Por unanimidade, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu que a Associação Fiquem Sabendo deve ter acesso a informações contidas em três processos administrativos em tramitação na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que foram desclassificados. Em primeira instância, a 4ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF) negou o acesso sob o fundamento de que os documentos contêm informações sensíveis que poderiam expor a Abin, assim como os servidores que trabalham na Agência.
O desembargador Flávio Jardim, relator do recurso no colegiado do TRF1 entendeu, por outro lado, que os documentos requeridos pela Fiquem Sabendo estão desclassificados, conforme consta das respostas da própria Abin e dos pareceres da Controlador-Geral da União (CGU). Além disso, segundo o relator, a tese da Administração Pública de que o conteúdo sensível das informações desclassificadas justificaria a manutenção do sigilo por prazo indeterminado não se sustenta juridicamente, por implicar a criação de nova categoria de sigilo legal sem amparo normativo.
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Por essa razão, o magistrado concluiu que, por conta da desclassificação das informações, cessam os efeitos do regime de sigilo previsto no art. 24 da Lei 12.527/2011, a Lei de Acesso à Informação (LAI), o que impõe o reconhecimento do direito de acesso público. Nesse sentido, Jardim destacou que se foram desclassificadas, são informações que, “em poder dos órgãos e entidades públicas, foram consideradas sigilosas, dada a imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, porém pelo período legalmente determinado”.
De acordo com o desembargador, transcorrido o período da classificação das informações, o sigilo não é mais legalmente necessário para proteger os bens jurídicos, tornando-as públicas. Além disso, Jardim reiterou que não cabe à Abin impedir a abertura do sigilo sob a alegação de que essa retirada da restrição do acesso exporá “o peculiar funcionamento do órgão”. Esse bem jurídico, segundo o relator do caso, já foi ponderado pelo legislador, que entendeu não merecer sigilo após o prazo ter finalizado.
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O desembargador concluiu que o impedimento imposto pela Abin configura ato ilícito, na medida em que contraria os objetivos perseguidos pelo legislador ao limitar, no tempo, a restrição de acesso a documentos públicos. “Salvo na hipótese de resguardo de informações pessoais, excluídas das hipóteses acima, não há justificativa legítima para manter o sigilo”, decidiu.
‘Secrecy abuse’
Na decisão, Jardim ainda destacou que a doutrina internacional reconhece a importância de os Tribunais evitarem o que se qualifica como “secrecy abuse”. Conforme ele ressaltou, a liberdade de expressão abrange não somente o direito à fala, mas também o direito de acesso à informação e a ideias.
Assim, assinalou que o recurso ao Poder Judiciário, em um caso como o apreciado por ele, é necessário, uma vez que a decisão administrativa, se mantida, “torna permanentemente sigilosas e sem chance de recurso informações já desclassificadas e, portanto, em tese, não mais sigilosas”.
Logo, concluiu que caso a Fiquem Sabendo deseje obter informações sobre as quais a Abin alegue dizerem respeito a dados pessoais, relativos à intimidade, vida privada, honra e imagem de cidadãos, nos termos do art. 31 da Lei 12.527/2011, deverá requerer sua submissão a exame judicial específico, no âmbito do cumprimento de sentença, mediante procedimento de in camera review, cabendo ao juízo decidir quanto à divulgação ou manutenção do sigilo.
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O procedimento, segundo Jardim, assegura que, caso o juízo entenda necessária a restrição de acesso, a informação não se torne pública — inclusive para a associação que ajuizou o recurso.
O caso concreto
No caso analisado, a associação Fiquem Sabendo, especializada no acesso a informações públicas, entrou na Justiça com pedido de concessão de tutela de urgência para obrigar a União Federal a fornecer o acesso às informações contidas nos processos administrativos 00077.000749/2019-81, 00077.001410.2019-01 e 00077.001303/2019-74, em curso na Abin.
A associação sustenta nos autos que apresentou vários pedidos de acesso aos documentos desclassificados, detidos pela Agência, que foram negados administrativamente em 1ª e 2ª instâncias e ainda na CGU, sob o fundamento de que não há como dar acesso aos referidos documentos em razão do sigilo específico previsto pelos artigos 9º e 9º-A da Lei 9.883/1999 – que instituiu a Abin. A Fiquem Sabendo também alegava que a negativa de acesso às informações contraria os preceitos constitucionais e os princípios da LAI. O Ministério Público Federal (MPF) havia se manifestado pela procedência dos pedidos da associação.
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A União, por outro lado, argumentou que os documentos cujo acesso foi solicitado passaram por um minucioso processo de análise para verificar se, embora desclassificados, contêm informações de caráter sensível. Nessa análise, disse que “observou-se que todos os documentos contêm informações capazes de expor a peculiar atuação da Abin, sendo, portanto, considerados sigilosos, conforme previsão do art. 9º-A da Lei 9.883/1999”.
O pedido da organização foi negado pelo juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Federal Cível da SJDF. Após a decisão, a Fiquem Sabendo entrou com um recurso pretendendo a reforma da decisão para obter o acesso às informações solicitadas.
Ao JOTA, Maria Vitória Ramos, cofundadora e diretora da Fiquem Sabendo, afirmou que a ação julgada pelo TRF1 cria um precedente para “deixar ainda mais claro que a Lei de Acesso à Informação vale e que os prazos da legislação valem”. A expectativa de Ramos é que, a partir desse reconhecimento do Judiciário para o acesso às informações contidas nos processos, também se estenda esse direito a todos os demais órgãos públicos, para que “o sigilo eterno no Brasil de fato não exista mais”.
“Trata-se de um precedente muito valioso também para nortear a administração pública como um todo, especialmente para se determinar que, com o término dos prazos das classificações de sigilo, a abertura das informações deve se dar de forma automática. Por fim, por se tratar de uma decisão de segundo grau, ela gera efeitos imediatamente para o caso concreto, além de servir de jurisprudência para os demais tribunais federais de todo o país” , disse Fernando Canhadas, advogado do escritório Lima Law que ajuizou a ação em nome da Fiquem Sabendo.
O processo tramita com o número 1015187-50.2020.4.01.3400.