Entre o passado e a justiça

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No turbilhão histórico que marcou o regime militar no Brasil, episódios sombrios de perseguição política, prisões arbitrárias e torturas permanecem como cicatrizes dolorosas na memória coletiva.

Em agosto de 2010, as sucessoras do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Melino decidiram enfrentar o passado ao ajuizar uma ação de reparação por danos morais contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, figura central nos relatos de abusos ocorridos sob sua supervisão no DOI-Codi.

O desenrolar desse processo, que transitou por diversas instâncias judiciais, lança luz sobre os intricados dilemas envolvendo a responsabilidade civil do Estado e a questão da (im)prescritibilidade da pretensão reparatória por atos de tortura perpetrados durante um período sombrio da história brasileira.

A 20ª Vara Cível da Comarca de São Paulo, em primeira instância, julgou procedentes os pedidos das autoras, condenando Ustra ao pagamento de R$ 50 mil, a título de indenização, a cada uma delas.

A defesa de Ustra, ao recorrer da sentença, sustentou a ilegitimidade do ex-agente do DOI-Codi para figurar como réu na ação. Argumentou que os atos imputados ocorreram enquanto ele se encontrava sob o comando da Operação Bandeirante (OBAN) e do DOI-Codi do 2º Exército Brasileiro, alegando que Ustra atuava como representante do Estado, não de forma individual. Além disso, levantou a discussão sobre a ausência de interesse processual das demandantes, uma vez que estas já teriam recebido reparação econômica perante a Comissão Especial de Anistia.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por meio da 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, surpreendeu ao acolher a tese da defesa de Ustra, revertendo a decisão de primeira instância. Este revés contrariou a tendência até então consolidada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de reconhecer a imprescritibilidade retroativa em ações de reparação moral por violações aos direitos humanos ocorridas durante o regime militar.

Ato contínuo, diante da reviravolta no TJSP, as sucessoras do jornalista não se deram por vencidas e recorreram ao STJ, buscando não apenas reparação, mas também o reconhecimento de responsabilidade individual de Ustra pelos atos de tortura praticados durante o regime militar.

Entretanto, no último dia 29 de novembro, o STJ não apenas reiterou a ilegitimidade de Ustra para figurar como réu na demanda, como também lançou mão do argumento da prescrição, praticamente sepultando as pretensões das autoras.

A ministra Maria Isabel Gallotti, cujo voto sagrou-se vencedor, fundamentou sua posição destacando a Súmula 647 do STJ, que preconiza a imprescritibilidade das ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais durante o regime militar. No entanto, a ministra restringiu a aplicação da súmula às demandas intentadas diretamente em face do Estado, evitando, assim, a perpetuidade dos conflitos entre indivíduos e respeitando os princípios de reconciliação e pacificação nacional.

Gallotti argumentou, citando os artigos 2º da Lei 9.140/1995[1] e 1º da Lei 11.258/2011[2], que a conquista da anistia e a redemocratização do país são princípios a serem preservados, sugerindo que a reparação deveria recair sobre o Estado, não sobre os herdeiros do causador do dano.

Já o ministro relator Marco Buzzi, em voto vencido, apresentou uma compreensão divergente. Mesmo reconhecendo a compreensão distinta da ministra Gallotti, o ministro questionou a ideia de que os atos de tortura praticados durante o regime militar derivaram das funções públicas regulares do agente estatal.

Além disso, Buzzi se fundamentou na Lei 9.140/1995, que previu a instituição de uma Comissão Especial para investigar e apurar as violações à dignidade humana durante o regime militar. Referida lei estabeleceu a possibilidade de ajuizamento de ação condenatória sem prazo prescricional, enfatizando a impossibilidade de aplicação analógica de outros diplomas normativos, como o Código Civil ou o Decreto 20.910/95.

O voto do ministro Buzzi destacou, ainda, que, à luz da gravidade dos atos cometidos, a pretensão indenizatória seria imprescritível, visto que a tortura política seria “uma expressão tenebrosa da patologia presente em um sistema sócio-político doentio”.

Com o voto-vista do ministro João Otávio de Noronha, que negou provimento ao recurso especial, a 4ª Turma do STJ, por maioria, ratificou a decisão de ilegitimidade de Ustra e reconheceu a prescrição da pretensão reparatória das autoras.

Esse desfecho não apenas mantém a controvérsia viva, mas adiciona um novo componente explosivo, alimentando o debate sobre a responsabilidade civil do Estado e dos agentes públicos nos atos de tortura praticados durante o regime militar.

A ausência de unanimidade no julgamento do STJ deixa as portas abertas para futuras discussões e reflexões sobre a complexidade desse doloroso período da história brasileira e os seus impactos na esfera jurídica dos cidadãos brasileiros.

[1] Art. 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 – Lei de Anistia.

[2] Art. 1º É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.