O Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de julgar o Tema-RG 633, da sua repercussão geral; estava ali em pauta a controvérsia sobre o direito de creditamento de ICMS na aquisição de bens de uso e consumo, proporcionalmente às receitas de exportação.
Como se sabe, a Lei Kandir (art. 33, I) vem adiando o creditamento do imposto na aquisição de bens de uso e consumo e, no último desses adiamentos (LC 171/19), o direito ficou postergado para janeiro de 2033 – quando, ironicamente, o ICMS será extinto (PEC 45). No Tema-RG 346, o Supremo já validou essa realidade, ao fundamento de que a não-cumulatividade constitucional do ICMS encampa o chamado “crédito físico”, segundo o qual apenas insumos propiciam créditos do imposto. Assistiria, assim, ao legislador complementar, se e quando bem lhe aprouvesse, a prerrogativa de ampliar o creditamento para as fronteiras do “crédito financeiro”, alcançando assim os bens de uso e consumo, ativos fixos ou tudo o mais que não seja insumo de produção.
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Quando a EC 42/03 deu nova redação ao art. 155, §2º, X, ‘a’ da CR/88, imunizando as exportações contra o ICMS e assegurando “a manutenção e o aproveitamento” do crédito da operação anterior, vislumbrou-se a perspectiva de que, para o microcosmos das exportações, estaria o constituinte consagrando um novo modelo de não-cumulatividade, alicerçado no crédito financeiro. Daí que o art. 33, I da Lei Kandir não mais se poderia aplicar às hipóteses de exportação.
Essa é a controvérsia recém-enfrentada pelo Supremo no referido Tema-RG 633, como já se afirmou acima. Por uma doída maioria de 6×5, prevaleceu a tese contrária à defendida pelos contribuintes; sob o voto vencedor do Min. Gilmar Mendes, entendeu a Corte que a EC 42/03, embora impregnada do princípio do destino (“não-exportação de tributos”), não vai ao ponto de romper com os paradigmas do crédito físico.
O creditamento na aquisição de bens de uso e consumo, mesmo no âmbito das exportações, segue, assim, vedado aos contribuintes.
Desse julgado do Supremo, é importante constatar o seguinte. A Corte definiu o regime tributário dos bens de uso e consumo nas exportações, mas não definiu os contornos deste conceito, até porque não parece haver um conceito constitucional de insumos ou de bem de uso e consumo que precise ser por ela revelado.
Recentemente, aliás, o mesmo Supremo validou a possibilidade de calibração legal do conceito de insumos para Pis e Cofins, implementada pelo art. 3º da Lei nº 10.833/03 (Tema-RG 756). A definição do alcance do conceito de “insumo” e, em contraposição a este, de “bens de uso e consumo”, é, portanto, matéria de índole infraconstitucional.
E é aí que entra em cena o EREsp 1.775.781, que, coincidentemente, o STJ acaba de julgar. Nesse precedente, uma usina de cana-de-açúcar pleiteava o creditamento de ICMS sobre uma série de itens relacionados ao seu processo produtivo, tais como facas, correntes, telas, lâminas, pneus, óleos lubrificantes etc.
O fisco paulista recusou o creditamento do imposto na aquisição desses itens em razão de não se desgastarem imediata e integralmente em contato com o produto final em fabricação, aspecto que os converteria em bens de uso e consumo do estabelecimento.
Esse entendimento histórico da autoridade fazendária paulista (por exemplo, Resposta à Consulta 20.693/19) não tem respaldo nem mesmo na sua Decisão Normativa CAT 1/01, em que os conceitos de insumo e bem de uso e consumo são definidos.
Segundo essa norma infralegal, são insumos todos os materiais consumidos no processo de industrialização ou empregados na prestação do serviço. O desgaste, posto que não instantâneo nem integral, é uma forma de consumo deste elemento. E se esse desgaste decorre da interação com o processo produtivo, então todos os requisitos do conceito de insumo estão preenchidos.
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Qual o limite temporal? Quão rápido deve ser o desgaste para que seja aceito como “consumo”? A nosso ver, o único critério temporal seguro é o período de um ano, a partir do qual o fator produtivo assume a condição de ativo imobilizado. Desgastando-se em menos de um ano em razão de interação com o processo produtivo, tem-se um insumo.
A pedra de toque está, pois, na causa do desgaste – a interação com o processo produtivo – e não na velocidade ou na intensidade do desgaste.
Pois o STJ entendeu exatamente que aqueles itens controvertidos no EREsp 1.885.781 não são bens de uso e consumo, mas verdadeiros insumos, da categoria produtos intermediários, ainda que se desgastem apenas gradativamente no processo produtivo.
Mais amplamente, definiu como insumo de produção todos os dispêndios associados à atividade-fim do empreendimento, isto é, conectados com a sua atividade produtiva. Construiu-se, aí, um conceito claramente haurido daquele que o próprio STJ erigiu para o Pis/Cofins, no célebre “caso Anhambi” (REsp repetitivo 1.221.170).
Naquele precedente, o STJ recusou a regra da IN/RFB 404/04, que catalogava como insumo creditável somente os itens desgastados em contato direto com o bem produzido, justamente o conceito adotado para fins de IPI e ICMS. O STJ, então, dissociou o conceito de insumo para Pis/Cofins do conceito para IPI/ICMS, adotando, para aquelas contribuições, um conceito mais amplo.
Agora, curiosamente, a mesma Corte reaproxima os dois conceitos, mas o faz adotando, como parâmetro de equiparação, o conceito mais generoso utilizado para o Pis/Cofins.
Essa calibração de conceitos arrasta para as fronteiras do insumo uma série de bens até então catalogáveis como bens de uso e consumo. Repare-se que os itens controvertidos no EREsp 1.775.781, para os quais o STJ deu o crédito, são muito parecidos com os itens controvertidos no Tema-RG 633, para os quais o STF recusou o crédito (lubrificantes, peças de reposição, ferramental etc.).
No Tema-RG 633, assumia-se, como premissa inquestionada, que tais itens eram bens de uso e consumo, e pedia-se o crédito para essa categoria de dispêndio no contexto específico de exportação; o STF, então, concluiu que bens de uso e consumo não geram crédito de ICMS nem mesmo no segmento exportador. No EREsp 1.775.781, o STJ não está dizendo que bens da categoria uso e consumo geram créditos de ICMS, portanto não está afrontando o postulado consolidado pelo Supremo no Tema-RG 633.
Diversamente, o que faz agora o STJ é um expediente de requalificação jurídica dos fatos, enquadrando na categoria de insumo itens que até então se enquadravam na categoria de uso e consumo. O STJ “murchou” a cesta dos bens de uso e consumo, diminuindo o impacto prático e negativo, para os contribuintes, do Tema-RG 633.
De certa forma, deu o STJ, por outra via conceitual, o que o STF retirou, e o fez, a nosso ver, legitimamente, dentro das suas atribuições hermenêuticas do ordenamento infraconstitucional. E, para os contribuintes, com a vantagem de que o creditamento assegurado pelo STJ não se restringe à atividade exportadora, ou seja, o crédito não será apenas proporcional às receitas de exportação.
Como já se disse, nem todos os bens de uso e consumo foram alçados pelo STJ à categoria de insumos, mas somente aqueles conectados à atividade produtiva do estabelecimento. Itens dissociados do segmento produtivo seguem normalmente rotulados como de uso e consumo, sem direito a crédito. O papel do escritório, o sabonete do vestiário, nada disso propiciará crédito de ICMS ao industrial, sob o entendimento assentado no STJ. A atividade comercial, que nada produz, não se beneficiará desse precedente.
No entanto, esse mesmo “recorte” também já foi adotado no Tema-RG 633. No voto vencido do Min. Dias Toffoli, fica claro que ali se adotava um conceito stricto sensu de bens de uso e consumo, limitado aos itens “relacionados com a produção de mercadoria destinada à exportação”.
Ou seja, no melhor cenário do Tema-RG 633 para os contribuintes, apenas os bens de uso e consumo ligados à produção seriam creditáveis, o que reforça a equivalência de alcances entre os dois precedentes aqui analisados.
O acórdão do EREsp 1.775.781 ainda não foi publicado, portanto as ilações que ora fazemos a seu respeito ainda têm um acentuado tom especulativo, a ser ratificado quando, após a publicação, pudermos conhecer melhor os detalhes e nuances do julgado.
De qualquer forma, nos parece que o saldo desses dois julgamentos não deve ser motivo de lamentação pelos contribuintes.