Para o operador do direito cuja trajetória profissional está assentada sobre os fundamentos de uma tradição jurídica de matriz inquisitorial/mista,[1] o primeiro contato com o sistema adversarial enseja uma questão particularmente curiosa: a pronúncia dos títulos judiciais.
Por mais anódina que possa parecer à primeira vista, tal questão encerra, na verdade, significativas implicações teóricas, de modo que o aspecto linguístico-formal, de aparência trivial, revela-se como verdadeira chave de acesso aos princípios estruturantes que informam a lógica do processo adversarial.
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Nesse contexto, nas jurisdições que adotam o sistema da common law e se organizam sob a égide do modelo adversarial, é consagrado o uso da abreviação “v.” — derivada do termo latino versus, cujo sentido denota “contra” — como elemento identificador das partes contrapostas no título das demandas judiciais, sobretudo, em matéria penal.[2] Essa convenção simbólica assume função não meramente nominativa, mas indica o caráter eminentemente dialético e conflituoso que permeia a relação processual adversarial.
Oriundo da tradição jurídica anglo-saxônica,[3] o sistema adversarial se propõe a dirimir litígios mediante a contraposição de versões antagônicas acerca dos fatos e do direito, as quais são submetidas ao crivo de um julgador imparcial, cuja atuação se dá de forma predominantemente passiva.[4] Tal arranjo processual repousa sobre o postulado epistemológico segundo o qual a verdade material melhor se revela através do embate dialético entre as partes, ambas dotadas de iguais oportunidades para sustentar e impugnar as pretensões postas em juízo.[5]
No cenário contemporâneo, contudo, observa-se uma inflexão paradigmática: a valorização crescente e progressiva de mecanismos consensuais e colaborativos, sobretudo, no processo penal, de modo que tem provocado inquietações quanto à possível desfiguração das garantias fundamentais do acusado,[6] em nome de uma eficiência procedimental muitas vezes apressada e utilitária.[7]
Essa mudança de perspectiva tem alimentado críticas que acusam o modelo adversarial de exasperar o individualismo jurídico e de fomentar práticas estratégicas voltadas não à descoberta da verdade, mas à obtenção de resultados processuais — ainda que à custa da integridade probatória.[8] Outro vetor de crítica diz respeito à assimetria estrutural de recursos (v.g., financeiros) e competências técnicas entre as partes litigantes — desigualdade que o paradigma adversarial, em sua pureza teórica, tende a ignorar ou minimizar, como se o ideal de paridade de armas se realizasse automaticamente no plano empírico.[9]
Em contrapartida, não constitui traço distintivo da tradição jurídico-processual inquisitória ou mista, a elaboração de títulos de casos que se façam acompanhar da nominação das partes litigantes ou da expressão “versus”, tão emblemática do modelo adversarial. Ao revés, é usual que tais títulos se restrinjam à menção do órgão jurisdicional prolator, à natureza da ação ou do pronunciamento decisório, bem como ao número do processo — por vezes acrescido da data da decisão. Esses elementos são, em regra, dispostos em ordem numérica sequencial, conforme os parâmetros internos de organização do respectivo sistema jurídico, com vistas à racionalização do acesso e da catalogação dos feitos.[10]
Essa configuração formal revela a concepção segundo a qual o magistrado atua como figura equidistante e “investigadora”, deslocando o protagonismo do conflito intersubjetivo para o rito e o percurso processual. Desse modo, privilegia-se uma abordagem institucional objetiva, mitigando potenciais parcialidades e evitando as cargas emocionais e simbólicas frequentemente associadas à exposição nominal das partes.
À primeira leitura, essa estilística pode sugerir a inexistência de antagonismo direto ou transparecer a ausência de tensão pronunciada direto entre os sujeitos processuais. Não obstante, é patente que há embates substanciais — todavia, a finalidade primordial não reside em dramatizar o processo como arena de confrontação binária entre vencedores e vencidos, mas sim em resolver a controvérsia com sobriedade procedimental e distanciamento institucional.
Dessa forma, incumbe aos agentes estatais — notadamente o membro do Ministério Público e os órgãos de polícia judiciária — o encargo de realizar a investigação pautada pela objetividade, com vistas à elucidação do substrato fático que sustenta a imputação penal.[11] Tanto o parquet quanto a autoridade policial estão adstritos à obrigação de abster-se de práticas que envolvam artifício ou coação, sendo-lhes igualmente exigido o exame equânime da hipótese acusatória, sob múltiplas perspectivas, em respeito ao ideal de justiça substancial.[12]
Nesse arranjo institucional, o magistrado assume um papel de supervisão sobre a fase investigatória, funcionando como instância garantidora e assegurando que o procedimento não se converta em um laissez-faire persecutório por parte do aparato estatal.[13] Tal configuração busca, portanto, preservar a integridade da fase investigativa, zelando pela estrita observância dos princípios da imparcialidade, da legalidade e do devido processo legal.
Posto isso, propõe-se doravante a reflexão segundo a qual a acentuada margem de discricionariedade atribuída ao órgão acusatório no contexto dos acordos penais — notadamente no plea bargaining — e a prevalência de confissões formais de culpa como via preferencial de resolução processual, características marcantes do ordenamento jurídico estadunidense, poderiam ser atenuadas por meio da incorporação de instâncias qualificadas de controle e fiscalização judicial. Tais mecanismos exerceriam o papel crucial na contenção de eventuais arbitrariedades investigativas,[14] funcionando como salvaguardas estruturais do devido processo legal.[15]
Esse paradigma, ao deslocar o eixo da condução processual para uma lógica de maior tutela jurisdicional sobre a atividade persecutória, evidencia com nitidez o contraste entre as concepções de justiça que fundamentam, respectivamente, os modelos inquisitório/misto e adversarial, revelando não apenas uma distinção de ordem procedimental, mas, sobretudo, epistemológica e institucional entre os sistemas.
Destarte, na lógica inquisitorial/mista, a fase de julgamento, incumbe aos magistrados a condução dos atos processuais com o fito de alcançar a verdade material, mediante o exame meticuloso de todas as fontes de informação constantes no processo.[16] Tal atuação visa à eliminação de qualquer dúvida razoável que possa subsistir quanto à responsabilidade penal do acusado, conferindo centralidade ao juízo no âmbito de sua convicção racional.[17]
No campo do sistema inquisitorial/misto, embora seja assegurado às partes o direito de produzir provas,[18] é igualmente admissível que adotem postura processual de menor protagonismo, confiando ao juízo a missão instrutória de reconstrução fática.[19] Esse arranjo institucional influencia diretamente a dinâmica de produção probatória, que se submete a critérios de admissibilidade e necessidade determinados pelo próprio magistrado.
Os juízes, por sua vez, atuando sob estrita observância das normas processuais vigentes, assumem a responsabilidade de valorar a prova de maneira objetiva e fundamentada, culminando, ao final da audiência de instrução e julgamento na prolação do veredito, bem como na eventual fixação da sanção penal aplicável.[20]
Historicamente alheios às práticas modernas, os sistemas inquisitorial/misto relegavam a inexistência de disposições relativas à confissão formal e à negociação de penas, impondo que a totalidade dos processos se submetesse ao crivo do julgamento pleno, no qual as provas são integralmente produzidas perante ou pelo próprio magistrado, incumbido da formulação do veredito.
Esse contexto procedimental motivou críticas contundentes, defensores do sistema inquisitorial/misto, contra o modelo estadunidense, notadamente no que tange à aceitação de acordos que implicam a confissão por delitos de menor gravidade ou a concessão de regimes ou sanções benevolentes, com vistas a evitar a complexidade e os custos financeiros que permeiam o trâmite convencional judicial.
Embora tenha sido alvo, incialmente, de considerável resistência, o repúdio à cultura do plea bargaining experimentou uma transformação gradual, culminando na difusão e globalização do modelo estadunidense em sistemas jurídicos tradicionalmente enraizados na tradição inquisitorial/mista.[21] De fato, a partir do desfecho da Segunda Guerra Mundial, múltiplas nações europeias empreenderam reformas substanciais em seus sistemas de justiça criminal, com frequência se valendo das práticas e dos preceitos desenvolvidos no ordenamento jurídico norte-americano como fonte de inspiração normativa e procedimental.[22]
Esse fenômeno de transposição e adaptação extrarregional repercutiu igualmente na América Latina,[23] destacando-se o caso brasileiro, onde a influência do direito penal e processual americano sobre o processo penal nacional se consolidou com intensidade ao longo das últimas décadas.[24]
Originalmente, o modelo misto brasileiro não emergiu de uma fonte ideológica única, mas resulta de uma intricada confluência de tradições jurídicas diversas. O ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), observa que o sistema processual penal brasileiro desenvolveu-se a partir de práticas jurídicas consolidadas entre o final da Idade Média e o término da Era Moderna, culminando na conformação de um modelo “misto”, inaugurado com o Código Napoleônico de 1808 — diploma normativo que exerceu profunda influência tanto sobre os ordenamentos da Europa Continental quanto sobre os sistemas jurídicos da América Latina.[25]
Conforme evidenciado por vínculos políticos e comerciais estratégicos — especialmente durante o reinado de Dom Pedro I — com a Inglaterra, e somado à herança jurídico-institucional de matriz portuguesa, o Brasil estruturou seu primeiro Código de Processo Penal com forte preservação de elementos inquisitoriais. Tal escolha normativa aproximou significativamente o sistema nacional da tradição processual francesa, em contraste com o modelo adversarial inglês, cuja principal expressão se encontra no instituto do julgamento pelo o júri (Trial by Jury).[26]
Isso posto, cumpre salientar que o Brasil, ao longo de sua trajetória constitucional, passou por sete constituições,[27] acompanhadas de dois Códigos de Processo Penal distintos: o Código Imperial de 1832 e o atual diploma normativo, em vigor desde 1941. Este último foi instituído durante o regime ditatorial do Estado Novo,[28] instaurado na década de 1930, sendo fortemente influenciado pelo Código Rocco,[29] de inspiração fascista, vigente à época na Itália.[30]
As repercussões desse contexto histórico-ideológico são perceptíveis de forma contundente não apenas na legislação processual penal, mas também presentes na doutrina, na jurisprudência, na formação jurídica e, de modo mais amplo, na política criminal brasileira. Um dos traços mais marcantes dessa influência manifesta-se na outorga ao magistrado de poderes ex officio, autorizando-o a desempenhar funções típicas do Ministério Público, como determinar a instauração de investigações criminais ou, ainda, proferir sentença condenatória mesmo diante de pedido absolutório formulado pelo titular da ação penal.[31]
Desde a sua promulgação em 1941, o Código de Processo Penal brasileiro tem sido objeto de sucessivas reformas, que espelham, em larga medida, as oscilações do país entre períodos de autoritarismo e fases de redemocratização. Com o advento da Constituição Federal de 1988 — marco inaugural de uma nova ordem jurídico-política assentada na dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais — o referido diploma processual passou a ser objeto de um intenso processo de reconfiguração normativa.
Essa reconfiguração tem afastado progressivamente os traços autoritários originários, herdados do modelo fascista italiano, em prol da incorporação de garantias compatíveis com o Estado Democrático de Direito.[32] A partir desse novo horizonte constitucional, observa-se o continuo influxo de princípios e práticas oriundos do sistema jurídico norte-americano, cuja influência se faz notar não apenas na estrutura e nas garantias do direito processual penal, mas também na conformação substancial das normas de caráter penal.
Tal conjuntura evidencia um fenômeno denominado de “americanização” no campo do direito penal e processual, sinalizando uma proclividade marcada pela assimilação de institutos e procedimentos jurídicos oriundos do ordenamento jurídico estadunidense.[33]
Embora prerrogativas típicas do sistema anglo-saxão, notadamente o julgamento pelo júri e a garantia do habeas corpus, já integrem o arcabouço normativo brasileiro desde épocas pretéritas à promulgação da Constituição de 1988,[34] foi a partir da vigência da Carta Magna que se delineou, de forma inequívoca, a influência preponderante de outras doutrinas e procedimentos próprios do direito norte-americano.
A introjeção mais evidente manifesta-se no modelo de justiça negociada, exemplificado pela transação penal prevista no artigo 98, inciso I, da Constituição de 1988. Tal dispositivo consagra a possibilidade de negociação em casos que envolvam infrações de menor potencial ofensivo. Além disso, o ordenamento jurídico brasileiro incorporou outros institutos correlatos, como a suspensão condicional do processo, o acordo de não persecução penal e o mecanismo dos acordos de colaboração premiada, esta última conhecida no direito americano como cooperation agreement.
Outra contribuição notável do direito estadunidense reside no princípio jurídico do “privilégio contra a autoincriminação” (privilege against self-incrimination), consagrado na Constituição de 1988 por meio da garantia prevista no artigo 5º, inciso LXIII, que dispõe: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, assegurada a assistência da família e de advogado”.
Ademais, as doutrinas das “frutas da árvore envenenada” (fruits of the poisonous tree) e da “fonte independente” (independent source) encontram-se codificadas, respectivamente, nos §§ 1º e 2º do artigo 157 do Código de Processo Penal. Cumpre ainda destacar a incorporação da figura dos agentes infiltrados (undercover agents) na legislação penal brasileira, como instrumento legítimo de obtenção de prova no curso de investigações criminais, especialmente no combate à criminalidade organizada.
Por derradeiro — porém, não menos relevante —, observa-se que tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o STJ têm acolhido, em sua jurisprudência, o parâmetro probatório do “além de uma dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt) como critério decisório prevalente, sobretudo, em matéria penal.[35] Cite-se, por oportuno, que a jurisprudência do STJ já considerou a aplicabilidade da teoria da “cegueira deliberada” (willful blindness) como critério subjetivo de imputação nos crimes de lavagem de capitais, permitindo a responsabilização penal daqueles que, diante de fortes indícios da origem ilícita dos valores, optam conscientemente por não aprofundar o conhecimento sobre os fatos subjacentes, equiparando tal postura à efetiva ciência do caráter criminoso referente à ação perpetrada.[36]
Em que pese a visível influência do direito norte-americano sobre o sistema penal brasileiro, é incorreto e descabido afirmar que teria ocorrido uma transposição integral do modelo adversarial em detrimento da matriz inquisitorial-acusatória (mista). Em verdade, a internalização de institutos e procedimentos de origem estrangeira no ordenamento jurídico brasileiro passou por um processo de adaptação normativa.
Em termos substanciais, não houve uma incorporação jurídica direta, moldada nos exatos contornos do sistema dos Estados Unidos. Ao contrário, tanto o legislador quanto os juízes brasileiros atuaram com cautela, visando compatibilizar os aportes legislativos e jurisprudenciais de origem norte-americana com a estrutura inquisitorial-acusatória (mista) vigente em nosso país, sobretudo, no que se refere à observância dos limites legais e constitucionais.
Esse cenário reforça a compreensão de que a ampliação da discricionariedade conferida ao Ministério Público para a celebração de acordos com o imputado não implica, por si só, em uma ameaça à integridade dogmática do sistema misto brasileiro. Os magistrados, necessariamente, preservam uma postura de contenção durante a fase pré-processual, limitando-se à supervisão dos atos investigatórios e eventuais negociações, sem a transferência ou a delegação de sua autoridade jurisdicional.
Assim, pode-se afirmar que se instaurou uma espécie de “liberdade vigiada” para a atuação negocial do parquet, o que, por sua vez, evidencia traços genuínos do sistema inquisitório — em que oversight judicial constitui elemento nuclear do processo investigativo. Veja que a homologação do acordo de colaboração premiada é um forte exemplo de sindicância judicial sobre o modelo negocial imposto pelo legislador brasileiro, algo inexistente no direito norte-americano.
Posto isso, o alerta que se faz, aqui, é que se deve avaliar com ceticismo e acuidade cada desembaraço de institutos importados da common law, haja vista eventual incompatibilidade com preceitos e figuras jurídicas domésticas. Não por isso, deve-se descartar os potenciais intercâmbios normativos e teóricos decorrentes dessa interlocução, pois contribuições significativas podem ter a sua devida relevância, como é o caso de institutos importados e bem incorporados no âmbito da legislação nacional.
Em outra via, embora o modelo adversarial norte-americano tenha historicamente demonstrado resistência à incorporação de elementos próprios da tradição inquisitória/mista,[37] a adoção de reformas inspiradas em ordenamentos estrangeiros poderia representar — por que não — em um importante instrumento de mitigação de abusos investigativos, conforme denunciado sobejamente pela doutrina.[38] Ademais, tal abertura, em âmbito comparado, tem o potencial de fomentar o aprimoramento de boas práticas em áreas sensíveis como os direitos humanos, a transparência processual e as garantias fundamentais pertencentes do devido processo legal.
Não restam dúvidas, portanto, de que tal assertiva ressalta o potencial para o estabelecimento de um diálogo construtivo entre distintas tradições jurídicas, sem que se comprometa o respeito aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico interno.[39] Por outro lado, não se pode negar que a “confluência” entre as tradições adversariais e inquisitórias/mistas pode, de fato, ensejar desafios relevantes.[40]
Contudo, vale frisar que os sistemas jurídicos não se configuram como ecossistemas frágeis, suscetíveis a perturbações externas; ao contrário, historicamente têm protagonizado intercâmbios fecundos, o que sugere que qualquer tentativa de restringir esse processo dificilmente seria a opção mais prudente.[41]
Dessa forma, evidencia-se que a interação entre diferentes modelos jurídicos transcende meras tensões institucionais, configurando-se como uma oportunidade ímpar para o aprimoramento recíproco dos sistemas legais. O respeito às particularidades internas deve caminhar lado a lado com a abertura a influências externas, desde que essas sejam assimiladas de forma crítica e contextualizada. Assim, a dinâmica intercultural do direito não apenas fortalece a resiliência dos ordenamentos nacionais, mas também promove um desenvolvimento normativo mais robusto, capaz de responder às complexidades do mundo contemporâneo.
Portanto, abraçar o diálogo pluralista entre tradições jurídicas constitui um elemento imperativo para a construção de um direito mais equânime, eficaz e sintonizado com os valores universais de justiça. Nesse prisma, resta a lição do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer — discípulo de Heidegger — que, em linha gerais, defendia que a compreensão verdadeira só poderia ocorrer por meio do diálogo, no qual as diferenças são não apenas reconhecidas, mas também integradas e transformadas dentro de uma perspectiva fecunda que ele denominava de “fusão de horizontes” (Horizontverschmelzung).[42]
[1] Para uma compreensão abrangente acerca da natureza, das características e das distinções entre os sistemas processuais penal adversarial, inquisitório e misto, ver: GARCETE, Carlos Alberto. Sistemas jurídicos no processo penal. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
[2] Cf. casos paradigmáticos em distintas jurisdições de matriz adversarial: Estados Unidos – Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966): nesta decisão seminal, a Suprema Corte norte-americana consolidou os denominados Miranda rights, consagrando a obrigatoriedade de que indivíduos sob custódia policial sejam devidamente advertidos acerca de seu direito ao silêncio — fundado no princípio nemo tenetur seipsum accusare — e ao patrocínio de defesa técnica. Tal entendimento representa um marco na proteção contra a autoincriminação, delineando os contornos do devido processo penal no sistema estadunidense; Reino Unido – R v. Brown, [1994] 1 A.C. 212 (H.L.): The House of Lords, em acórdão de grande repercussão, firmou o entendimento de que o consentimento (consensio) das partes não configura excludente de ilicitude em casos de lesão corporal resultante de práticas sadomasoquistas consentidas. A controvérsia suscitou vigorosos debates quanto aos limites da autonomia privada e ao papel interventivo do Estado em matérias atinentes à intimidade e à moralidade pública; Austrália – R v. Lee, [2014] HCA 58: A High Court australiana enfrentou questões substanciais relativas à admissibilidade de provas no processo penal por homicídio, reafirmando os postulados do devido processo legal e o direito inalienável ao contraditório e à ampla defesa (ius in iudicium). O julgado equilibrou, de forma criteriosa, a força probatória dos elementos colhidos com seus potenciais efeitos deletérios à imparcialidade do julgamento; Canadá – R v. Jordan, [2016] 1 S.C.R. 631: em decisão disruptiva, a Suprema Corte do Canadá reformulou os parâmetros jurisprudenciais atinentes ao direito do réu a um julgamento em prazo razoável, previsto no artigo 11(b) da Carta Canadense de Direitos e Liberdades. Estabeleceram-se, assim, diretrizes objetivas para mitigar a morosidade processual e assegurar a efetividade do direito de defesa (ius accusandi), em consonância com os princípios da razoabilidade e da eficiência judicial; Índia – State of Uttar Pradesh v. Rajesh Gautam, (2003) 5 SCC 143: o pronunciamento da Suprema Corte versou sobre a discricionariedade judicial (discretio iudicis) na dosagem da sanção penal, evidenciando os desafios hermenêuticos e normativos do direito criminal indiano, especialmente diante da pluralidade cultural, social e jurídica que caracteriza o subcontinente indiano; África do Sul – S v. Zuma, [2006] ZASCA 2: neste caso emblemático, a Suprema Corte de Apelações sul-africana abordou questões de responsabilidade penal em face de acusações de corrupção envolvendo o ex-presidente Jacob Zuma, reafirmando, de forma enfática, a centralidade do princípio da legalidade (principium legalitatis) como pilar estruturante do Estado Democrático de Direito na era pós-apartheid.
[3] Cf. SWARD, Ellen E. Values, ideology, and the evolution of the adversary system. Indiana Law Journal, Bloomington, v. 64, p. 323, 1989. A autora elucida que, já no decurso do século XIII, a tradição da common law achava-se profundamente enraizada em solo jurídico inglês, resistindo com vigor à corrente codificadora que então se irradiava pelo continente europeu. Tal resistência não se deu sem propósito. Ela visava preservar e consolidar pilares fundamentais do sistema adversarial, entre os quais avultam o protagonismo das partes na condução do litígio, o prestígio e a autonomia institucional do profissional do direito (partes), bem como a vitalidade de uma ordem jurídica consuetudinária robusta. Esses elementos estruturantes, longe de se limitarem ao contexto britânico, irradiaram-se com intensidade para os países de tradição anglo-saxônica, as chamadas “nações-filhas”, contribuindo para a consolidação do modelo adversarial no plano comparado.
[4] FREEDMAN, H. Our constitutionalized adversary system. Chapman Law Review, Orange, v. 1, p. 57, 1998.
[5] Cf. BARRETT, Edward F. The adversary system and the ethics of advocacy. Notre Dame Law Review, Notre Dame, v. 37, p. 479–480, 1962. O autor sustenta que os fundamentos pragmáticos do sistema adversarial guardam notável semelhança com o procedimento dos canonistas, notadamente no papel desempenhado pelo promotor fidei — conhecido como “advogado do diabo” —, cuja função consiste em apresentar todos os argumentos contrários à beatificação de um candidato, ressaltando, com isso, a importância da fiscalização rigorosa e da dialética crítica como instrumentos de aproximação da verdade.
[6] Cf. SWARD, Ellen E. Op. cit., p. 312–317, 328.
[7] PACKER, Herbert L. Two models of the criminal process. University of Pennsylvania Law Review, Philadelphia, v. 113, p. 1–68, 1964.
[8] SWARD, Ellen E. Op. cit., p. 312–317.
[9] Id., p. 312.
[10] Observe-se, a título de ilustração, a formulação dos títulos processuais em distintas jurisdições de tradição inquisitória/mista, cujas práticas nominativas refletem peculiaridades sistêmicas e epistemológicas próprias de cada ordenamento. Brasil: No ordenamento jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF), na condição de guardião da Constituição da República, adota um modelo de identificação dos feitos judiciais que privilegia a objetividade técnico-formal, indicando a natureza da ação, o número sequencial do processo e sua origem federativa, como se vê no exemplo: “RE 583937, Rio de Janeiro/RJ”. Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), instância de cúpula responsável por assegurar a uniformidade da interpretação do direito federal infraconstitucional, adota estrutura nominativa análoga, como se observa em “REsp 2090454, São Paulo/SP”. Essa padronização reflete o formalismo informativo característico da racionalidade processual brasileira, que privilegia o dado objetivo em detrimento da identificação nominal das partes. Itália: A Corte Costituzionale della Repubblica Italiana, instituição congênere ao STF, desempenha função precípua na guarda da supremacia constitucional, adotando, em suas decisões, um modelo titulativo centrado na identificação do tipo de pronunciamento — Sentenza, por exemplo — e na numeração sequencial e anual da decisão: “Sentenza 239/2014 (ECLI:IT:COST:2014:239)”. O uso do identificador ECLI (European Case Law Identifier) revela o compromisso com a integração jurisprudencial europeia e o acesso universal à jurisprudência. De maneira equivalente, a Corte di Cassazione, vértice da jurisdição ordinária italiana, estrutura seus títulos com elementos que informam a matéria (penal, civil etc.), a seção julgadora, o número do processo e o ano, como em: “Penale Sent. Sez. 1 Num. 37212 Anno 2024”, evidenciando a tecnicidade e segmentação funcional da Corte. Alemanha: No sistema jurídico germânico, a identificação dos julgados é marcada por siglas altamente codificadas. O Bundesverfassungsgericht (BVerfG), tribunal constitucional, e o Bundesgerichtshof (BGH), instância máxima para causas civis e penais, publicam seus acórdãos em repositórios oficiais — BVerfGE e BGHSt, respectivamente. As citações seguem o padrão: número do volume, página inicial da decisão, e, entre parênteses, a página específica de referência, como em “BVerfGE 45, 187 (238)” ou “BGHSt 57, 71 (74)”, denotando uma lógica sistematizada de acesso à jurisprudência por meio de indexação precisa. França: No contexto francês, o Conseil Constitutionnel, órgão de controle concentrado de constitucionalidade, adota títulos decisórios compostos pelo número da decisão, o ano e, quando aplicável, a sigla QPC (Question Prioritaire de Constitutionnalité), seguida da data do julgamento, como em: “Décision n° 2020-851/852 QPC du 3 juillet 2020”. Já a Cour de Cassation, poder de cúpula do judiciário ordinário, estrutura seus títulos com elevado grau de detalhamento institucional: a designação da corte, a câmara competente, a data da decisão e o número identificador singular do processo, como exemplifica a fórmula: “Cour de Cassation, Chambre criminelle, 5 mai 2021, n° 20-85641”. Trata-se, portanto, de um modelo que privilegia a precisão classificatória e o rigor técnico-formal.
[11] GRUNEWALD, Ralph. Comparing injustices: truth, justice, and the system. Albany Law Review, Albany, v. 77, p. 1139–1157, 2013.
[12] Id., p. 1157. O autor destaca que uma diferenciação estrutural essencial entre os sistemas inquisitório e o adversarial reside na imposição, característica do primeiro modelo, de que o Ministério Público proceda à revelação integral de todos os elementos probatórios e das imputações formais ao acusado previamente à abertura da fase de julgamento, consolidando tais informações em um dossiê instrutório exaustivo, o qual passa a constituir a base documental exclusiva sobre a qual se desenvolverá a persecução penal).
[13] GOLDSTEIN, Steven L.; MARCUS, Mitchel de S.-O.-L’E. The Myth of Judicial Supervision in Three “Inquisitorial” Systems: France, Italy, and Germany. The Yale Law Journal, New Haven, v. 87, p. 240–283, 1977.
[14] A professora Alexandra Natapoff chama atenção para casos paradigmáticos que evidenciam as tensões éticas e jurídicas associadas ao uso de delatores no sistema penal. Em diferentes contextos, indivíduos vulneráveis — como Rachel Hoffman, coagida a atuar em operação policial e posteriormente assassinada; Amy Gepfert, pressionada a praticar ato sexual em troca de imunidade penal; e Henry, jovem deportado após colaborar com investigações contra o crime organizado — ilustram os riscos de um modelo investigativo que, ao conferir poderes discricionários amplos às autoridades investigativas, opera à margem de salvaguardas institucionais. Cf., NATAPOFF, Alexandra. Snitching: criminal informants and the erosion of American justice. 2. ed. New York: New York University Press, 2022. p. 2, 5, 42.
[15] Id., p. 240-246.
[16] AINSWORTH, Janet. Legal Discourse and Legal Narratives. Language and Law / Linguagem e Direito, Porto, v. 2, n. 1, p. 1–7, 2015. A autora observa que as práticas de matriz inquisitória tendem a restringir a capacidade das partes de moldar suas próprias estratégias processuais e de controlar as narrativas jurídicas envolvidas, uma vez que cabe ao juiz, de maneira unilateral, determinar quais informações serão apresentadas durante o julgamento. Essa estrutura pode culminar na marginalização de litigantes e testemunhas, privando-os da possibilidade de expressar as suas versões sobre os fatos.
[17] GRUNEWALD, Ralph. Op. cit., p. 1158.
[18] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 520. O autor define como inquisitório todo sistema processual em que o juiz atua ex officio na busca, produção e avaliação das provas, conduzindo o processo por meio de uma instrução escrita e sigilosa, com exclusão ou limitação do contraditório e dos direitos de defesa.
[19] Id., p. 1158
[20] Id., p. 1158
[21] Cf. LANGER, Máximo. From Legal Transplants to Legal Translations: The Globalization of Plea Bargaining and the Americanization Thesis in Criminal Procedure. Harvard International Law Journal, v. 45, p. 1-64, 2004; MOREIRA, José Carlos Barbosa. O processo penal norte-americano e sua influência. Revista Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 12, p. 89, 95, 2000. Moreira afirma que “conforme bem se compreende, a incontrastada hegemonia político-econômica dos Estados Unidos no mundo contemporâneo tem exercido urbi et orbe considerável força de atração. Raro é o povo – se algum existe – que permanece imune à influência dos padrões norte-americanos. Atua esse movimento em todos os setores da vida social, e o direito não faz exceção. Até ordenamentos secularmente filiados a tradições diversas sucumbem, de modo espontâneo ou sob a pressão de realidades concretas, à correnteza assimiladora”.
[22] Cf. LANGER, op. cit., p. 26-29.
[23] Id., p. 28.
[24] Cf. MOREIRA, op. cit., p. 95-100.
[25] STJ, REsp 2022413/PA.
[26] Id.
[27] Ao longo de sua formação histórico-jurídica, o Brasil experimentou sete constituições, cada qual refletindo, em maior ou menor grau, as inflexões políticas, sociais e institucionais de sua época. Nesse percurso, cumpre sublinhar a centralidade do habeas corpus como expressão máxima da tutela das liberdades civis. Em contextos democráticos, sua vigência simboliza o compromisso do Estado com os direitos fundamentais; em tempos de autoritarismo, sua suspensão ou limitação revela o enfraquecimento das garantias individuais e a prevalência de um Estado de exceção. A Constituição Imperial de 1824, outorgada por Dom Pedro I, lançou as bases do constitucionalismo brasileiro, mas silenciou quanto à previsão expressa do habeas corpus. Apenas com a Constituição Republicana de 1891 é que tal instituto foi alçado à estatura constitucional (art. 72, § 22), consagrando-se como mecanismo de contenção contra prisões arbitrárias — posição reafirmada pela Carta de 1934 (art. 113, inciso 23). A ruptura surgiu com a Constituição autoritária de 1937, conhecida como a “Polaca”, que, ao ser imposta por Getúlio Vargas, restringiu severamente a utilização do habeas corpus (art. 122, inciso 16), culminando com sua suspensão de eficácia pelo Decreto n.º 10.358/1942. A redemocratização iniciada com a Constituição de 1946 restabeleceu os fundamentos do Estado de Direito, reinstaurando o habeas corpus (art. 141, § 23) como instrumento essencial de controle da legalidade. A Carta de 1967, elaborada sob a égide do regime militar, ainda que previsse formalmente o habeas corpus (art. 150, § 20), restringiu severamente os direitos civis, culminando com sua suspensão nos chamados crimes políticos pelo Ato Institucional nº 5, de 1968. Somente com a promulgação da Constituição de 1988 — expressão do novo constitucionalismo democrático — é que o habeas corpus foi definitivamente consolidado como direito fundamental, previsto no art. 5º, inciso LXVIII, símbolo da prevalência das garantias individuais e do devido processo legal no ordenamento jurídico brasileiro.
[28] SCHNEIDER, Ronald M. Order and progress: a political history of Brazil. Boulder: Westview Press, 1991. p. 1, 135-141; ROSENFIELD, Luis. Sobre idealistas e realistas: o Estado Novo e o constitucionalismo autoritário brasileiro. Veritas, Porto Alegre, v. 65, n. 1, p. 1-19, jan./abr. 2020. ISSN 0042-3955. Disponível em: https://revistaveritas.pucrs.br. Acesso em: 25 janeiro, 2025.
[29] Cf. STF, RE 505393/PE.
[30] SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A origem autoritária do Código de Processo Penal brasileiro. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 264-270, 2015.
[31] GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas marcas inquisitoriais do Código de Processo Penal brasileiro e a resistência às reformas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 143-145, 2015.
[32] Dentre as modificações a que foi submetido, o Código de Processo Penal brasileiro passou por três reformas de especial relevo nos anos de 2008, 2011 e 2019, cujas alterações normativas tiveram por escopo primordial a racionalização da marcha processual e o fortalecimento das garantias fundamentais do réu. Tais reformas inscrevem-se em um movimento mais amplo de reconfiguração do sistema de justiça criminal, orientado por compromissos crescentes com os postulados dos direitos humanos, notadamente no que tange à efetividade, celeridade e equidade processual.
[33] SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. A imbricação entre maxiprocessos e colaboração premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81, 97-103, jan./abr. 2020; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; ROLOFF, Bruna Caregnato. Importação dos institutos jurídicos negociais para o processo penal brasileiro: considerações críticas. Revista de Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE), Bebedouro/SP, v. 8, n. 3, p. 436-468, 2020; DE FILIPPO, Thiago Baldani Gomes; PASCOLATI JUNIOR, Ulisses Augusto. A americanização do direito penal pode ser bem-vinda? Boletim – 318 – Especial Pacote Anticrime, IBCRIM, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2019.
[34] É imprescindível salientar que a Constituição de 1891 representou um marco transformador no ordenamento jurídico brasileiro, incorporando de forma inequívoca influências norte-americanas por meio do estabelecimento do federalismo, do republicanismo e do presidencialismo, ao passo que instituiu, concomitantemente, mecanismos de controle jurisdicional e a criação da Justiça Federal em nível constitucional. Tais avanços encontram-se plenamente consagrados na atual Constituição de 1988, que simboliza um significante desenvolvimento quanto aos princípios constitucionais responsáveis por alicerçar o sistema jurídico brasileiro. Cf., ainda, BALEEIRO, Aliomar. 1891. In: Coleção Constituições Brasileiras, v. 2, 3. ed. p. 11-54, 2012.
[35] Cf. e.g., STF, AP 676/MT, AP 580/SP; STJ, HC 705522/SP, HC 681680/SP.
[36] STJ, APn 940/DF.
[37] SKLANSKY, David Alan. Anti-Inquisitorialism. Harvard Law Review, Cambridge, v. 122, p. 1634-1704, 2009. O autor observa que, historicamente, o direito norte-americano se distanciou do modelo inquisitorial, considerando-o como um “modelo negativo”, ou seja, algo a ser evitado. Cf. e.g., MESSITTE, Peter J. Citing Foreign Law in U.S. Courts: Is Our Sovereignty Really at Stake? University of Baltimore Law Review, v. 35, p. 178-184, 2005. O autor destaca que a hesitação dos tribunais norte-americanos em citar legislações estrangeiras em suas decisões é um fenômeno amplamente discutido na literatura jurídica. Ele aborda essa questão, sublinhando os desafios e as implicações da utilização de precedentes internacionais no direito constitucional dos Estados Unidos. Um exemplo notável dessa hesitação ocorreu no caso Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003), quando justice Anthony Kennedy, redator da opinião da maioria, fez referência à revogação de leis que criminalizavam a conduta homossexual na Grã-Bretanha e citou o caso Dudgeon v. United Kingdom da Corte Europeia de Direitos Humanos, que declarou tais leis inválidas sob a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Essa invocação ao direito estrangeiro foi criticada pelo justice Antonin Scalia, que a considerou como “dicta sem sentido, perigosas, no entanto“, expressando preocupação quanto à impropriedade de impor “modos, modismos ou tendências estrangeiras aos americanos” Dando azo à polêmica, a saudosa justice Ruth Bader Ginsburg, em simpósio na Universidade Estadual de Ohio, também comentou a resistência de parte do Congresso e de seus próprios colegas da Suprema Corte norte-americana quanto ao uso de precedentes e leis estrangeiras em decisões judiciais: “Eu sinceramente não entendo toda essa polêmica recente sobre citar leis estrangeiras.” Ginsburg defendeu o valor dessas referências ao citar uma decisão da Suprema Corte de Israel sobre a proibição da tortura, destacando seu forte apelo à dignidade humana: “Por que eu não deveria ler essa decisão e ser influenciada por seu enorme valor persuasivo?” A magistrada também criticou o isolamento jurisprudencial dos EUA, lembrando que tribunais de outros países, como o Canadá, frequentemente citam decisões americanas, mas raramente veem essa reciprocidade: “Você não será ouvido se não ouvir os outros.” O episódio evidencia o debate recorrente dentro da Suprema Corte sobre o uso — ou rejeição — do direito comparado, especialmente em temas constitucionais sensíveis. Cf., YEAZELL, Stephen. When and how U.S. courts should cite foreign law. Constitutional Commentary, v. 26, n. 1, p. 59–60, 2009. Cf., ainda., POSNER, Richard A. No thanks, we already have our own laws. Legal Affairs, v. 35, n. 2, p. 38–42, jul./ago. 2004.
[38] Cf, e.g., CRAIG, Paul. Tyranny of good intentions: how prosecutorial misconduct undermines the justice system. New York: Oxford University Press, 2020; NATAPOFF, Alexandra. Snitches: the institutional logic of betrayal. New York: Oxford University Press, 2018; VIANO, Emilio C. Plea bargaining in the United States: a perversion of justice. Revue Internationale de Droit Pénal, v. 83, n. 1-2, p. 109-118, 2012.
[39] Cf., BARROSO, Luís Roberto. ‘Here, There and Everywhere’: Human Dignity in Contemporary Law and in the Transnational Discourse. Boston College International and Comparative Law Review, v. 35, p. 331, 343-346, 2012. O autor apoia o discurso transnacional sobre a dignidade humana, cujo alcance pode abranger logicamente questões de natureza criminal, tais como racismo, tortura e abusos investigativos, entre outros.
[40] SKLANSKY, op. cit., p. 1685.
[41] Id., p. 1685.
[42] Cf., GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr Siebeck, 1960. A menção à fusão de horizontes (Horizontverschmelzung), conceito central da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, serve aqui como analogia para a interação entre diferentes tradições jurídicas. Gadamer propõe que a compreensão não é a simples reprodução do sentido do outro, mas o resultado de um encontro transformador entre o horizonte do intérprete e o horizonte do texto (ou do outro). Esses horizontes — entendidos como os conjuntos de experiências, expectativas e pressupostos históricos e culturais — não se fundem em uma unidade homogênea, mas se entrelaçam de modo a ampliar e modificar ambos os lados do diálogo. Do mesmo modo, no contexto jurídico aqui proposto, o contato entre modelos distintos não visa a homogeneização normativa, mas, sim, a construção de entendimentos mais amplos, que respeitam a diversidade ao mesmo tempo em que possibilitam o enriquecimento recíproco dos sistemas envolvidos.