Nos últimos anos, o consumo de alimentos ultraprocessados (AUP) e o tempo gasto com dispositivos eletrônicos cresceram, especialmente entre os jovens. Os dois fenômenos, que podem parecer dissociados, compartilham algumas causas e consequências, e ambos têm gerado impactos negativos nas condições de saúde de crianças e adolescentes.
Os AUP são caracterizados por conter grandes quantidades de aditivos e passar por diversos processos industriais, substituindo os ingredientes comuns de cozinha por produtos produzidos em laboratórios.
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Essa substituição tem dois objetivos. O primeiro é trazer durabilidade para os alimentos fazendo com que as empresas ganhem escala no seu processo de produção e distribuição. O segundo é trazer uma maior palatabilidade aos alimentos, fazendo com que se aumente a vontade de comê-los ao mesmo tempo em que eles trazem menos saciedade.
Assim, as pessoas estão sempre com fome e consequentemente fazem mais lanches ao longo do dia. Como dizia a propaganda: “você não consegue comer um só”. Esse comportamento compulsivo pode ser comparado ao do vício em tabaco, no qual as pessoas enfrentam dificuldades para reduzir o consumo, mesmo diante do risco de piora da saúde.
Em países como Estados Unidos e Inglaterra, 60% da alimentação é composta por AUPs. No Brasil, esses produtos representam 30% da dieta, e o consumo segue crescendo, aproximando-se rapidamente dos níveis vistos nesses países. Entre adolescentes, esses alimentos respondem a 40% da dieta, e entre crianças de até cinco anos, já representam 25% da alimentação.
Eles estão associados a um aumento entre 40 e 60% no risco de morte por doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) como obesidade, diabetes e hipertensão, gerando altos custos para o sistema de saúde e provocando cerca de 60 milhões de mortes por ano. No Brasil, atualmente, 1 em cada 3 crianças têm sobrepeso ou obesidade.
Esse cenário é preocupante não apenas pelos impactos no aumento das DCNTs, mas também pelos prejuízos causados à saúde mental. Evidências recentes indicam que dietas ricas em ultraprocessados estão associadas a um maior risco de sintomas de ansiedade e depressão. Além disso, o uso excessivo de telas – como televisão, smartphones e videogames – é outro fator central na discussão sobre a piora nos hábitos alimentares e na saúde mental.
De acordo com uma pesquisa da DataReportal, o brasileiro passa, em média, 9 horas por dia em frente às telas. Embora as mudanças no padrão comportamental sejam perceptíveis em toda a sociedade, crianças, adolescentes e jovens são os mais afetados.
Após a pandemia, o uso excessivo de telas entre adolescentes de 12 a 18 anos aumentou de 18% para 60% e apenas um terço das crianças de 2 a 5 anos segue o ritmo de tela recomendado pela Organização Mundial de Saúde, segundo pesquisa publicada na revista científica JAMA Pediatrics.
Esse fenômeno é estimulado por mecanismos específicos, principalmente, nas redes sociais, de captura da atenção e maximização do engajamento e do tempo de uso dos dispositivos eletrônicos – fatores aos quais crianças e adolescentes podem ficar ainda mais vulneráveis que adultos.
Uma publicação recente elaborada pelo Instituto Veredas mostra que esse aumento no uso de dispositivos digitais por crianças e adolescentes tem gerado consequências graves, como aumento de casos de ansiedade, depressão, suicídio e autolesão não suicida – especialmente entre meninas –, além de distúrbios de atenção, atrasos no desenvolvimento cognitivo e da linguagem, miopia, sobrepeso e problemas de sono.
Além de reduzir a prática de atividades físicas, o tempo prolongado diante das telas favorece o consumo excessivo de lanches pouco saudáveis, ricos em gorduras e açúcares – fatores que também contribuem para o surgimento de questões relacionadas à saúde mental.
Apesar dos alertas crescentes sobre os impactos do consumo de ultraprocessados e do uso excessivo de telas na saúde mental, as respostas dos Poderes Legislativo e Executivo têm sido tímidas, especialmente em comparação com a forte atuação de lobbies que representam os interesses dos setores alimentícios e tecnológicos.
Nos últimos 10 anos, cerca de dez projetos relacionados à regulamentação da venda e consumo de ultraprocessados tramitaram no Congresso Nacional. No entanto, o histórico de tramitação revela uma falta de avanços, com alguns projetos parados há mais de uma década.
Em 2023, o Executivo Federal lançou um decreto que estabelece diretrizes para a promoção de alimentação adequada e saudável no ambiente escolar. Embora seja um passo importante, o decreto, por si só, não garante a implementação dessas ações nos mais de cinco mil municípios brasileiros, sendo insuficiente para promover mudanças concretas.
No mesmo ano, o Rio de Janeiro aprovou uma lei que proíbe a venda de alimentos ultraprocessados em escolas, no entanto, menos de um ano após a aprovação da lei no Rio de Janeiro, já tramita um projeto para flexibilizá-la, um reflexo da falta de consenso na sociedade sobre o tema e da influência dos lobbies da indústria alimentícia.
Em relação ao uso excessivo de telas, o Ministério da Educação está avaliando o envio de um projeto de lei ao Congresso para proibir o uso de celulares em salas de aula, como parte de medidas para combater os impactos negativos desse comportamento. Paralelamente, voltou a tramitar na Comissão de Educação do Congresso um projeto de lei de 2015 que também prevê a proibição do uso de celulares em escolas. O projeto inclui a necessidade de as redes de ensino elaborarem estratégias para lidar com o sofrimento psíquico dos adolescentes.
É importante lembrar que, no início de 2024, o presidente Lula sancionou a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares, mas ainda é preciso trabalhar para a sua implementação. Pulverizar esforços, elaborando novas ações para lidar com a saúde mental de crianças e adolescentes em diferentes leis sem que elas dialoguem com a política nacional podem dificultar a sua implementação.
Os atores contrários à proposta alegam que os celulares podem ser peças estratégicas na educação das crianças e adolescentes. Contudo, segundo relatório da UNESCO, evidências sólidas e imparciais do impacto da tecnologia educacional são escassas, e boa parte é produzida por aqueles que estão tentando vendê-la.
De toda forma, a proposta de proibição é polêmica e, apesar de 43% dos pais serem favoráveis, pode não ser uma solução eficaz. Proibir o uso de celulares em sala pode ser visto como uma medida drástica que, além de enfrentar resistência, pode não abordar as causas reais do uso excessivo de dispositivos eletrônicos.
É preciso pensar em uma estratégia que inclua educação e conscientização sobre o uso saudável da internet e das telas; a simples proibição pode ter efeitos limitados. Soluções focadas na educação para o uso consciente e saudável de dispositivos eletrônicos, campanhas de conscientização, a inserção de educação digital nos currículos escolares e a capacitação de jovens para equilibrar o tempo de uso das telas com outras atividades são estratégias que podem ter resultados mais sustentáveis a longo prazo. Assim, a promoção de hábitos saudáveis, tanto em relação à alimentação quanto ao uso da tecnologia, deve ser o foco das políticas públicas, visando um impacto positivo e duradouro na saúde e no bem-estar
Não podemos perder de vista que o lobby de grandes corporações desempenha um papel significativo nas decisões legislativas no Brasil, como no caso da taxação dos alimentos ultraprocessados ou na regulamentação das plataformas digitais com o PL das Fake News (PL 2630/2020).
O lobby da indústria de alimentos tem argumentado que as organizações que defendem regras mais rigorosas, como a taxação de alimentos ultraprocessados ou a proibição do consumo desses produtos em escolas, promovem o que chamam de “terrorismo nutricional” e que todos os alimentos deveriam ter menos impostos, já que alimentam todos da mesma forma. Assim, tentam colocar os ultraprocessados e os alimentos in natura na mesma categoria.
Atualmente, na reforma tributária, os ultraprocessados estão ficando de fora do imposto seletivo que incide sobre alimentos considerados prejudiciais à saúde. Apenas as bebidas açucaradas terão uma tributação mais elevada. Já o PL das Fake News teve sua tramitação influenciada por empresas de tecnologia, conhecidas como big techs, que exerceram pressão para evitar a aprovação de regras de controle sobre a disseminação de desinformação nas plataformas digitais.
Esses dois exemplos mostram como grandes setores econômicos utilizam sua influência política para aprovar seus interesses privados. Por isso, se faz ainda maior a importância da presença e representação da sociedade civil nas decisões legislativas, para garantir que os interesses públicos e a voz da população também sejam escutados e defendidos.