Fora do tradicional: trainee corporativo como meio de carreira jurídica

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A carreira jurídica sempre foi reconhecida como ampla e diversificada. Afinal, muitas são as possibilidades1: poder público (que reúne um mol de atuações, seja pelo Judiciário, procuradorias, Ministério Público e outras oportunidades mediante concurso); empreendedorismo (a atuação em startups jurídicas está em franca expansão); advocacia em escritórios de diversos tamanhos (e nas mais variadas áreas); empresas (o famoso jurídico corporativo), ou ainda, consultoria (quem nunca sonhou trabalhar em uma das Big Four?).

Conforme o mercado se amplifica e moderniza, as possibilidades de carreira acompanham essas transformações, trazendo novidades para nós – advogados e bacharéis em Direito. De fato, a profissão está em ampla expansão. Hoje, podemos ajudar em diversos segmentos, desde o Compliance, Privacidade de Dados e Segurança Cibernética, Governança Corporativa (com toda a sua teia de auditoria, Riscos e Controles), Relações Institucionais e Governamentais, ESG…

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Por meio deste artigo, meu objetivo é compartilhar um pouco de minha vivência prática e experiência enquanto advogada em um programa de trainee corporativo de uma multinacional e a conexão desse formato de desenvolvimento de carreira com o futuro da advocacia corporativa. É possível unir o mundo dos negócios tão densamente observado nos cursos de administração com toda a robustez jurídica que os estudantes de Direito aprendem nas instituições de ensino superior?

Eu ingressei no Programa de Trainee em 2022. Vivenciei um programa que buscou profissionais do mercado para, durante vinte meses, desenvolvê-los de forma intensiva e, na conclusão da jornada com o atendimento em alguns critérios de avaliação… Assumirem a liderança de áreas como Supply Chain (a cadeia de abastecimento), RH, Vendas, Marketing, Finanças e Jurídico.

Esse formato de ingresso na carreira corporativa é muito comum em empresas multinacionais, porém, nem sempre se via vagas jurídicas nesses programas. Como a abertura dessa possibilidade é recente no mercado, muitas organizações possuem seus Jurídicos investindo e trazendo grande valor para seus times. Ao decorrer desse texto, explico a razão.

Programas nesse sentido são estruturados de forma que cada trainee tenha a experiência significativa de desenvolvimento de gestão e estratégia de negócios e projetos antes de chegar à sua área fim – no meu caso, o objetivo era ingressar no Departamento Jurídico. Antes de chegar lá, por meio de rotações (“job rotation”), enfrentei desafios completamente fora da minha zona de conforto. Dentro de áreas conexas à minha cadeira final, participei do time de Vendas, por exemplo, e pude sentir na pele as delícias e os desafios que é ser uma cliente do Jurídico como irei me aprofundar a seguir.

Nas minhas rotações, eu passei pelas áreas de Compras (Procurement), Marketing e Vendas. Apesar dessas áreas terem sido escolhidas com base na cadeira que eu assumiria ao final do programa, minha atuação dentro delas não foi nada jurídica. Dentro de cada área eu deveria entregar projetos de grande valor, como se fosse uma integrante daquela equipe. Como qualquer membro daqueles times, era avaliada e tinha metas de performance ligadas aos objetivos de negócio. Precisava entregar valor por meio das minhas atividades. Era desafiada de forma constante e, com isso, passei a verdadeiramente a conhecer a organização.

Durante esses meses, eu literalmente aposentei minha OAB e fui mergulhar no negócio. Nas áreas onde eu estava, a meta era deixar ali alguma mudança de valor, desenvolvendo minhas habilidades de curiosidade, design thinking para solução de problemas (sempre com foco nas oportunidades), gestão de projetos, de pessoas e influência para fazer tudo acontecer no pouco tempo que eu teria dentro da área, afinal, na data acordada eu já deveria migrar para o próximo desafio.

Aliás, aqui fica um parêntese: influência2. Sabemos que para conquistar a confiança das pessoas, precisamos de tempo, um fator essencial. Como não tinha esse recurso à minha disposição, precisei usar a colaboração, humildade na comunicação, compreensão, transparência, empatia e MUITA humildade.

Seguindo com o desenvolvimento! Ao final das rotações, eu havia aprendido metodologias ágeis para desenvolvimento e priorização de projetos, mapeamento de processos, negociação com clientes, desenho e implementação de estratégia comercial regionalizada, desenho organizacional para estrutura de vendas e até o fluxo de valorização e viabilidade de um centro de distribuição.

Mas, afinal, o que isso gerava de importante para a minha cadeira final, se não tem nenhum conhecimento jurídico agregado à toda essa experiência? E aqui vem o ponto que mais costumamos subestimar enquanto advogados corporativos, a relevância e imprescindibilidade de se conhecer o negócio! Às vezes não medimos o impacto dessa sabedoria multidisciplinar.

Ser um advogado sênior ou júnior não mais diz respeito sobre o tempo de formação ou de OAB, mas sobre a capacidade de conexão estratégica com o negócio, propondo possibilidades e viabilizando negócios com a segurança jurídica necessária. E isso só é possível quando o advogado sai de sua versão de “portador do não” e vai conhecer o negócio para, a partir daí, se tornar um “viabilizador do sim” e passar a ser reconhecido como figura essencial para a estratégia da empresa.

Se eu fosse elencar 3 grandes benefícios dessa experiência no meu desenvolvimento profissional, seriam:

Conhecimento do negócio: conhecer o negócio, de ponta a ponta, possibilita pensar amplamente na organização, seus objetivos estratégicos e nos impactos de uma decisão para a operação. Enquanto advogada in-house, me faz saber as dores e necessidades do meu cliente interno, fazendo com que eu saiba como suportá-lo com qualidade, agilidade, pertinência ao que realmente faz sentido à operação para então, viabilizar negócios.

Adaptabilidade: estar em constante mudança, se adaptar ao modelo de cada área em que passei, conhecer as particularidades, entender as dores e desafios de cada uma e estar apta o suficiente para entregar algo de valor ali me fez estar em constantes “zonas de desconfortos”, no sentido de ter que aprender algo novo a cada dia, me desafiar e, dia após dia, me entender capaz de fazer aquilo que eu havia me proposto, desenvolvendo coragem, adaptabilidade e resiliência.

Design Thinking: Muito se fala design thinking como uma metodologia de pensamento crítico e resolução de problemas, mas eu gosto de romantizar o método, traduzindo-o como “generosidade e empatia”. Durante o programa, o que eu mais precisei desenvolver foi a habilidade de me colocar no lugar da área, entender e adotar seus desafios como se fossem meus e buscar, genuinamente, solucioná-los. Eu vejo essa habilidade como uma das mais relevantes não só para o papel do advogado in-house, como qualquer outra cadeira da companhia. É a verdadeira tradução do “estamos no mesmo barco” e embora a dor de uma área não impacte diretamente a outra, ela fragiliza o funcionamento do barco como um todo.

Por fim, embora esse formato de programa de desenvolvimento não seja muito comum entre os jurídicos das corporações (espero que muitos outros o adotem!), acredito verdadeiramente que isso mudará num futuro bem próximo. Quando falamos do futuro da advocacia corporativa, sempre falamos do advogado como um líder do negócio com conhecimento jurídico e, um programa de trainee certamente possibilitará alcançarmos esse objetivo, desenvolvendo esses líderes e suas habilidades de forma acelerada. Se você é estudante de Direito e quer começar sua carreira com uma rápida aceleração… Deve realmente considerar essa possibilidade. Você não vai se arrepender!

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1 Veja uma série de possibilidades em matérias sobre a transformação da profissão, como essas que compartilho aqui feitas pela UESB, a Estadual do Sudoeste da Bahia <http://www.uesb.br/noticias/que-profissao-e-essa-o-direito-como-transformacao-social-atraves-da-lei/> e pela FGV, a Fundação Getulio Vargas <https://portal.fgv.br/noticias/dia-advogado-estudantes-veem-direito-dispositivo-transformacao-social>. Ambas acessadas em 08/10/2023.

2 Saiba mais sobre a liderança por influência no site do IBC Coaching em <https://www.ibccoaching.com.br/portal/lideranca-e-motivacao/lider-influencia-grande-aposta-organizacoes/#:~:text=por%20que%20apostar%3F-,L%C3%ADder%20por%20influ%C3%AAncia%3A%20rela%C3%A7%C3%A3o%20de%20confian%C3%A7a,de%20forma%20horizontal%2C%20encurtando%20dist%C3%A2ncias.>. Acesso em 08/10/2023.