A Justiça brasileira convive com múltiplas mazelas. São filas processuais intermináveis, estruturas sobrecarregadas e um esforço hercúleo para garantir acesso igualitário ao Judiciário. Em meio a esse cenário, emerge uma prática sorrateira, mas profundamente danosa: o fracionamento abusivo de demandas.
Com frequência crescente nas ações de consumo, tal expediente transforma o sistema judicial em um campo minado, onde o litígio é artificialmente multiplicado para alcançar objetivos nem sempre legítimos. É preciso denunciar, criticar e, sobretudo, agir com firmeza.
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A lógica do fracionamento é perversa. Trata-se da prática pela qual autores, muitas vezes orientados por seus advogados, ajuízam múltiplas ações individuais — uma para cada membro da mesma família, por exemplo, ou até mesmo ações diversas para cada suposto problema — ainda que os fatos, fundamentos e pedidos sejam idênticos.
Alguns exemplos são observados em ações promovidas contra empresas de telecomunicação, fornecimento de energia, empresas aéreas, instituições financeiras e instituições de pagamentos: um problema único gera cinco ou seis ações distintas, com diferenças apenas nominais nos autores. O resultado? O Judiciário se vê obrigado a julgar seis vezes o mesmo caso, possivelmente em varas diferentes, com riscos de decisões conflitantes, dilapidação da coerência jurisprudencial e um claro desperdício de recursos públicos.
Mais que uma disfunção processual, o fracionamento abusivo é um atentado à boa-fé objetiva que deve reger o processo civil. A Constituição Federal assegura o acesso à Justiça como direito fundamental, mas jamais conferiu às partes a liberdade de manipular o sistema em benefício próprio.
A tática de fracionamento visa, na prática, burlar os mecanismos de prevenção — isto é, evitar que um único juízo concentre as ações relacionadas — e, não raro, busca vantagens patrimoniais indevidas, como a multiplicação de indenizações e honorários advocatícios. A conta, como sempre, recai sobre o erário e sobre os demais jurisdicionados, que veem seus processos atrasados por conta de litígios artificialmente inflados.
Nesse contexto, a recente Nota Técnica CIJDF 15/2025, aprovada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), representa um divisor de águas. O documento reconhece expressamente o fracionamento abusivo como prática atentatória à dignidade da justiça e recomenda providências incisivas: desde a reunião dos processos no juízo prevento até a aplicação de penalidades por litigância de má-fé.
Reforça-se, assim, que o Judiciário não pode ser complacente com distorções éticas que transformam o processo em instrumento de oportunismo.
A crítica deve, contudo, ir além do plano normativo. É preciso refletir sobre o papel dos advogados nesse cenário. O Estatuto da Advocacia exige conduta ética e lealdade à Justiça. Ao aconselhar ou promover o fracionamento abusivo, o profissional viola não apenas preceitos legais, mas compromissos morais com a ordem jurídica e com a própria credibilidade da profissão. A banalização do litígio, quando convertida em estratégia massiva, deslegitima o processo e transforma a Justiça em indústria.
Há ainda outro aspecto preocupante: a instrumentalização das cortes superiores. Diante da proliferação de ações idênticas, aumenta-se a estatística de recorribilidade e artificializa-se a demanda por precedentes vinculantes.
Isso impõe uma carga desnecessária ao STJ e ao STF, que se veem compelidos a lidar com questões que, em tese, deveriam ter resolução célere nas instâncias ordinárias. O tempo e o esforço consumidos com demandas repetitivas impedem a adequada apreciação de controvérsias verdadeiramente complexas.
Para combater essa distorção, é urgente um movimento coordenado. Os magistrados devem estar atentos aos sinais do fracionamento — a identidade de fatos, pedidos e partes — e agir com coragem para coibir a prática. O uso de ferramentas tecnológicas, como inteligência artificial e bancos de dados compartilhados, pode auxiliar na identificação de padrões suspeitos.
Por outro lado, os tribunais precisam fomentar a jurisprudência dissuasória, com decisões exemplares que reconheçam a má-fé e apliquem sanções proporcionais, inclusive com repercussões na esfera ética-profissional dos advogados.
Além disso, é essencial investir em educação jurídica. Muitos dos autores dessas ações sequer compreendem que estão sendo instrumentalizados em um jogo de estratégias processuais.
A atuação dos órgãos de proteção ao consumidor, das Defensorias Públicas e dos Procons deve ser orientada não apenas para a defesa de direitos, mas também para a promoção de práticas processuais legítimas e socialmente responsáveis.
Não se trata, evidentemente, de cercear o acesso à Justiça. Toda violação a direitos deve encontrar resposta no Judiciário. Mas é fundamental que essa resposta se dê de forma íntegra, eficaz e dentro dos parâmetros éticos que sustentam o Estado Democrático de Direito.
O processo não pode ser um palco de espertezas, nem uma máquina de rentabilidade artificial. O Judiciário é instituição pública, não ferramenta de acumulação indevida de lucros ou de manipulação estatística.
Conclui-se, assim, que o fracionamento abusivo de demandas representa uma das mais insidiosas formas de deslegitimação do processo civil contemporâneo. Ele fere os princípios da economia processual, da boa-fé e da isonomia, desvirtua o papel da advocacia e compromete a confiança no sistema de justiça.
É tempo de reagir. A Nota Técnica do TJDFT é um chamado à responsabilidade — e deve ecoar em todos os fóruns, tribunais e escritórios do país. Justiça não pode ser fragmentada em parcelas de oportunismo. Justiça, para ser plena, precisa ser íntegra.