Estatais e o orçamento público: a permanente caça ao tesouro

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Nas últimas semanas, a mídia voltou a destacar a intenção do governo federal de alterar regras orçamentárias sobre a inclusão de empresas estatais no orçamento público, revelando mais uma vez o esforço de “fugir do orçamento” ou, mais precisamente, do regime jurídico das finanças públicas, tema que foi abordado na coluna de 26 de setembro[1].

Manter o controle rígido sobre as despesas e alcançar o equilíbrio fiscal nunca foi fácil para os governantes. Para aqueles eleitos a cargos públicos, gastar dinheiro é, a princípio, mais atraente, pois gera popularidade e dividendos políticos. No entanto, a conta chega depois, e nem sempre é simples identificar o responsável pelo excesso de gastos.

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Por isso, manter a integridade das normas financeiras é desafiador. A responsabilidade fiscal impõe restrições e é necessário grande esforço para convencer os responsáveis a manter o controle. Levar o Direito Financeiro a sério sempre foi uma tarefa árdua, uma luta contínua.

Durante a pandemia, flexibilizar normas foi uma saída frequente, com justificativa na excepcionalidade da situação. Muitas mudanças constitucionais e na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) aliviaram o rigor no controle de despesas e endividamento.

Por outro lado, “contornar” regras com “contabilidade criativa” e interpretações pouco ortodoxas, como aconteceu em meados da década de 2010, pode trazer graves consequências, inclusive o impeachment, como o da então presidente da República.

Por isso, é crucial analisar com cautela as medidas propostas em relação às estatais e ao orçamento público, que têm sido foco da mídia recentemente[2].

O Estadão noticia: “Governo quer retirar estatais do Orçamento, e críticos falam em possibilidade de manobra fiscal”[3], referindo-se a projetos de lei encaminhados pelo governo que propõem mudanças nas leis de planejamento orçamentário.

Uma das medidas visa alterar a LDO 2024 (Lei 14.791/2023), modificando o regime jurídico orçamentário das empresas estatais que firmarem contratos de gestão[4]. Embora essa questão possa parecer complexa para quem não é especialista no assunto, ela pode ter um impacto significativo na transparência e na integridade das contas públicas.

Para compreender essa medida, é importante destacar que, no Direito Financeiro, prevalecem os princípios da unidade e universalidade orçamentárias. Esses princípios determinam que a lei orçamentária seja um documento único, abrangendo todas as receitas e despesas do exercício financeiro do ente federado. Além disso, todos os gastos financiados com recursos públicos devem estar previstos e autorizados previamente na peça orçamentária, o que é essencial para garantir transparência, controle, planejamento e gestão.

No caso das estatais não dependentes do Tesouro, como as sociedades de economia mista que exploram atividade econômica e são mantidas pelas próprias receitas (a exemplo da Petrobras, Banco do Brasil, dentre outras), o princípio se aplica apenas aos gastos com obras, aquisição de ativos imobilizados, etc, sendo autorizados, como determina o legislador constituinte, via orçamento de investimento[5] das empresas estatais.

Situação distinta ocorre em relação às estatais dependentes do Tesouro. Todas as despesas dessas entidades, por serem financiadas com recursos públicos, devem ser autorizadas por meio da lei orçamentária, inseridas no Orçamento da Seguridade Social ou no Orçamento Fiscal.

Há, portanto, uma parte do orçamento especialmente destinada a alocar os recursos dos investimentos em que a União seja controladora, o que permite uma maior transparência e controle sobre os aportes de recursos do Tesouro para manter as empresas estatais, muitas das quais dependem dessas transferências.

A situação das estatais deficitárias no Brasil representa um desafio nas contas públicas. A Lei das Estatais[6], que deveria orientar essas empresas para o interesse coletivo e desenvolvimento sustentável, é ignorada, gerando déficits crônicos que drenam os cofres públicos. Com bilhões em subvenções, essas empresas deixam de cumprir sua função social e se tornam fardos fiscais.

Embora a legislação permita cobrir déficits com subvenções, essa prática, que deveria ser exceção, acaba sendo uma válvula de escape para a gestão ineficiente, enfraquecendo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Empresas que deveriam operar de forma autônoma permanecem dependentes de recursos públicos, minando o compromisso com a gestão sustentável dos recursos.

O raio-X do PLOA 2025[7] revela que R$ 166,6 bilhões do orçamento federal são destinados a estatais, cerca de 1,3% do PIB. Esse valor, que poderia sinalizar investimentos produtivos, na realidade, cobre déficits operacionais que poderiam ser evitados com políticas de gestão mais eficazes.

Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza destacam que estatais dependentes de repasses para despesas de custeio perdem autonomia financeira e comprometem seu papel no desenvolvimento nacional. A ausência de metas de eficiência transforma essas empresas em “dependentes crônicas” de recursos públicos, o que vai contra os princípios da LRF[8].

Os contratos de gestão, que poderiam promover autonomia, enfrentam barreiras operacionais e políticas, flexibilizados por brechas fiscais que enfraquecem a fiscalização, como ocorreu durante a pandemia com a Lei Complementar 173. Essas medidas distanciam ainda mais o cenário de empresas estatais autônomas e menos onerosas ao Tesouro Nacional.

Para garantir bem-estar social, é essencial que a gestão das estatais seja eficiente e autônoma, o que exige uma mudança na alocação de recursos e na cobrança de resultados, algo que as reformas da LRF ainda não alcançaram plenamente. A reforma das estatais deficitárias é, portanto, um imperativo para a sustentabilidade financeira do Brasil, e passa pela implementação de contratos de gestão com metas claras e resultados exigidos.

Afastar as estatais das regras mais rígidas de gestão fiscal, impostas pela LRF e pelo arcabouço fiscal (LC 200), por meio das alterações propostas na forma como essas empresas são integradas ao orçamento público, parece uma tentativa de driblar as exigências de responsabilidade fiscal. A ideia de que, ao assinar um contrato de gestão, uma estatal passaria de dependente para não dependente, mudando seu regime jurídico orçamentário, ao invés de realmente flexibilizar os investimentos, soa mais como uma manobra para enfraquecer os controles da gestão fiscal responsável, e não uma solução eficaz.

Como tenho insistido, a luta para manter o respeito às normas de Direito Financeiro é um compromisso com toda a sociedade, que merece ver seu esforço refletido em uma gestão pública responsável e eficiente, com respeito às normas vigentes, sem frequentes tentativas de contorná-las, e não em um ciclo vicioso de socorro a empresas que deveriam caminhar com as próprias pernas.

[1] Corram que o orçamento vem aí (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/corram-que-o-orcamento-vem-ai).

[2] Governo petista tenta novamente maquiar contas. Editorial de O Globo, 19.9.2024 (https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2024/09/governo-petista-tenta-novamente-maquiar-contas.ghtml); Usar dinheiro público fora do orçamento é grave risco. Folha de S. Paulo, 4.10.2024 (Usar dinheiro público fora do Orçamento é grave risco – 04/10/2024 – Opinião – Folha).

[3] Por Daniel Waterman, em matéria do último dia 16 de outubro (https://www.estadao.com.br/economia/governo-lula-estatais-orcamento-margem-novas-manobras/).

[4] Vide Nota Informativa PLN 31/2024 da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal

[5] Art. 165. Omissis…

5º A lei orçamentária anual compreenderá:

I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público;

II – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;

III – o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.

[6] Lei 13.303, de 30 de junho de 2016

[7] https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/2025/raio-x-do-orcamento-2025-ploa-v0

[8] “A Superação da Condição de Empresa Estatal Dependente, in Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ed. Forum, ano 3, n. 12, out/dez 2005.