Em meio aos esforços para controlar a inflação e tornar a indústria nacional mais competitiva, um inimigo silencioso continua pressionando o bolso dos brasileiros: o modelo de formação de preços da energia elétrica. O que parece uma questão estritamente técnica, na prática, afeta diretamente o valor da conta de luz — e, por consequência, a inflação do país.
Em setembro de 2024, por exemplo, o acionamento da bandeira vermelha patamar 2 — que adiciona quase R$ 8 a cada 100 kWh — contribuiu com 0,42% para o IPCA daquele mês. Em maio de 2025, a simples entrada da bandeira amarela já elevou a inflação em 0,14%.
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Olhando o resto do ano, o último estudo da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) aponta que nos próximos cinco meses, quatro deles teriam acionamento de bandeira tarifária. Com isso teríamos sete meses de bandeira tarifária em 2025, o que representa perto de 1,3% de inflação no ano, ou seja, 25% da previsão de inflação anual alocada com o custo de energia elétrica.
Destaque-se que o balanço energético em 2025 está mediano. Se tivermos no futuro um ano severo como 2021, apenas o preço de energia e suas consequências na tarifa seria capaz de “estourar” a meta de inflação, potencializando um grave comprometimento para toda a economia nacional.
O cerne da questão está no modelo computacional utilizado para definir a operação do sistema e o preço da energia. Embora a necessidade de aprimorar o modelo seja legítima, visando refletir as melhores práticas operativas, a proposta atual é conservadora e pode ter efeitos colaterais bastante negativos. Ao sugerir manter níveis mais elevados de aversão ao risco, com os parâmetros de 2025 adotados no método CVaR (Conditional Value at Risk), o sistema é forçado a operar com custos artificialmente altos.
Consequência imediata: tarifas de energia mais elevadas. A maioria dos consumidores provavelmente não sabe que o preço da energia elétrica no curto prazo no mercado livre — o famoso Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) — influencia diretamente o acionamento das bandeiras tarifárias que vemos na conta de luz de todas as unidades consumidoras do país.
Esse sistema de categorização de custos (verde, amarela e vermelha, patamares 1 e 2) indica se estamos pagando a energia em condições normais ou arcando com despesas adicionais devido a uma geração mais cara.
O problema é que o atual modelo de formação de preços e despacho de energia, especialmente com os parâmetros propostos para 2026 na Consulta Pública 186, cria um ambiente em que bandeiras tarifárias serão acionadas mesmo em cenários favoráveis de hidrologia e armazenamento.
Em outras palavras: mesmo quando há abundância de água nos reservatórios e baixo risco de racionamento, o modelo projeta custos elevados — e adivinha quem paga por essa precaução excessiva? O consumidor! Evidentemente, um paradoxo difícil de explicar.
O impacto vai além da conta de luz dos lares brasileiros. Indústrias, comércio e consumidores livres também sofrem, comprometendo a competitividade do país. Tarifas elevadas pressionam os custos de produção, que são repassados ao consumidor final.
O resultado indiscutível é inflação estrutural mascarada, com aparência de precaução energética. Mais preocupante é que essa ineficiência na modelagem vem sendo justificada sob o pretexto de garantir segurança operativa. Uma segurança que, à luz dos resultados já observados, revela-se meramente ilusória.
Em 2025, o modelo de formação de preços sofreu duas mudanças importantes: a modernização para um processo híbrido de otimização, que combina diferentes formas de modelagem das usinas hidrelétricas, e a adoção dos citados parâmetros mais conservadores para o cálculo do risco (CVaR).
Embora o mercado aguardasse há tempos o aprimoramento do modelo de otimização, os parâmetros adotados em 2025 para o CVaR não acompanharam adequadamente a nova realidade do setor. A configuração da matriz elétrica mudou bastante em relação a 2024, especialmente pela saída de várias térmicas que não foram recontratadas em leilões de reserva de capacidade (já que o leilão mais recente ocorreu em 2021).
Essas usinas funcionavam como uma espécie de “seguro” do sistema, ajudando a suavizar oscilações bruscas de preço e afastando futuras crises energéticas percebidas pela modelagem. Ou seja, trazem uma atenuação nos saltos do preço, com base no “valor da água” nas hidrelétricas. O problema é que o modelo atual foi calibrado com uma configuração anterior da matriz, o que gera severas distorções.
Na prática, o que se observa hoje são sinais claros de desequilíbrio: alta volatilidade nos preços da energia, aumento expressivo no volume e no custo do corte de geração de renováveis (curtailment), diferenças acentuadas nos preços entre regiões — com destaque para os efeitos negativos no escoamento da energia do Nordeste para o Sudeste — e um aumento no custo associado à limitação do despacho hidrelétrico (GSF).
Outro reflexo evidente está na operação das térmicas em 2025, com maior frequência de acionamento antecipado de usinas de ciclo fechado, classificadas como “fora do mérito” por terem custos mais altos e serem acionadas como parte da Recomposição da Reserva Operativa (RRO).
Para ter noção do excesso de aversão ao risco, no dia 1º de julho tivemos o terceiro maior armazenamento do Sudeste (66,4%) e a maior hidrologia dos últimos 12 anos, com 83% da média de longo prazo (MLT) da energia natural afluente (ENA) do SIN (Sistema Interligado Nacional), quando comparado ao mesmo mês no histórico.
Tudo isso mostra que, apesar de buscar segurança no fornecimento, o modelo atual modelo não está garantindo por si só a segurança energética, mas sim aumentando o preço e o “valor da água”. O objetivo não deve ser renunciar à segurança energética, mas ajustar com maior adequação e exatidão os parâmetros do modelo, de forma equilibrada e responsável.
A adoção de um parâmetro de risco mais realista, como o CVaR 15,30 (α=15% e ʎ=30%), deve ser considerada com seriedade. Estudos indicam que esse parâmetro menos conservador contribuiria para que o sistema mantivesse sua confiabilidade em padrões adequados.
Persistir no modelo proposto no âmbito da CP 186 representa impor ao mercado cativo um sobrecusto anual que pode variar de R$ 4,2 bilhões a R$ 12 bilhões — valor mais que suficiente para bancar integralmente programas sociais como a gratuidade da nova Tarifa Social de Energia (proposta no âmbito da MP 1300/2025).
É preciso recuperar a racionalidade técnica para que os modelos de preço sirvam à sociedade e não o contrário, com sobrecustos desnecessários pagos com o suor do trabalhador e a perda da competitividade da indústria nacional. O Brasil não pode continuar pagando por uma cautela que não traz retorno.
Energia mais barata e previsível não é apenas possível, mas urgente. Para conter a inflação, preservar o poder de compra da população e retomar o crescimento, é necessário reavaliar os fundamentos do modelo de preços com seriedade e, principalmente, a lógica que pode estar nos conduzindo a tarifas mais elevadas e injustificadas.