Falta dinheiro, mas não pode faltar respeito

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O primeiro semestre de 2025 vai chegando ao seu fim e, com ele, pelo menos três fatores abalam a governabilidade federal brasileira: a escassez orçamentária, a dimensão da fraude aplicada nos aposentados e a queda de popularidade do chefe do Executivo.

Embora haja inúmeros outros desafios ao sonhado avanço brasileiro, a combinação acima levou a Advocacia-Geral da União (AGU) a ajuizar, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), uma ADPF que se autodeclarou como o documento hábil a salvar o reembolso efetivo dos aposentados.

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O documento é assinado em junho de 2025 e contém 77 páginas onde, além de narrar o último quinquênio de rombos sucessivos nas aposentadorias de milhões de brasileiros, aponta-se que, só após a Operação Sem Desconto foi possível ter noção das irregularidades ocorridas no sistema previdenciário federal.

Entre os diversos fundamentos da peça, a AGU tenta reverter um entendimento assentado pelo Poder Judiciário, contido no Tema 326 da Turma Nacional de Uniformização, de que o INSS responde objetivamente pelos descontos indevidos efetuados em benefícios, afinal, a gestão hígida do sistema está sob sua alçada.

Deve-se todo respeito à tese do Executivo federal, ao se defender, exceto com relação a um dos argumentos destacados na ADPF, de que a nova solução de devolver espontaneamente os descontos ilegais é atrapalhada por:

“uma judicialização sem precedentes, que está inundando o Poder Judiciário com ações das mais diversas, além de notícias sobre litigância abusiva, que está a prejudicar ainda mais os aposentados” … “muitas delas com os exatos contornos do que vem sendo chamado de ‘litigância predatória’”. (…)

“Aposentados de todo o país poderão ter a tutela dos seus direitos injustamente postergada ou inviabilizada, pois estão sendo vítimas de ações predatórias – ajuizadas muitas vezes sem o seu conhecimento – ou estão postulando direitos claramente indevidos”. [1]

Assim escrita, está declarada uma inadmissível falta de respeito com a advocacia de massa brasileira, sobretudo a previdenciária.

Desde 2019, milhares de advogadas e advogados denunciam, em ações judiciais massificadas (repetidas), que seus clientes foram vítimas de descontos involuntários que vão de taxas associativas impertinentes até parcelas de serviços funerários não solicitados.

Sim, são centenas de milhares de ações obviamente porque foram milhões de vítimas identificáveis.

Tais medidas aportaram ao Judiciário pelo trabalho honesto de profissionais que têm contato pessoal diário e profícuo com pensionistas e aposentados humildes, para lhes prestar assistência judiciária das mais valiosas e satisfatórias. As ações têm textos e documentos iguais? Sim! Porque idênticas são (e foram) as práticas perpetradas contra essas vítimas.

Como preconiza o ministro Dias Toffoli – sempre advertindo para olhar para a vida como ela é – no mundo concreto, cuida-se de um conjunto de profissionais liberais especializados que se lançam a conquistar a confiança de seus clientes, a mais das vezes sem lhes cobrar valores iniciais, participando legalmente de parcela do êxito que for recuperado em favor de seu assistido. Tudo mediante trabalho profícuo de estudar, elaborar iniciais, acompanhar andamentos, realizar audiências, atender-lhes os prazos, formular recursos (se for o caso) e aguardar o resultado que vier.

E o que fez a AGU, nos últimos seis anos, judicialmente? Trabalhou igualmente (parcela da advocacia que representa) e contestou todas as centenas de milhares de ações com fundamentos jurídicos que optaram, via de regra, por defender a validade desses descontos efetuados contra os aposentados, perdendo boa parte de tais demandas por decisões judiciais devidamente fundamentadas em lei.

Se a AGU demorou mais de cinco anos para mudar sua posição, alegando ter ouvido a Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal, foi porque não deu crédito nem razão ao que milhares de advogados haviam escrito e comprovado. Agora, alardear um colapso por conta dos processos judiciais manejados contra esses descontos ilegais é – em inconcebível inversão de papéis – tentar transferir parcela de responsabilidade própria (governamental) a quem jamais faltou com o dever e esteve ladeado aos cidadãos vitimizados na hora e lugares certos: seus advogados.

O que enfraquece a interação institucional de respeito que deve existir entre as advocacias púbica (representada pela AGU) e privada (personalizada nos milhares de advogados que defenderam aposentados e pencionistas) é o fato de aquela primeira optar pelo estratagema argumentativo genérico e lacônico de que estes últimos estariam abusando do direito de defesa e de seus clientes.

Sim, o uso da expressão “litigância predatória” foi empregado em parte da defesa da AGU, sob o enredo pueril de que existem procurações falseadas e aposentados desconhecedores das medidas adotadas em seu benefício. Ora, se algo de ilícito paira sob qualquer processo judicial individual manejado em favor de um aposentado, é obrigação da AGU apontar em qual caso isso ocorreu, contra quem e tomar as medidas cabíveis no âmbito adequado: os Tribunais de Ética das respectivas Seccionais da Ordem dos Advogados.

Já a postura de antecipar, presumir ou fulanizar uma sutil corresponsabilidade da advocacia aos ilícitos cometidos contra os aposentados, trata-se de colocação que jamais pode ser aceita!

O uso de um estigma genérico como fundamento jurídico, a essa altura do campeonato, faz lembrar as mesmas acusações incongruentes que um então juiz federal paranaense fazia a competentes advogados que se posicionavam insistentemente contra graves abusos ao Estado democrático de Direito:

“Moro critica advogados por ‘abuso do direito de defesa’: ‘parte das defesas, ao invés de discutir o mérito e esclarecer os fatos centrais do processo, apresenta inúmeros requerimentos probatórios destinados a procrastinar o fim da ação penal”.[2]

Ora, assim como a Lava Jato foi um conjunto de agressões a direitos fundamentais denunciada pela resistência de uma advocacia (bem simbolizada na pessoa do hoje ministro Cristiano Zanin), hoje, os advogados previdenciários do Brasil deveriam ser festejados, e não defenestrados.

Na tão copiada América do Norte, curiosamente, o advogado que descobriu e lutou contra uma fraude similar a essa, traquejada contra vulneráveis que sofreram descontos ilegais de auxílio funeral, virou herói e tema de filme (O próprio enterro, 2023)[3], notabilizado pelas atuações de Jamie Foxx e Tommy Lee Jones. Por aqui, quem luta contra um sistema previdenciário falho, está sendo taxado de vilão.

A Justiça de primeiro grau brasileira, sobretudo os Juizados Especiais Federais, é o portal de cidadania previdenciária do brasileiro, tendo em cada advogado que por lá demanda, uma chave-mestra “que liberta” (como diria o magnífico poeta de rua Duck Jay[4]). As taxas de sentenças favoráveis a beneficiários, obtidas nas proposições contra o INSS, atestam que não há abusos por parte dos vulneráveis.

Em artigo para este JOTA, recentemente, foi destacado o voto do ministro presidente do Superior Tribunal de Justiça, Herman Benjamin, no julgamento do Tema 1.198, ocorrido na Corte Especial, onde se consagrou que centenas de milhares de litígios repetidos só existem porque foram “provocados por um comportamento absolutamente predatório por parte de um dos agentes econômicos ou do próprio Estado. Porque o Estado também pode praticar, e pratica (nós sabemos) comportamentos predatórios[1].

No último dia 17 de junho, com o peticionamento mais novo da AGU na referida ADPF, depara-se com uma sugestão de composição, na qual faltou a convocação expressa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (cingindo-se a convidar à mesa “instituições… tais como a Defensoria Pública e do Ministério Público Federal).

Enfim, se a quadra é claramente notabilizada pela falta de dinheiro para arcar com a conta a que se propõe pagar, sobre isso, a advocacia brasileira sabe muito bem como lidar, respeitosamente. Cortar nas somas a serem devolvidas e nos honorários, obviamente, é um resultado que uma coletiva poderá alcançar, desde que sejam respeitados todos os atores do processo e suas garantias fundamentais.

A falta de respeito na infeliz opção por exortar a “litigância predatória” contra advogados previdenciários não pode passar despercebida e, de tão desmedida, deve – antes de tudo – ser riscada dos autos da ADPF na forma do artigo 78, § 2º, do CPC, mercê da impertinência de misturar quem é investigado (e sequer foi condenado na Operação Sem Desconto) em conjunto com quem defende, por longos anos, pensionistas e aposentados neste país.


[1] MOURA, Walter. Lobos em pele de cordeiro. Jota. 2025.

[1] STF. ADPF 1.236/DF. Peça 1. §§ 11, 12 e 63. 2025

[2] Moro critica advogados por “abuso do direito de defesa”. Disponível em: <<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/moro-critica-advogados-por-abuso-do-direito-de-defesa-8ivnnqdf6w2jda2kcevo4k73k>>. Acessado em 2025.

[3] BETTS, Maggie. The Burial, 2023.

[4] JAY, Duck. Chave Mestra. Tribo ada Periferia. 2024.