Mais que o poder da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA), a contínua força das oligarquias na política nacional é o que explica a exclusão do setor agrícola do sistema de metas de emissões no mercado de créditos de carbono, cuja regulação em nível nacional foi aprovada nesta quinta-feira (21) pela Câmara dos Deputados. A matéria agora segue para o Senado. Com isso, proprietários rurais não precisarão limitar-se aos limites estabelecidos pelo governo federal para poluição atmosférica. O setor responde por cerca de 70% da produção de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil.
Nem todos os proprietários engajados no agronegócio são latifundiários, mas uma breve análise histórica leva à inevitável conclusão de que tratar setores rurais como exceção a regras que procuram tornar o Brasil mais alinhado a tendências globais de cidadania é fato recorrente. Desde as dificuldades em abolir a escravidão definitivamente na segunda metade do século 19 até a configuração do sistema de seguridade social no século 20, encontram-se a mão nada invisível dos proprietários de terra.
A seguridade social — inclusive o sistema de saúde — manteve os trabalhadores rurais sem equiparação plena aos direitos assegurados aos empregados em setores urbanos até a Constituição de 1988. A cidadania sem castas — para usar ironicamente a expressão do neoautoritário Javier Milei, recém-empossado presidente argentino que se autointitula libertário — dava finalmente seu primeiro grande passo no Brasil. Ironicamente, por aqui há entre aqueles que se definem como liberais membros de notórias castas, como membros do Judiciário que figuram entre o percentil mais rico do país e ainda assim reclamam do ordenado que recebem.
Se a questão climática é traço fundamental da cidadania — entendida como as regras e expectativas em termos de direitos e deveres — no século 21, somos mais uma vez a vanguarda do atraso. Ou seja, tal como durante a pressão britânica para encerrar o regime escravista, fazemos lei para inglês ver — hoje, o mais apropriado seria dizer para a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Europeia (UE) verem.
A trajetória dos direitos sociais no Brasil foi magistralmente descrita pelo historiador José Murilo de Carvalho no já clássico Cidadania no Brasil: O longo caminho, publicado originalmente em 2001. O autor identifica um paradoxo nada alvissareiro: os direitos sociais avançaram mais rapidamente sob o autoritarismo que durante períodos em que houve eleições diretas. Ilustram bem essa tendência a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), imposta em 1943 em pleno Estado Novo varguista, e a extensão de aposentadoria por velhice no valor de meio salário-mínimo, pensões e assistência médica a trabalhadores rurais a partir de 1971, com o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural), criado pela ditadura militar em meio a seu período mais arbitrário.
Na atualidade, nem mesmo o autoritarismo seria “solução” para estruturar regras mais rígidas e homogêneas de combate às mudanças climáticas. O polo político que mais concentra negacionistas do aquecimento global é a extrema direita, cuja defesa de propostas de autocratizar o Brasil dispensa apresentações.
Ao comparar as trajetórias do Brasil com países desenvolvimentistas da Ásia — notoriamente a hoje democrática Coreia do Sul —, a chamada falta de coesão do Estado nacional fica evidente. Não se advoga aqui uma supressão da autonomia das unidades da federação, mas a criação de regras e políticas as mais universais possíveis em questões essenciais para a sobrevivência da nação. A questão climática enquadra-se nessa categoria.
Na conjuntura atual, torcer para que a extrema direita e até mesmo setores da direita moderada se conscientizem disso é o mesmo que acreditar em Papai Noel. Enquanto o bom velhinho completa a tarefa de distribuir presentes e celebramos a passagem de ano, esta coluna estará em recesso e volta em 8 de janeiro, quando relembraremos o primeiro ano após a maior ameaça que nossa democracia em transe testemunhou neste século.