que o IPI desempenhava foi desenhado para ser realizado pelo IS, imposto de competência da União, previsto no artigo 153, inciso VIII da Constituição, com vistas a onerar mais pesadamente bens e serviços causadores de males à saúde e ao meio ambiente.

As armas seriam um caso típico a ser tributado pelo imposto seletivo, como se vê nos Estados Unidos e no Chile. Trata-se de bens de uso restrito, que deveriam contar com uma alta tributação, pois ameaçam o direito à vida, à integridade física e à saúde pública.

Sobre esse último aspecto, dados do Instituto Sou da Paz demonstram que os gastos do SUS com armas de fogo são de R$ 41 milhões por ano[4]. Além disso, as armas são o principal instrumento nos feminicídios: 1 a cada 2 mulheres assassinadas é vitimada por arma de fogo[5]. Parece claro que se trata de um produto cujo consumo deve ser desincentivado, tanto da perspectiva da ameaça a bens jurídicos tutelados pela Constituição, quanto pelos gastos que geram ao Estado.

Perfumes e armas não são itens essenciais, mas não se encaixam na mesma categoria ou motivam a mesma tributação. Perfumes são supérfluos, mas não ameaçam nenhum bem jurídico como vida, saúde e a dignidade da pessoa humana. Já as armas, além de não serem essenciais, ainda ofendem a vida e a saúde, e deveriam ensejar uma altíssima tributação. Novamente, a reforma tributária corrige muitas distorções, mas não pode acabar criando outras ao impor a mesma tributação a três itens com impactos e externalidades completamente diferentes.

A grande maioria dos países que adotam o IVA, inclusive os que fizeram reformas tributárias recentes, com a implementação dos chamados IVAs modernos, adotam alíquotas diferenciadas de acordo com a essencialidade[6] e utilizam imposto seletivo para sobretributar itens de luxo e/ou que fazem mal à saúde e ao meio ambiente.

O debate em torno de uma alíquota única também já foi vencido com a aprovação da EC 132/23. Assim, tendo sido superado o debate teórico em torno da alíquota única, e tendo o Brasil continuado a adotar a essencialidade como critério para tributação, a questão que se coloca é: quais bens são considerados essenciais para o sistema tributário?

Aqui adentramos no segundo problema do PLP 68/2024: a não aplicação adequada do critério da seletividade. O caso das fraldas infantis e geriátricas é exemplar nesse sentido. Trata-se de bens que deveriam estar no rol de produtos de higiene com alíquota reduzida ou mesmo zerada, já que são bens essenciais à saúde de bebês, idosos dependentes e algumas pessoas com deficiência.

Esses itens são especialmente consumidos pelas famílias brasileiras mais pobres, conforme se observa em estudo do Banco Mundial: dentre as 155 categorias listadas na ferramenta SimVAT[7], a fralda é o 8º item mais representativo no gasto das famílias que estão entre os 40% mais pobres quando comparado com os gastos dos 10% mais ricos. Isso se deve justamente pela maior presença de crianças e idosos dependentes entre esses estratos, como demonstra a PNAD – IBGE.

Ademais, é preciso considerar que uma alta tributação sobre fraldas também constitui um viés contra as mulheres[8], visto que quem realiza o trabalho de cuidado são elas, hegemonicamente. A divisão sexual do trabalho não impacta somente na repartição desigual de tempo, mas também tem consequências nos padrões de gastos familiares: uma mulher negra chefe de família gasta quase 80% mais em higiene, incluindo cerca de 60% mais em produtos de uso pessoal do que homens brancos chefes de família, conforme Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE[9].

Assim, se as fraldas são essenciais à saúde e são mais consumidas pelos mais pobres – critério utilizado pelo Ministério da Fazenda para listar os bens de alíquota reduzida no PLP 68/2024 –, por que não estão sendo consideradas como essenciais na reforma tributária?

Note-se que os perfumes, a despeito de supérfluos, não podem, por determinação constitucional, ser inseridos no imposto seletivo. Assim, devem permanecer na alíquota padrão. Já as armas, não há qualquer dúvida, devem ser incluídas no imposto seletivo, de modo que possuam tributação adequada com a lesividade à vida e aos danos à saúde pública. E as fraldas, por fim, devem ter sua essencialidade reconhecida e figurarem na alíquota zero.

Essas foram algumas das sugestões de emenda que apresentamos em ofício[10], escrito a muitas mãos, do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP, enviado ao grupo de trabalho de regulamentação da reforma tributária e apresentado na audiência pública do mesmo GT na semana passada. Esperamos, assim, que as distorções no PLP 68/2024 sejam corrigidas a fim de garantir o princípio da capacidade contributiva e o princípio da seletividade.

[1] As alíquotas estimadas referem-se a soma das alíquotas nominais de IPI, Pis/Cofins e ICMS MG.

[2] DERZI, Misabel de Abreu Machado. Família e tributação: a vedação constitucional de se utilizar tributo com efeito de confisco. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 32, p. 145-164, 1989.

[3] TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.

[4] Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/violencia-armada-custa-r-41-milhoes-a-saude-publica-e-vitima-principalmente-homens-negros-mostra-estudo-do-instituto-sou-da-paz/. Acesso em 29 jun. 24.

[5] Disponível em: https://lp.soudapaz.org/mulheres. Acesso em 29 jun. 24.

[6] A maioria dos países, inclusive aqueles que adotaram IVA recentemente, como Albânia, Angola, Austrália, Bahamas, Barbados, Bangladesh, Costa Rica, Croácia, Egito, Eslovênia, Gana, Índia, Kosovo, Letônia, Singapura, Sérvia, Suíça e Vietnã, adotam diferentes alíquotas ou permitem isenções ou alíquota zero para circulação de produtos e serviços essenciais, como alimentos, água e saúde: “Há, nesse sentido, um consenso internacional sobre a inaplicabilidade de uma alíquota única, isto é, sobre a exigência de que se tribute diferentemente bens e serviços mais essenciais que outros, e não o contrário” (LEÃO, Martha; DEXHEIMER, Vanessa. A tributação indireta e o mito da alíquota única. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo: IBDT, v. 48, n. 48, p. 336-351, 2021.)

[7] Disponível em: https://datanalytics.worldbank.org/simvat/. Acesso em 29 jun. 24.

[8] Conforme já tratado no relatório da UN WOMEN. Cf.: LAHEY, Kathleen A. Gender, Taxation and Equality in Developing Countries: Issues and Policy Recommendations. UN WOMEN, [s. l.], abr. 2018.

[9] MENEZES, Luiza Machado de Oliveira.  Tributação e desigualdades de gênero e raça: vieses de gênero na tributação sobre produtos ligados ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina. 2023. 135 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/53343>.

[10] Disponível em: https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/2024-06/teg-oficio-plp-68_2024_final.pdf. Acesso em: 29 jun. 24.