Evitar a grilagem de terras públicas para combater o desmatamento da Amazônia

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A ocupação ilegal de terras públicas é um dos maiores problemas fundiários do Brasil – trata-se de característica do processo de ocupação territorial do país, especialmente da Amazônia Legal, onde ainda existem grandes porções de áreas públicas não destinadas. A prática criminosa, conhecida como grilagem, envolve a invasão e apropriação ilícita de terras por particulares, geralmente acompanhada de fraude documental e da exploração irregular de recursos naturais, como madeira e minérios, com impactos sociais, econômicos e ambientais negativos gravíssimos.

Estudo do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) demonstrou que, de 2012 a 2021, as áreas públicas federais contribuíram com 45% do desmatamento na Amazônia. Nessas áreas, a segunda categoria fundiária que mais concentrou desmatamento foi a de florestas públicas que ainda não receberam destinação para uso específico. Quase 80% das florestas públicas não destinadas estão registrados como imóveis privados no Sistema Nacional do Cadastro Ambiental Rural (SICAR), apresentando indício de ocupação ilegal e grilagem. Foram justamente essas áreas ocupadas que concentraram 91% do desmatamento ocorrido nessa categoria fundiária entre 2012 e 2021.

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Para que se tenha uma ideia da amplitude do problema, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária estima que a área total grilada no país pode chegar a 100 milhões de hectares. Além disso, o Sistema Geográfico de Informação Fundiário (SIG Fundiário) dá conta de que existem 22,7 milhões de hectares de terras privadas e 18,5 milhões de hectares de terras públicas no Pará que só existem no papel, em razão da sobreposição de registros. Há casos de até 10 registros simultâneos sobre uma mesma área.

Nesse contexto, torna-se fundamental o controle sobre a regularidade das matrículas e dos registros de imóveis rurais no país. Uma norma importante nesse sentido é a Lei nº 6.739/1979, que admite que as Corregedorias de Justiça, a União, os estados, os municípios e quaisquer órgãos ou entidades públicas interessadas, inclusive pelo Ministério Público, solicitem o cancelamento de registros e matrículas quando verificarem a existência de nulidades, irregularidades ou apropriação indevida de terras públicas. O pedido de cancelamento é encaminhado ao Corregedor-Geral de Justiça, nos casos envolvendo terra pública estadual, ou ao Juiz Federal, quando se trate de terra pública federal. Importante ter em vista que a norma prevê expressamente a notificação dos interessados, de maneira a conceder àqueles que entendam que sofreram lesão a direito a oportunidade de se defender. Assim, a própria lei impugnada conta com mecanismos destinados ao cumprimento do devido processo legal, devendo ser assegurada, ainda, a possibilidade de o interessado recorrer da decisão proferida.

Essa modalidade de cancelamento de matrículas e registros ilegais pela Administração Pública traz celeridade à atividade de fiscalização do Poder Judiciário sobre os atos registrais e um mecanismo eficaz de controle sobre a apropriação e registro fraudulentos de terras públicas.

Todavia, a Lei nº 6.739/1979 teve a sua constitucionalidade recentemente questionada no Supremo Tribunal Federal pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), na ADPF 1056, inclusive com pedido de deferimento de medida cautelar, ainda que a norma esteja em vigor há mais de 40 anos. O julgamento do caso deve ter início no próximo dia 17/11/2023, em plenário virtual.

A entidade alega que a norma violaria o princípio da separação dos poderes e as garantias do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, além do direito de propriedade e a segurança jurídica. A iniciativa consiste em verdadeiro descalabro jurídico.

É evidente que o recurso ao Supremo, pela via do controle de constitucionalidade concentrado, não se apresenta como a via correta para sanar eventual lesividade ao direito do proprietário legítimo que tenha a matrícula do seu imóvel retificada ou cancelada. Nesses casos, o proprietário poderá socorrer-se seja do direito de petição, na via administrativa, seja do Poder Judiciário, pelas vias ordinárias.

Ao autorizar a retificação e o cancelamento das matrículas de imóveis rurais irregulares e fraudulentas, os dispositivos referidos apenas expressam o poder de autotutela administrativa, sem que isso implique violação aos princípios e direitos fundamentais assegurados a todos os cidadãos brasileiros.

Vale citar que o tema não é novo no Judiciário e já são muitos os precedentes que sustentam a constitucionalidade da lei, responsável por criar um instrumento efetivo para o combate à grilagem de terras públicas em larga escala.

Ademais, é inegável a importância da proteção das florestas como premissa básica garantidora do direito à vida e ao meio ambiente equilibrado. O desmatamento, em especial do bioma amazônico, é a principal fonte de emissões brasileiras dos gases de efeito estufa (GEE) que agravam as mudanças climáticas.

Tendo em vista a forte associação entre a grilagem de terras e o desmatamento ilegal, agir eficientemente contra a grilagem de terras significa prevenir o desmatamento e, por consequência lógica, atuar contra o aquecimento global.

Dessa forma, é evidente a importância de que sejam mantidos no ordenamento jurídico os dispositivos legais que autorizam que a Administração Pública exerça seu poder de autotutela para cancelar e retificar matrículas de imóveis rurais que estejam em desconformidade com a lei, de maneira eficiente e sem qualquer prejuízo para os direitos fundamentais individuais.

No atual cenário de emergência climática, em que já experimentamos alterações ecossistêmicas irreversíveis e nos aproximamos de uma realidade que ameaça a própria sobrevivência humana, não há outra saída, senão o planejamento e a reunião de esforços para o controle da grilagem e do desmatamento.