Fim da reeleição: o retorno do debate

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A recente aprovação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado de uma proposta que visa extinguir a reeleição para cargos do Executivo reacende um debate estruturante no Brasil contemporâneo: o equilíbrio entre responsabilização democrática, estabilidade institucional e renovação política.

A discussão, embora antiga, permanece atual, sobretudo diante das tensões recorrentes entre performance governamental e regras do jogo democrático.

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Reeleição e democracia: entre autonomia eleitoral e accountability

Os argumentos a favor da extinção da reeleição são conhecidos: evitar a concentração de poder, reduzir práticas clientelistas, prevenir governança populista e estimular a alternância no poder. Contudo, à luz da teoria democrática e da literatura em Ciência Política, tais premissas merecem ponderação mais rigorosa.

A possibilidade de reeleição, quando ancorada em limites institucionais claros e mecanismos de controle eficazes, cumpre uma função essencial nas democracias liberais: fortalecer a accountability vertical.

A reeleição oferece ao cidadão a oportunidade de julgar retrospectivamente o desempenho do governante. É o mecanismo que materializa o princípio de que o poder emana do povo, permitindo que o eleitor decida se um projeto de governo deve ser interrompido ou renovado.

Przeworski e O’Donnell destacam que a accountability requer dois componentes: informação e sanção. A reeleição é o canal que viabiliza a segunda parte dessa equação – a possibilidade de punir ou premiar com base na performance.

Retirar esse mecanismo pode, paradoxalmente, produzir distorções. Governantes sem perspectiva de continuidade no cargo tendem a operar com horizontes temporais curtos, priorizando ações de impacto imediato, com baixa preocupação com legados duradouros.

Como observa Arato, em contextos democráticos frágeis, a ausência de sanções futuras reduz os incentivos à boa governança e à construção de políticas públicas consistentes. Ao contrário do argumento dominante, a reeleição pode funcionar como um freio contra o oportunismo político, ao condicionar a continuidade de poder à aprovação popular.

Além disso, o receio de “governança eleitoreira” ignora um princípio básico da democracia representativa: a responsividade. Em regimes democráticos, espera-se que os governantes ajam com sensibilidade em relação às demandas da sociedade.

A busca pela reeleição, em si, não é disfuncional — disfuncionais são os desvios éticos ou o uso indevido da máquina pública. O que está em jogo, portanto, não é a existência da reeleição, mas sim a qualidade das instituições de controle e fiscalização.

Perspectivas acadêmicas sobre o debate no Brasil contemporâneo

A literatura empírica no Brasil confirma que os eleitores não são irracionais ou indiferentes. Pesquisas como as de Rennó e Hoepers demonstram que os cidadãos são capazes de avaliar políticas públicas e utilizam o voto para expressar tais julgamentos. A reeleição, nesse contexto, torna-se um instrumento eficaz de aferição da legitimidade e da eficácia governamental.

Argumenta-se ainda que a reeleição inibe a renovação política. Entretanto, a alternância pelo simples fato de mudar não é, por si, um valor democrático absoluto. A renovação que fortalece a democracia é aquela fundamentada na escolha livre e informada dos cidadãos, e não em proibições impostas pelo sistema político. 

Impedir a reeleição é limitar a soberania do eleitor, que fica impedido de confirmar no poder um governante que considera competente. Como mostram Cinquini, Castro e Nunes, o eleitorado brasileiro, apesar dos desafios de desinformação e polarização, é capaz de exercer preferências informadas e coerentes.

Mesmo no campo legislativo, estudos como os de Pieri mostram que a experiência política acumulada e a continuidade de mandatos podem contribuir para a melhoria da ação parlamentar, algo que também se aplica ao Executivo. Cortar essa possibilidade em nome de uma rotatividade obrigatória pode gerar descontinuidade administrativa e enfraquecer a capacidade estatal.

Em síntese, o princípio do julgamento retrospectivo — central à teoria democrática — pressupõe que a performance do incumbente seja avaliada com base em critérios objetivos, e que o eleitor tenha o poder de decidir sua continuidade. 

A reeleição limitada a um segundo mandato, como existe hoje no Brasil, oferece esse equilíbrio. Sua extinção, sob o pretexto de combater abusos, pode enfraquecer justamente o mecanismo que mais aproxima o cidadão do processo decisório e da responsabilização dos governantes.

Uma solução mais adequada: a qualificação do processo democrático

Problemas reais como abuso de poder político, clientelismo e personalismo não serão resolvidos por meio da proibição da reeleição, mas por meio de regras mais rígidas de transparência, fortalecimento das instituições de controle e estímulo à participação cidadã. 

Subtrair do eleitor o direito de decidir pela continuidade de um projeto bem avaliado é comprometer a vitalidade da democracia representativa, deslocando o centro da decisão das mãos da sociedade para o aparato institucional.

Portanto, o debate mais promissor não é o que busca eliminar a reeleição, mas aquele que investe na qualificação do processo democrático: mais controle, mais informação e mais participação. 

A reeleição, longe de ser uma ameaça, pode ser uma ferramenta de aperfeiçoamento da democracia, desde que operada em um ambiente institucional saudável e sob vigilância ativa da sociedade civil. Ademais, nenhuma democracia de relevo veda a recondução do incumbente, pelo contrário, algumas permitem até mais de uma recondução, mais uma evidência em favor da autonomia do eleitor.


ARATO, Andrew. Civil Society, Constitution, and Legitimacy. Rowman & Littlefield, 2002.

CASTRO, Gustavo da Silva; NUNES, Felipe. O voto retrospectivo no Brasil: avaliação de governo e escolhas eleitorais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 29, n. 86, 2014.

CINQUINI, Rodrigo. Voto e desempenho: uma análise da reeleição nas democracias presidenciais. Tese (Doutorado em Ciência Política) – UFRGS, 2017.

O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Revista Lua Nova, n. 44, 1998.

PIERI, Thiago Nogueira. A profissionalização da política e os efeitos da experiência parlamentar no legislativo brasileiro. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011.

PRZEWORSKI, Adam. Democracy and the Market: Political and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America. Cambridge University Press, 1991.

RENNÓ, Lucio; HOEPERS, Bruno. Assistencialismo ou desempenho? Determinantes da reeleição presidencial no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 53, n. 1, p. 41–72, 2010.