Entre algoritmos e sinapses

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A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) vem se consolidando como referência no enfrentamento dos desafios regulatórios impostos pelas tecnologias emergentes.

Um dos marcos dessa atuação é a série Radar Tecnológico, iniciativa voltada à identificação e análise de inovações tecnológicas que impactam, ou impactarão, a proteção de dados pessoais no Brasil e no mundo. Publicado periodicamente, o Radar propõe tornar essas tecnologias mais compreensíveis e acessíveis, promovendo o debate público com base em conceitos-chave, aplicações concretas e projeções futuras.

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É neste contexto que se insere este artigo: uma análise critica do Radar Tecnológico da ANPD, com foco no estudo sobre neurotecnologias, a partir de uma leitura jurídica e regulatória sobre os dados neurais, as lacunas normativas existentes e os desafios envolvidos na proteção da mente frente ao avanço dessas tecnologias no Brasil.

A quarta edição, dedicada às neurotecnologias, destaca um campo que combina avanços científicos, alta complexidade técnica e sensíveis dilemas ético-jurídicos. Essas tecnologias potencialmente permitem a leitura, interpretação e até a modulação da atividade cerebral, o que abre horizontes promissores para aplicações médicas.

No entanto, levantam preocupações igualmente relevantes sobre privacidade, liberdade de pensamento e integridade psíquica. O mercado global está em franca expansão, com projeções de crescimento que saltam de US$ 11,3 bilhões em 2021 para US$ 24,2 bilhões em 2027.

Segundo a ANPD, neurotecnologias são dispositivos e procedimentos que acessam, monitoram, analisam, manipulam ou simulam estruturas e funções do sistema nervoso. Essa interação pode ser passiva, como no simples monitoramento de sinais neurais, ou ativa, quando há indução ou alteração da atividade cerebral. Em qualquer caso, estabelecem uma ponte direta com o cérebro e, por isso, são capazes de acessar pensamentos, emoções e intenções. Podem ser classificadas como invasiva, semi-invasiva ou não invasivas, conforme seu grau de penetração no corpo humano e o risco envolvido.

O termo “dados neurais” é usado para designar informações relacionadas à atividade do sistema nervoso central, incluindo as inferências feitas a partir delas. Além de extremamente sensíveis, esses dados são dinâmicos e difíceis de anonimizar, especialmente porque podem ser cruzados com outros para revelar estados mentais específicos. Nesse contexto, encaixam-se, em regra, na categoria de dados pessoais sensíveis prevista na LGPD.

Apesar deste avanço conceitual, o estudo da ANPD não aborda a terminologia dados biométricos cognitivos que vem se consolidando na literatura internacional. Essa categoria busca evidenciar a especificidade dos dados tratados por neurotecnologias de consumo, especialmente aquelas que captam sinais fisiológicos e comportamentais que revelam dimensões subjetivas da atividade mental. Tais dados podem ser organizados em três componentes, o cognitivo, que se refere aos processos de conhecimento e raciocínio; o afetivo, relacionado às emoções e sentimentos; e o conativo, vinculado à vontade, desejos e impulsos comportamentais.

A ambiguidade conceitual que ainda envolve a natureza dos dados gerados pela interação entre indivíduos e neurotecnologias, se devem ser tratados como dados neurais ou como dados biométricos cognitivos, impacta diretamente a definição do referencial normativo mais adequado à sua regulação.

Ao extrapolarem o conceito tradicional de biometria, que se baseia em traços físicos diretamente observáveis, esses dados ampliam o desafio jurídico. A LGPD reconhece os dados de saúde e biométricos como sensíveis, mas permanece ambígua quanto à proteção de dados inferidos, como padrões de atenção, reações emocionais ou impulsos de decisão.

A ausência de normas claras acentua a necessidade de um debate mais sofisticado sobre os contornos jurídicos e regulatórios dos dados biométricos cognitivos e os limites da proteção oferecida pelos marcos normativos atuais.

As neurotecnologias já extrapolam os limites do campo médico e começam a ocupar o mercado de consumo. Dispositivos vestíveis não invasivos que prometem melhorar foco, relaxamento e desempenho cognitivo já circulam no mercado, o que amplia o público consumidor e insere essas tecnologias em rotinas cotidianas.

No Brasil, centros de pesquisa como o Instituto Santos Dumont (ISD), o INCT NeuroTec-R, o BRAINN e o CTI Renato Archer têm impulsionado o desenvolvimento de soluções inovadoras em áreas como neuromodulação, neuroimagem e interfaces cérebro-computador.

O uso de inteligência artificial e o aprendizado de máquina amplificam esses projetos e permitem o processamento de grandes volumes de dados neurais, possibilitando inferências antes impensáveis, o que, por sua vez, acentua os desafios regulatórios.

Embora a LGPD não defina expressamente o que são dados neurais, o conceito amplo de dado pessoal como qualquer informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável nos parece ser insuficiente para abarcar essas informações. Quando revelam aspectos da saúde física ou mental, posicionamento ideológico ou traços da personalidade, tais dados devem receber o tratamento reservado aos dados pessoais sensíveis.

A aplicação prática da LGPD, no entanto, enfrenta obstáculos. Os princípios da finalidade, adequação e necessidade enfrentam a dificuldade de prever, com clareza, os usos futuros dos dados. A neuroplasticidade cerebral desafia também o princípio da qualidade dos dados, pois torna a atualização e a precisão uma tarefa contínua.

A transparência exige mais que documentos informativos e requer explicações compreensíveis sobre como os dispositivos operam e como os algoritmos tomam decisões. Já a não discriminação impõe uma reflexão urgente sobre os riscos de inferências enviesadas impactarem negativamente decisões em áreas como trabalho, crédito, saúde ou educação.

Quanto ao princípio da segurança, a sofisticação dos riscos exige um esforço técnico-jurídico ainda maior. Ameaças como a manipulação de sinais cerebrais ou controle não autorizado de dispositivos neurais, já denominados brainjacking, expõem a necessidade de incorporar medidas de proteção desde a concepção e por padrão.

Em relação às bases legais de tratamento, o consentimento é apenas uma das possibilidades, e na maioria das vezes insuficiente, considerando a assimetria informacional e a complexidade da técnica envolvida. Em contextos médicos e científicos o tratamento poderá se apoiar em hipóteses como a tutela da saúde ou realização de pesquisas com respaldo ético, mas essas exceções ainda carecem de maior especificação para usos não terapêuticos.

A ANPD identificou quatro tendências principais: o avanço de dispositivos não invasivos; a popularização de tecnologias vestíveis para o uso pessoal; a convergência com a inteligência artificial; e o aumento exponencial na produção e circulação de dados. O Radar Tecnológico reconhece a complexidade do tema, mas também evidencia um cenário de regulação de baixa intensidade no Brasil. A LGPD oferece diretrizes gerais, mas ainda são necessários instrumentos mais específicos para lidar com as peculiaridades desses dados.

No plano das ideias, há três caminhos possíveis: o primeiro defende a criação de novos direitos fundamentais, os chamados neurodireitos, para lidar com riscos inéditos. O segundo propõe reinterpretar os direitos já existentes, adaptando-os ao novo contexto tecnológico. E o terceiro, mais conservador, entende que não há necessidade de alterar o marco normativo atual, desde que haja uma coordenação eficaz entre órgãos reguladores.

Embora a ANPD não adote posição explícita sobre a necessidade de criação de neurodireitos, o estudo cumpre uma função relevante ao fomentar o amadurecimento do debate jurídico sobre os desafios regulatórios das neurotecnologias.

A etapa seguinte, do ponto de vista do Direito da Regulação, exige a transição do diagnóstico para a implementação de estratégias regulatórias responsivas, que combinem instrumentos normativos claros, mecanismos de governança interinstitucional e arranjos colaborativos capazes de acompanhar, com flexibilidade e legitimidade, o ritmo das transformações tecnológicas.


ANPD. Radar Tecnológico nº 4: Neurotecnologias. Brasília, DF: ANPD, junho 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/201cneurotecnologias201d-sao-o-tema-do-4o-volume-da-serie-radar-tecnologico-da-anpd.

BERTONI, Eduardo. Tecnologías y derechos humanos. In: SÁNCHEZ, Moisés; COLOMBARA, Ciro (org.). En defensa de los neuroderechos. Santiago: Fundación Kamanau, 2024. Disponível em: https://defensaneuroderechos.org/.

BRASIL. Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Radar Tecnológico nº 2: Biometria e Reconhecimento Facial – Estudos Preliminares. Brasília, DF: ANPD, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos-tecnicos-orientativos/radar-tecnologico-biometria-anpd-1.pdf.

BUBLITZ, Jan Christoph. Freedom of Thought in the Age of Neuroscience: A plea and a proposal for the renaissance of a forgotten fundamental right. ARSP: Archiv für Rechtsund Sozialphilosophie, v. 100, n. 1, p. 1–25, 2014. Disponível em: https://philpapers.org/rec/BUBFOT-2.