Enunciados do Fonaje e a desvirtualização de seu caráter persuasivo

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Na vigência da Lei 9.099/95, instituiu-se o “Fórum Permanente de Coordenadores de Juizados Especiais Cíveis e Criminais” (mais conhecido como “Fórum Nacional de Juizados Especiais” ou pela sigla Fonaje), com vistas a “aprimorar a prestação dos serviços judiciários nos Juizados Especiais, com base na troca de informações e (…) na padronização dos procedimentos adotados em todo o território nacional[1].

O objetivo primário de troca de experiências entre juízes, visando encontrar subsídios para a fundamentação de decisões no âmbito da Justiça Especial, assemelha-se mais à formulação do pensamento doutrinário do que à fixação de teses revestidas de caráter vinculante.

Esse nobre propósito do Fonaje, porém, aparenta ter se perdido em uma irregular tentativa de transmutar suas orientações em normas vinculantes a todos os magistrados do sistema do Juizado Especial. A impressão remanescente é a de que o Fonaje busca, por via inadequada, fixar verdadeiros precedentes vinculantes – tudo ao arrepio da programática do CPC em seu art. 927, que dita as hipóteses taxativas em que um comando jurisdicional deva ser empregado para além da mera técnica de convencimento.

Cumpre destacar que o Fonaje congrega tão somente magistrados do sistema de Juizados Especiais – não convidando para o debate os advogados ou demais agentes do processo, para que possam influir de alguma forma nos Enunciados fixados. O resultado inevitável desta “panelinha” é a formulação de diretrizes sem carga normativa alguma que os juízes definem e aplicam entre si e a si mesmos, precariamente encaixadas à definição de precedente judicial (inclusive por não apresentarem fundamento expresso na jurisprudência dos Colégios Recursais).

Os Enunciados do Fonaje não possuem força vinculante para conduzir cegamente à interpretação por eles veiculada, quando muito possuindo caráter persuasivo e argumentativo. No entanto, talvez em juízo de conveniência, os magistrados os aplicam sem maiores ilações sobre o potencial confronto com a legislação federal aplicável ao caso sub judice – como bem dito por juristas dedicados ao tema, os juízes “cita(m) o Fonaje para não motivar, e o Fonaje não diz os motivos dos enunciados[2].

Ao invés de recorrer a repositórios de jurisprudência dos Juizados Especiais e a outras fontes de direito apropriadas, os juízes fixam entre si teses a serem observadas, sem adotar qualquer rito legal para tanto – talvez levando longe demais os ideais de “oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade” tão caros à Lei 9.099/95.

Há incidentes em que as teses fixadas pelo Fonaje atentam contra a melhor interpretação da legislação aplicável. É o caso do Enunciado 97, que estatui que o art. 523, §1º do CPC se aplicaria aos Juizados Especiais Cíveis – com exceção dos tão vilipendiados honorários sucumbenciais.

É cediço que, nos termos do art. 55 da Lei 9.099/95, a sentença proferido pelo juízo de 1º grau não condena o vencido ao pagamento dos honorários de sucumbência (salvo hipótese de má-fé que, oposta à boa-fé que se presume, deve ser evidenciada pela parte contrária).

Desde a edição da “Lei do JEC”, não se economizaram críticas ao aviltamento do papel do advogado para administração da justiça, ao desmerecer o próprio caráter alimentar dos honorários sucumbenciais – dando azo, inclusive, ao PL 2.803/2021[3], que busca equiparar a remuneração do causídico àquela já prevista no art. 85 do CPC e aplicável à justiça comum.

Não custa repisar que o art. 523 trata do cumprimento de sentença relativo à obrigação de pagar quantia certa, sendo aplicável quando o pagamento do débito não se dá no prazo legal de 15 dias. Com o inadimplemento, acrescentam-se ao débito a multa e os honorários de advogado de 10% cada.

Obviamente, a intenção do legislador ao dispor dessa forma era conferir elemento de persuasão e incentivo ao cumprimento de sentença, prestigiando o pagamento tempestivo da condenação e sancionando atos protelatórios do executado – ou seja, muito além de remunerar o trabalho do advogado em tal incidente, o art. 523, §1º se reveste de caráter coercitivo para promover a celeridade do feito executivo. Não se pretende a mera remuneração do advogado por seu trabalho, mas sim o incentivo ao pagamento sem maiores delongas, encerrando de uma vez o feito executivo.

A dispensa do art. 55 da Lei 9.099/95 ao pagamento dos honorários sucumbenciais diz respeito única e exclusivamente àqueles que seriam outrora fixados pela sentença. À míngua de prescrição específica sobre os honorários da fase de execução, que possuem caráter coercitivo – e em se considerando a subsidiariedade do CPC ao sistema dos Juizados Especiais, por força do art. 52 da Lei do JEC – deveria se aplicar a disposição do Art. 523 do diploma processual civil, suprindo a omissão da legislação específica ao rito especial.

Conforme apontado pela doutrina[4], o afastamento dos honorários nos processos que tramitam no JEC estritamente na fase de conhecimento é deliberado – “acaso fosse a intenção do legislador evitar a incidência dos honorários advocatícios na hipótese de não cumprimento voluntário da obrigação nos Juizados Especiais Estaduais Cíveis, teria feito de forma expressa e clara”.

Ou seja, o posicionamento do Fonaje tem efeito duplamente negativo: por um lado, estimula o comportamento procrastinatório do executado, livrando-o do encargo coercitivo do Art. 523 e invalidando os ideais de economia e celeridade processual tão caros aos Juizados Especiais. Por outro, desvaloriza-se ainda mais o trabalho do advogado em seara executiva, forçado a buscar a satisfação do crédito de seu cliente por diversos meios e por espaço de tempo imprevisível, sem qualquer contraprestação à altura.

A orientação do Fonaje se provou tão polêmica entre a classe dos advogados, que a OAB Nacional e sua seccional Mato-Grossense encaminharam ofício ao presidente da entidade, empreendendo reuniões[5] a fim de ver modificado o teor do Enunciado para incluir os honorários advocatícios em caso de não pagamento voluntário da condenação.

Não se admira a rejeição dos advogados ao Enunciado 97 do Fonaje tal como editado, uma vez que promove não apenas insegurança jurídica acerca da aplicabilidade supletiva do CPC aos Juizados Especiais, mas também o desprezo e desprestígio a toda a classe de causídicos atuantes nesse meio.

Assim, há de se tomar os Enunciados do Fonaje com uma “colher de sal” – limitando-se sua influência à esfera simplesmente persuasiva, evitando-se que sua aplicabilidade ao caso concreto afaste outros elementos de convencimento do juiz, como a jurisprudência e a legislação aplicável à espécie.

[1] Fórum Nacional de Juizados Especiais. História. Disponível em: https://fonaje.amb.com.br/historia/. Acesso em: 14 mar. 2024.

[2] DA ROSA, Alexandre Morais. Por ausência de motivação adequada, enunciados do Fonaje são nulos. 3 jun. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jun-03/diario-classe-ausencia-motivacao-adequada-enunciados-fonajesao-nulos/. Acesso em: 14 mar. 2024.

[3] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Ordinária 2.803/2021. Altera o artigo 55 da Lei 9099 de 26 de setembro de 1995 para instituir honorários advocatícios sucumbenciais em sentença de primeiro grau. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2293968. Acesso em: 14 mar. 2024.

[4] GARCIA, Ygreville Gasparin. A execução de sentença nos juizados especiais estaduais cíveis e a possibilidade de fixação de honorários advocatícios nas hipóteses de não cumprimento voluntário da obrigação. 17 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71438. Acesso em: 14 mar. 2024.

[5] OAB NACIONAL. OAB solicita ao Fonaje mudança em Enunciado para garantir pagamento de honorários. 16 mar. 2022. Disponível em: https://www.oabmt.org.br/noticia/17397/comissao-requer-ao-fonaje-alteracao-de-enunciado-que-versa-sobre-honorarios-advocaticios-na-fase-de-cumprimento-de-sentenca. Acesso em: 14 mar. 2024.