A Academia Brasileira de Neurologia estima que cerca de 5 mil pessoas tenham neuromielite óptica (NMO) no país, uma doença rara, de característica autoimune e inflamatória. A condição é grave e pode ter sequelas irreversíveis. Acomete o sistema nervoso central, com repercussões como cegueira e paraplegia, complicações que impactam diretamente na qualidade de vida dos pacientes.
Embora existam tratamentos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para evitar episódios (ou surtos) de sintomas, a doença é considerada subdiagnosticada e carece de terapias específicas no Sistema Único de Saúde (SUS).
Uma dessas medicações é o inebilizumabe, um fármaco específico para a condição e aprovado pela Anvisa desde 2022. O medicamento está em análise desde o ano passado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), com o intuito de ser disponibilizado aos pacientes com neuromielite óptica.
Na 128ª Reunião Ordinária da Conitec, que ocorreu entre os dias 10 e 11 de abril, o fármaco passou por apreciação do colegiado, e teve parecer desfavorável. Agora, o relatório com as considerações da comissão estão em consulta pública até 28 de maio – para ouvir especialistas, organizações, pacientes e quem mais possa contribuir para o entendimento sobre o potencial do tratamento e a doença. A partir de então, a Conitec poderá rever seu posicionamento
Uma vez que medicamentos voltados à neuromielite óptica não estejam disponíveis no SUS, é gerada ainda maior dificuldade de acesso dessa população, que demanda por um protocolo de tratamento próprio para a doença – o que também não existe no sistema de saúde nacional.
Atualmente, como consequência da falta de inclusão de exames laboratoriais e de terapêutica no sistema público, a doença não tem um Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) específico. O documento reúne recomendações padronizadas sobre diagnóstico e manejo da condição no SUS, essencial para uniformidade de condutas e cuidados desses pacientes.
De acordo com especialistas, a falta de protocolo acaba por aumentar a invisibilidade da doença no país, tendo em vista que a condição já atinge populações de maior vulnerabilidade social. E a aprovação de uma terapia direcionada poderia ser um primeiro passo para mudar esse cenário.
Além dos sintomas de perda visual e redução da força nos membros são sintomas comuns presentes nos surtos da doença, o contexto da doença é especialmente delicado por impactar com maior frequência as populações afrodescendentes e asiáticas. Além disso, se estima que nove em cada dez pacientes com neuromielite óptica são mulheres.
“Há a predominância em uma população vulnerável considerando as questões sociais dos aspectos étnicos. Ainda hoje, esses pacientes não são reconhecidos pelo SUS em relação a diagnóstico ou tratamento, uma vez que não há nenhuma diretriz que norteie essas questões”, afirma Doralina Brum, neurologista e professora da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
O que é a neuromielite óptica?
Por muito tempo, a neuromielite óptica foi interpretada como parte do espectro da esclerose múltipla. A partir de novos estudos na área, a literatura passou a individualizar a doença com um diagnóstico próprio.
Anteriormente conhecida como doença de Devic, a neuromielite óptica atinge o sistema nervoso central. Como toda doença autoimune, ocorre por perda da tolerância imunológica, isto é, a produção de anticorpos patogênicos contra estruturas teciduais do próprio organismo se tornam alvo.
Nesse quadro, um dos alvos é uma proteína chamada aquaporina 4, presente nas células de sustentação de diversas estruturas do sistema nervoso. O anticorpo anti-aquaporina (anti-AQP4) é o biomarcador diagnóstico da neuromielite óptica.
“A presença de anticorpos direcionados contra essa proteína, o anticorpo anti-AQP4, causa lesão em áreas específicas, principalmente nos nervos ópticos e medula espinhal. Na maioria das vezes, essas lesões são irreversíveis e deixam sequelas incapacitantes e permanentes nos indivíduos”, explica a neurologista Claudia Cristina Ferreira Vasconcelos, também coordenadora do Departamento Científico de Neuroimunologia da Academia Brasileira de Neurologia.
Conforme reforçam as médicas, estudos estimam que até 50% dos pacientes não tratados evoluem com cegueira e perda de mobilidade das pernas, de forma que é necessário o uso de cadeira de rodas, em até cinco anos de evolução da doença.
Para os pacientes que apresentam a neurite óptica, ou seja, a inflamação do nervo óptico, cerca de sete em cada dez não têm recuperação completa do quadro. Ainda, entre os que apresentam mielite, ou inflamação da medula espinhal, a maioria também não se recupera totalmente do quadro.
“O indivíduo começa a enxergar com dificuldade, aparece um escuro na visão, ou começa a enxergar como se estivesse vendo através de um vidro fosco, às vezes acompanhando de dor na movimentação dos olhos. Pode ter perda da força muscular nos braços e nas pernas, incontinência urinária e alteração de sensibilidade nos membros inferiores, a partir do umbigo”, detalha o neurologista Felipe von Glehn, professor da Faculdade de Medicina da UnB Universidade de Brasília (UnB).
Da falta de informação ao diagnóstico
A jornalista Cleide Lima, de 41 anos, sentiu na pele a dificuldade do diagnóstico. Os sintomas começaram em 2016, mas apenas dois anos depois teve contato com informações sobre a doença. “Apresentei sintomas como vômitos ininterruptos, parestesia nas pernas, inclusive com dificuldade de andar e para controlar a urina, e também perda visual”, relembra.
Os sintomas ocorreram em quatro episódios. Durante o último surto da doença, em 2018, Lima passou por um período de cegueira total. “Na época, passei por diversas especialidades médicas clínicas e nenhum médico desconfiava que poderia ser algo neurológico. Apenas quando tive alterações visuais fui a um oftalmologista que me indicou procurar um neurologista, pelas características do quadro que eu estava apresentando”, conta a jornalista. Segundo especialistas, esse dado mostra a necessidade de educação médica continuada, divulgação para a população e oferta de serviços de referência para agilizar o diagnóstico e tratamento.
“Como é uma doença rara, há uma deficiência de informação acessível e divulgada sobre ela. Dessa forma, há uma dificuldade na vida dos pacientes tanto para fechar o diagnóstico quanto em relação a encontrar um tratamento para controlar os sintomas”, diz Lima. Para auxiliar outros pacientes e familiares, a jornalista fundou a Associação Brasileira de Neuromielite Óptica (ABNMO), de forma a transmitir conhecimento sobre o distúrbio.
Para ela, há uma evidente necessidade da definição de um protocolo clínico, de forma a fornecer uma orientação sobre a doença, do diagnóstico ao tratamento. “Seria muito importante para que a comunidade médica e os espaços de saúde saibam como direcionar, tratar e cuidar desses pacientes, de forma a atuar no controle e prevenção de novos episódios”, acrescenta a jornalista.
De acordo com Felipe von Glehn, da UnB, a maior dificuldade no Brasil está relacionada ao acesso ao exame diagnóstico. “Existe um biomarcador no sangue que auxilia no diagnóstico. Ele está disponível através da Agência Nacional de Saúde Suplementar [ANS] para quem tem plano de saúde, mas não está pelo SUS”, relata.
O exame considerado padrão-ouro da pesquisa do anticorpo anti-aquaporina 4 (anti-AQP4), presente na neuromielite óptica, é o cell based assay (CBA). O teste foi incluído em 2018 no rol de procedimentos da ANS, mas não é oferecido no sistema público de saúde, o que prejudica milhares de brasileiros.
Dificuldades no tratamento
O indivíduo com neuromielite óptica, em geral, enfrenta duas preocupações relacionadas à doença: os surtos, que são os momentos em que há a manifestação aguda dos sintomas, e a prevenção desses novos episódios. Esses dois estágios demandam tratamentos distintos.
Em relação aos surtos, as intervenções utilizadas são a plasmaferese e a pulsoterapia com metilprednisolona. Para o tratamento da condição, no intuito de evitar novos surtos, há o uso de medicamentos na forma off label (desenvolvidos para outras doenças, mas com efeito sobre a neuromielite óptica), como o rituximabe.
“A boa prática médica não recomenda que se utilize drogas com indicação fora de bula [off label] caso existam drogas com indicação formal em bula e aprovação pela Anvisa. Essa prescrição justifica-se quando a doença é órfã de tratamento ou seja, quando não existem tratamentos aprovados para determinada doença”, detalha o neurologista Ronaldo Maciel.
De acordo com ele, o uso off label pode ganhar credibilidade ao longo do tempo, mas não é o suficiente quando equiparado a medicamentos específicos para a doença: “Não há o poder estatístico de uma droga que passou por estudos clínicos controlados e comparados”, acrescenta.
Recentemente, a Anvisa aprovou três medicações destinadas ao tratamento da doença, que são o ravulizumabe, o satralizumabe e o inebilizumabe. “Embora no SUS não tenha tratamento reconhecido para o CID-10 da doença, que é o G36, existem três medicações que foram desenvolvidas, testadas e comprovadas como eficazes para a neuromielite óptica”, pontua Vasconcelos, da Associação Brasileira de Neurologia.
“É muito importante garantir o acesso aos tratamentos indicados para a doença, porque assim o paciente poderá evitar os surtos, que podem deixá-lo cego ou com dificuldade de andar. Por isso é primordial ter o tratamento disponível de forma rápida”, diz Felipe von Glehn, professor de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB).
Inebilizumabe na Conitec
O inebilizumabe, por exemplo, é um medicamento imunobiológico específico para a condição, que reduz as células produtoras dos anticorpos anti-AQP4, responsáveis pelo ataque inflamatório ao nervo óptico e ao espinhal. Pode ser aplicado semestralmente, em uma infusão que dura em média quatro horas.
Em abril, reunião da Plenária da Conitec avaliou o fármaco, com parecer desfavorável para a incorporação. Dentre os argumentos debatidos durante a reunião, está a carência de dados sobre a população que convive com a doença no Brasil. Dessa forma, torna-se mais difícil delimitar a parcela dos doentes que seriam beneficiados pela medicação.
Nesse ponto, a plataforma Redone.br, uma iniciativa da Academia Brasileira de Neurologia, apresenta-se como uma alternativa para a escassez de dados epidemiológicos dessas condições ao criar o registro brasileiro de doenças neurológicas.
“Por meio dela, há o potencial de abordar tanto doenças neurológicas mais prevalentes quanto doenças raras e negligenciadas, como a neuromielite óptica, por grupos de pesquisas em todas as macrorregiões do país. O propósito é contribuir com dados representativos e robustos para melhorar a vida dos pacientes por meio do desenvolvimento de políticas públicas”, declara Brum, da Unesp, que também coordena a plataforma.
Segundo dados da Redone.br, em 2022, eram 4.935 casos de neuromielite óptica sendo acompanhados por 62 neurologistas no Brasil. Desse total, a maior parcela testa positivo para anti-AQP4, então seria beneficiado pelo inebilizumabe. A ausência desse anticorpo não exclui o diagnóstico de neuromielite óptica, mas a sua presença é um dos critérios principais para indicar a medicação.
Ausência de PCDT para a neuromielite óptica
A neuromielite óptica é uma doença altamente debilitante, com graves repercussões que impactam tanto na qualidade de vida quanto na mortalidade das pessoas com o diagnóstico.
A falta de tratamentos específicos disponíveis no sistema público de saúde não só reverberam no prognóstico dos pacientes, como também contribuem como um obstáculo a mais para a criação de um PCDT próprio. “Com a aprovação das medicações para o SUS, os especialistas podem sentar e desenvolver um protocolo para ser um guia para o tratamento dessa doença”, explica Glehn, da UnB.
Esses documentos são considerados norteadores de condutas para o manejo de uma série de condições. Com a ausência de um protocolo destinado à neuromielite óptica, falta uniformidade no diagnóstico e tratamento para nortear os profissionais da saúde e pacientes.
“A padronização gera toda uma cascata de racionalização do orçamento e favorece a sustentabilidade do SUS, apoia a tomada de decisões estratégicas e combate a desigualdade quanto à qualidade técnica do que é oferecido ao paciente, bem como o conhecimento e atualização do profissional da saúde”, opina Doralina Brum, da Unesp.
“Se não temos PCDT para a neuromielite óptica não há como promover igualdade para esses pacientes, que apresentam ainda uma maior vulnerabilidade na saúde frente à formação social da população negra no país e a predileção da doença se manifestar em afrodescendentes”, ressalta a neurologista.
Para Cleide Lima, que convive com a doença desde 2016, é necessário olhar para a qualidade de vida dos pacientes com neuromielite óptica. “Acreditamos que, a partir do tratamento e da equipe multidisciplinar para a reabilitação, essas pessoas possam voltar a ter suas vidas com qualidade e dignidade, mesmo convivendo com a neuromielite óptica”, diz a jornalista.
A consulta pública sobre o medicamento está disponível na plataforma Participa + Brasil para receber contribuições do público até 28 de maio. Em seguida, a Conitec avalia um novo relatório, que considera os pontos debatidos pelo público. O processo precisa ser finalizado em até 180 dias, com possibilidade de extensão por outros 90.