Não é preciso ser especialista em segurança do trabalho para concluir que é altamente perigoso o trabalho dos entregadores de encomendas ou comida, com uso de motocicleta ou bicicleta, nas grandes cidades brasileiras. Além do trânsito caótico, os trabalhadores ganham por encomenda entregue e quanto mais rápido conduzirem seus veículos, maior será a disponibilidade para receber novos pedidos. O sistema em si induz à direção perigosa. Os acidentes de trabalho são frequentes nesse setor.
Há algumas estatísticas sobre isso. Relatório do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HC da Universidade de São Paulo (USP) aponta que 60% a 70% das pessoas em estado grave atendidas na instituição são de trabalhadores que usam aplicativos de entrega.
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Ainda de acordo com o mesmo documento, os sinistros com moto em São Paulo representavam 20% dos atendimentos até 2016 e hoje, depois da proliferação das entregas por aplicativo, já representam 80%. Pesquisa conjunta da FUNDACENTRO e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) revela que 1 em cada 4 entregadores já sofreu algum tipo de acidente no trabalho. Não conheço outra indústria no Brasil que tenha um índice tão alto.
Trabalhadores deste setor estão morrendo ou sofrendo graves acidentes incapacitantes quase todos os dias, em todo o país. As mortes e lesões sérias também ocorrem devido à violência urbana: balas perdidas, assaltos, discussões no trânsito e desavenças com clientes são incidentes registrados com frequência na imprensa.
O perfil desses trabalhadores é conhecido: homens, jovens, negros e pobres. Eles não têm plano de saúde e não estão registrados na previdência social. As empresas de delivery não os reconhecem como seus empregados, embora a sua atividade dependa essencialmente do trabalho deles. Afinal, não há serviço de entrega em domicílio sem entregadores, por enquanto a comida ainda não chega em nossas casas por drones. Essas empresas faturam milhões de dólares no mercado brasileiro e não contribuem para o INSS a fim de assegurar proteção social à sua gigantesca força de trabalho de entregadores. Não pagam a contribuição específica para seguro de acidentes de trabalho.
Essas mortes e acidentes incapacitantes têm um custo alto para o país. Os trabalhadores acidentados são quase sempre atendidos pelo sistema público de saúde. Acidentes de moto e bicicleta em geral levam a internamentos longos. No caso de morte, famílias ficam à míngua, sem pensão do INSS e acabam dependendo da rede de proteção do Estado.
Para além da dimensão humana desta tragédia da morte de tantos jovens trabalhadores, precisamos perguntar: quem é que está pagando pelo custo social destes acidentes? Eu e você, caro leitor, com o dinheiro dos nossos impostos. Enquanto as grandes corporações que operam o delivery embolsam seus lucros, elas ao mesmo tempo socializam o prejuízo inerente ao (alto) risco de sua atividade econômica. Até quando esse quadro insustentável vai perdurar?
Se você acredita que esses infortúnios laborais são eventuais e fazem parte da vida, sugiro o seguinte exercício: digite no Google a expressão “entregador morre”. Ficará surpreso com a quantidade de casos. E isso é apenas uma pequena parte, pois muitos casos não saem na Internet e raramente há reportagens sobre acidentes graves sem morte. Para poupar seu trabalho, vou dar mais de vinte exemplos de acidentes fatais que ocorreram somente nesse ano de 2023, em todo o Brasil, catalogados em pesquisa que está sendo desenvolvida por estudantes da Faculdade de Direito da UFF. Repito, é apenas a ponta de um iceberg cuja profundidade ainda desconhecemos:
Caíque Lemos dos Santos, entregador de 29 anos, morreu após perder o controle da moto que pilotava e cair embaixo de um ônibus no bairro do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo. A vítima trabalhava com entregas há cinco meses. SBT News, 21/06/2023.
Silvio Romero de Moraes, entregador, morreu o colidir sua moto de frente com um veículo utilitário, na Estrada do Guatumbu, em Araçatuba. Hojemais Araçatuba, 18/10/2023.
Danilo Lima Araújo, 28 anos, entregador de aplicativo, morreu em Belém-PA, após ser baleado no rosto, em uma tentativa de assalto, enquanto aguardava o próximo pedido, sentado em um banco de praça. G1 Pará Rede Liberal, 23/08/2023.
Guilherme de Morais, 22 anos, entregador de aplicativo, foi atingido por um tiro acidental enquanto trabalhava, disparado durante operação policial no bairro de Paciência, no Rio de Janeiro. R7 Balanço Geral, 23/06/2023.
Entregador não identificado foi morto quando fazia entrega de comida com sua bicicleta, durante tentativa de assalto em Aricancuduva, zona leste de São Paulo. R7 São Paulo, 15/07/2023.
V.J.B., 40 anos, entregador, colidiu sua moto com um veículo utilitário na rodovia PR-280 enquanto estava trabalhando, na cidade de Marmeleiro-PR, e faleceu no hospital no Hospital Regional de Francisco Beltrão no dia seguinte. Portal CGN, 15/10/2023
Jovem entregador de delivery identificado como João Victor, aparentando vinte anos de idade, morreu enquanto trabalhava ao colidir sua moto com um poste na cidade de Arcoverde, Pernambuco. Blog Radar Notícias, 25/09/2023
Renildo Rebouça Santos, 35 anos, entregador de aplicativo com motocicleta em Salvador-BA, depois de acidente leve provocado por uma moto que vinha na contramão, foi atingido violentamente pelo outro condutor com um soco no rosto, caiu, bateu a cabeça no meio-fio e morreu. Deixou esposa e um filho de três anos. Correio 24 horas, 22/05/2023.
O entregador de aplicativo Orlando Gomes de Lima, 56 anos, tentou desviar sua moto de um buraco durante uma chuva em Cuiabá-MT, caiu no asfalto e foi atropelado por um carro, vindo à óbito. Olhardireito, 30/03/2023.
Charles Severino da Silva, 28 anos, entregador de aplicativo morreu ao ser arremessado de sua moto por um automóvel que furou o sinal vermelho na Avenida Agamenon Magalhães, em Caruaru-PE. G1 Caruaru e Região, 17/01/2023.
Isidro Alves de Oliveira Filho, de 53 anos, entregador de aplicativo, morreu enquanto trabalhava de bicicleta, ao ser atropelado no Eixão Norte, próximo ao Buraco do Tatu, em Brasília-DF. G1 Distrito Federal, 16/06/2023.
Guilherme Lopes, 20 anos, entregador de aplicativo, morreu após cair de sua moto no Bairro Novo, Porto Velho-RO. Ele estava pilotando a moto de chinelo e se desequilibrou ao passar em um redutor de velocidade. Rondônia Dinâmica, 17/09/2023.
Kelvin Tavares da Cruz, 29 anos, entregador por aplicativo, morreu no bairro Tijucal, em Cuiabá-MT, ao ser atropelado por um carro desgovernado, logo após estacionar sua moto para fazer uma entrega. G1 Mato Grosso, 29/05/2023.
Rogério Wandrell Sousa Maia, 20 anos, entregador por aplicativo, morreu após colidir sua moto contra um caminhão na cidade de Anapolis-GO. Mais Goiás, 06/10/2023.
Erisvaldo Menezes Carril, 34 anos, entregador de delivery, morreu ao ser atingido violentamente por motorista embriagado, na região central de Porto Velho-RO. Deixou esposa, uma filha de quatro anos e um bebê de seis meses. Rodonia ao Vivo, 08/10/2023.
Kelvin Henrique Machado, 27 anos, entregador, foi atingido por um carro que trafegava em alta velocidade enquanto seguia para entregar uma encomenda, no bairro do Xaxim, em Curitiba-PR. Deixou esposa e filha de dois anos. Rede Massa, 01/02/2023.
Richard Pinto Costa Neto, 23 anos, entregador de aplicativo, foi atingido por um carro na Avenida Araguaia em Londrina-PR, tendo sido arremessado e atropelado pelo mesmo automóvel, falecendo na hora. Tarobá News, 03/03/2023.
Carlos Eduardo Lamonier, 21 anos, entregador de aplicativo em Araxá-MG, perdeu o controle da sua moto na Avenida João Moreira Salles, enquanto fazia entregas e colidiu violentamente contra uma árvore, vindo a falecer. G1 Triângulo e Alto Paraíba, 20/02/2023.
Arthur Rodrigues Rego, 24 anos, entregador de aplicativo, perdeu o controle de sua motocicleta na Avenida Leste Oeste em Goiânia e caiu no canteiro da via, vindo a falecer. Diário da Manhã, 03/10/2023.
Gustavo Magalhães, 20 anos, entregador de aplicativo, colidiu com um ônibus na Praia das Flexas, bairro do Ingá, em Niterói-RJ, e com o impacto foi parar embaixo do coletivo, vindo à óbito. Enfoco, 30/06/2023.
Se souber de outros casos em sua cidade e quiser colaborar com essa pesquisa, por favor envie um e-mail para cassio_casagrande@id.uff.br.