Este é o terceiro de uma série de artigos escritos ao JOTA sobre Fiscalização e Contencioso Administrativo Tributário do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), novos tributos introduzidos pela reforma tributária do consumo.
Como sabido, a Emenda Constitucional 132/2023 (EC 132/23) trouxe mudanças significativas ao sistema tributário nacional, substituindo o ICMS e o ISS pelo IBS, e o PIS e a Cofins pela CBS, além de criar um imposto seletivo, que incidirá sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Para regulamentar essa EC, foram protocolados alguns Projetos de Lei Complementar (PLPs), destacando-se o PLP 50 (elaborado pelo projeto Mulheres no Tributário, em parceria com a Frente Parlamentar do Empreenderismo – FPE), e os PLPs 68 e 108 (de autoria do Poder Executivo).
No primeiro artigo, redigido anteriormente ao protocolo dos mencionados PLPs e em coautoria com Ana Cláudia Utumi e Roberta Gemente, foram apresentadas breves sugestões para a estruturação de um contencioso administrativo ideal, alinhado aos princípios constitucionais da justiça fiscal, simplicidade, transparência e cooperação[1], linhas mestras da reforma tributária em comento.
No segundo artigo, coescrito com Ana Carolina Brasil Vasques e elaborado após o protocolo dos PLPs 50 e 68, foram analisados e confrontados os principais pontos de cada projeto, objetivando destacar o modelo de fiscalização e solução administrativa de litígios que melhor consolidasse os ganhos da reforma tributária obtidos até aquele momento. Concluiu-se pela pertinência e adequação do PLP 50, considerando a necessidade de simplificação do complexo ordenamento jurídico tributário do país, por meio da abordagem centralizada das atividades de fiscalização e contencioso administrativo do IBS e da CBS.
No presente artigo, a análise se volta ao recém-protocolado PLP 108/2024, que instituiu o Comitê Gestor do IBS e dispôs sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício desse imposto, além de prever outras providências. A tarefa aqui é especialmente desafiadora, na medida em que o projeto suscita preocupações ainda maiores para o contencioso administrativo do IBS, apresentando riscos consideráveis que podem comprometer os objetivos de simplificação, eficiência, segurança jurídica e justiça fiscal da reforma tributária.
O estudo detido do PLP 108 indica que a proposta governamental apresenta alguns avanços, como a contagem dos prazos processuais em dias úteis e a previsão de recesso (suspensão do curso dos prazos) entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, ambos alinhados às melhores práticas processuais cíveis. No entanto, o projeto falha em garantir segurança jurídica e simplicidade, que deveriam permear todas as relações entre Fiscos e contribuintes.
Longe de promover a necessária integração das atividades de apuração, fiscalização, cobrança e uniformização das interpretações tributárias entre IBS e CBS, o PLP 108 propôs a criação de um contencioso administrativo do IBS unificado para Estados, Distrito Federal e Municípios, a ser exercido pelo Comitê Gestor.
O que surpreende é que, na contramão de todos os princípios constitucionais aqui já mencionados, o projeto propõe a manutenção das estruturas administrativas de julgamento em cada uma das 27 (vinte e sete) unidades federativas do país. Isso significa que cada Estado continuará com sua própria administração fazendária de fiscalização e com sua própria estrutura de julgamento em 1ª e 2ª instâncias. Certamente, tal estrutura resultará em interpretações variadas (e possivelmente conflitantes), além da aplicação desigual das normas tributárias sobre operações semelhantes.
Manter um tribunal administrativo em cada Estado contribui não apenas para a fragmentação do contencioso tributário, mas também levanta muitas questões sobre a eficiência da fiscalização e do julgamento administrativo como um todo. Essa fragmentação provoca verdadeiro uso ineficiente dos recursos públicos, devido à multiplicidade de esforços das autoridades fiscais em suas atividades fiscalizatórias e de julgamento.
Outro ponto que requer bastante atenção é a previsão de um contencioso administrativo composto por três instâncias, em que apenas UMA delas (a 2ª instância) contará com a participação de julgadores representantes dos contribuintes.
Tal proposta é especialmente preocupante. E isso porque, na 1ª instância, haverá a participação de 5 julgadores oriundos das administrações fazendárias. Na 2ª instância, serão 9 julgadores: 4 representantes dos contribuintes, 4 representantes do Fisco, e um presidente, também do Fisco, que votará apenas em caso de empate. A 3ª instância, chamada de Câmara Superior do IBS, destinada à uniformização da jurisprudência do novo imposto, será composta EXCLUSIVAMENTE por representantes dos Estados e Municípios, sem a participação da iniciativa privada. A falta de paridade entre Fisco e contribuintes compromete a imparcialidade e a equidade do processo tributário, afetando diretamente a segurança jurídica tão almejada pela reforma tributária. E isso não pode ser aceito!
Como se vê, a estrutura proposta pelo PLP 108/2024 para a fiscalização e o contencioso administrativo do IBS apresenta sérios problemas que podem comprometer os objetivos de simplificação e justiça fiscal da reforma tributária. A descentralização das atividades fazendárias de fiscalização e julgamento, a manutenção de 27 tribunais estaduais independentes e a limitação a uma única instância administrativa com a participação de julgadores representantes dos contribuintes são pontos críticos que precisam ser revistos para garantir um sistema tributário mais eficiente, simples, uniforme, justo e seguro.
Para que a reforma tributária atinja seus objetivos constantes da EC 132, é preciso reconsiderar a estrutura de fiscalização e solução de conflitos administrativos tanto do IBS (PLP 108) quanto da CBS (PLP 68). É imprescindível, portanto, a criação de um modelo que contemple a centralização do contencioso administrativo do IBS e da CBS, assegurando segurança jurídica, simplicidade e eficiência.
Essa abordagem beneficia não apenas as empresas, mas também reverbera positivamente em toda a sociedade. Ao melhorar o ambiente de negócios, esse novo modelo favorece a geração de empregos e renda, impulsionando o crescimento econômico e, consequentemente, ampliando a arrecadação tributária, tão almejada pelo governo.
[1] Art. 145. (…) § 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. (Incluído pela Emenda Constitucional 132, de 2023)