Enchente no RS: o que diz o Direito e seus reflexos na litigância pública e privada?

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O momento atual em que vivemos é definido por muitos como “negacionismo”, “guerra de narrativas”, “polarização extrema política”, entre tantos outros adjetivos para qualificá-lo que apareceram. E em uma tragédia como no Rio Grande do Sul, não é diferente. Evidentemente temos de caminhar para um mundo com mais respeito às evidências científicas e ao ambiente, afinal ele é composto por recursos escassos, como a Ciência Econômica, por sinal, ensina há mais de uma centena de anos.

Mais antigo que a Economia, existe o Direito, como ordem de princípios e regras para lidar com prevenção e reparação de danos. Na Ciência dogmática do Direito, o texto da lei tem um valor fundamental, sobre o qual o intérprete deveria, com neutralidade, debruçar-se na sua interpretação; embora se admita que decisões judiciais sofram de vieses (como qualquer ato deliberativo humano). Então vejamos o determina o Direito brasileiro em casos de enchentes. O texto escrito, pelo menos, não podemos negar.

A União tem, textualmente, o dever constitucional de “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”, conforme estabelece o art. 21, inciso XVIII da Constituição Federal.

Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu esse dever no julgamento da ACO 3.473/DF, sob relatoria da ministra Rosa Weber[1], em que, no contexto da calamidade pública gerada pela pandemia da Covid-19, foi a União condenada em obrigação de fazer atinente à prestação de suporte técnico e apoio financeiro para a expansão da rede de UTI no estado do Maranhão durante o período de emergência sanitária. Nesse sentido:

“Em contexto pandêmico, à União compete planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas (art. 21, XVIII, da CF) – v.g. ADPF 756, ADI 6.586 e 6.587, todas de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski; e ADPF 709-MC, Rel. Min. Roberto Barroso. (…).

Esse dever da União de repassar aos entes subnacionais sua quota federal de abertura e manutenção dos leitos de UTI-Covid (programa excepcional próprio) decorre precisamente da posição central que deve exercer durante estado de emergência sanitária, o qual, portanto, não se confunde com o repasse de verbas federais para ações universais de saúde nos Estados e Municípios, este decorrente do dever geral de cofinanciamento e da natureza tripartite do SUS (CF, art. 198, § 1º).

Ainda, textualmente, nos termos do art. 1º-A da Lei 12.340/2010, com redação dada pela Lei 12.983/2014, a União tem a obrigação de transferir recursos financeiros para a execução de ações de prevenção em áreas   de risco de desastres e de resposta e de recuperação em áreas atingidas por desastres aos órgãos e entidades dos estados, Distrito Federal e municípios.

Além disso, estabelece o §1º do art. 1º da referida lei, expressamente ser de responsabilidade da União definir diretrizes de ações de prevenção e recuperação de áreas atingidas, bem como fiscalizar metas físicas de acordo com os planos de trabalho aprovados, bem como avaliar o cumprimento da execução de ações de prevenção:

“Art. 1º-A. A transferência de recursos financeiros para a execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres e de resposta e de recuperação em áreas atingidas por desastres aos órgãos e entidades dos Estados, Distrito Federal e Municípios observará as disposições desta Lei e poderá ser feita por meio

Será responsabilidade da União, conforme regulamento:

definir as diretrizes e aprovar os planos de trabalho de ações de prevenção em áreas de risco e de recuperação em áreas atingidas por desastres;

efetuar os repasses de recursos aos entes beneficiários nas formas previstas no caput, de acordo com os planos de trabalho aprovados;

fiscalizar o atendimento das metas físicas de acordo com os planos de trabalho aprovados, exceto nas ações de resposta;

avaliar o cumprimento do objeto relacionado às ações previstas no caput”

Há na legislação infraconstitucional[2], portanto, reforço normativo da responsabilidade da União, estados e municípios no que  tange a ação de socorro e prevenção a calamidades públicas.

Em todo o contexto que envolve a lei e as responsabilidades da Administração Pública sobre o tema, a responsabilidade específica da União é acentuada – não por outro motivo discussões que envolvem desvios de verbas públicas em tais projetos, por exemplo, são atribuídas à competência da Justiça Federal e Tribunal de Contas da União.[3]

Também não há dúvida de que o sistema de repasses previstos no programa criado pela Lei 12.340/2010 tem como finalidade  o atendimento à população, sendo, inobstante, de interesse prioritário  da União, pois é responsável pela sua fiscalização e custeio:

“PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROGRAMA DE RESPOSTAAOS DESASTRES E RECONSTRUÇÃO. CALAMIDADE PÚBLICA. DESTINAÇÃO DE BENS PELA UNIÃO AOS ESTADOS. REPASSE OBRIGATÓRIO. FISCALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

O sistema de repasse previsto no programa de resposta aos desastres e reconstrução, tem por finalidade específica o atendimento da população desabrigada por situações de calamidade pública e resulta em termo de compromisso assinado pelos entes federados com o Ministério da Integração Nacional. Estando o ato sujeito à verificação e fiscalização do Governo Federal, é de se ter como presente o interesse da União e, portanto, a competência da Justiça Federal, nos termos da aplicação analógica do Enunciado n.º 208 desta Corte. Conflito conhecido para julgar competente o Juízo da 3.ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de Porto Alegre, RS, ora suscitado. (STJ. RHC 66133/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma. J. em 13.06.2017).

Embora os estados e municípios afetados precisem demonstrar a necessidade dos recursos demandados e planos de trabalho ao órgão responsável, é necessário que a União disponibilize  os recursos em seu orçamento, conforme previsão legal textual.

Essa é a norma que se extrai do art. 4º, §2º da Lei 12.340:

“Art. 4º São obrigatórias as transferências da União aos órgãos e entidades dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres e de resposta e de recuperação em áreas atingidas ou com o risco de serem atingidas por desastres, observados os requisitos e procedimentos estabelecidos pela legislação aplicável

1º A liberação de  recursos  para  as  ações  previstas no caput poderá ser efetivada por meio de depósito em conta específica a ser mantida pelos órgãos e entidades dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em instituição financeira oficial federal, observado o disposto em regulamento

2º Para as ações previstas no caput, caberá ao órgão responsável pela transferência de recursos definir o montante de recursos a ser transferido de acordo com sua disponibilidade orçamentária e financeira e desde que seja observado o previsto no art. 1º-A.”

O Decreto 11.655/23, inclusive, alterou o Decreto 11.219/22, que dispõe sobre tais transferências de recursos, para reforçar no art. 2º, §1º, que “as transferências de que trata o caput ficam condicionadas à disponibilidade orçamentária e financeira do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional”.

Infelizmente,  nos anos que precederam ao desastre  de abril e maio de 2024 (mesmo antes do atual mandatário), a União vinha sistematicamente reduzindo os recursos disponíveis para essa finalidade.[4] Já no início de 2023 se sabia  que os recursos do orçamento federal disponíveis para gestão de riscos  e desastres era o menor em 14 anos. E ela também já sabia do maior risco de enchentes no Sul do país.

Não obstante, foram realizados cortes de verbas para redução e mitigação de desastres naturais, sobretudo em áreas como obras emergenciais de mitigação para redução de desastres, do então Ministério do Desenvolvimento Regional. A mídia é unânime em apontar a queda de investimento para prevenção em desastre no período.[5]

Como se tudo isso não bastasse, a União, enquanto ente federativo, jamais implementou o Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap), criado originalmente pelo Decreto-Lei 950, de 13 de outubro de 1969, tendo por finalidade financiar as ações de socorro, de assistência à população e de reabilitação de áreas atingidas, nunca vigorou efetivamente.

Após ser revogado no ano de 2010, em 2014 foi incluído na Lei 12.340, de 1º de dezembro de 2010, tendo natureza contábil e financeira, vinculado ao Ministério da Integração Nacional, e com a finalidade custear, no todo ou em parte, ações de recuperação de áreas atingidas por desastres em entes federados que tiverem a situação de emergência ou o estado de calamidade pública reconhecidos, como acontece no Rio Grande do Sul.

Nessa esteira, o Funcap nunca saiu do papel, pois ausente a sua regulamentação, sendo necessária a regulamentação da forma de repasse de verbas para estados, Distrito Federal e municípios, bem como da criação de um Conselho Diretor responsável por acompanhar, fiscalizar e aprovar a prestação de contas do fundo, a tal ponto da União Federal merecer apontamento do Tribunal de Contas da União para que o MDR: “c) adote providências para a efetiva operacionalização do Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap), de forma a dar cumprimento ao inciso II, do art. 1º A da Lei 12.340/2010 (item 230 deste relatório);” (ACÓRDÃO 351/2020 – TCU – PLENÁRIO.)

Diante desse contexto, avizinham-se tempos difíceis para a União Federal, pois sua aparente negligência na prevenção dos danos – não apenas no presente governo, mas em todos que lhe antecederam –, implicará sua chamada a ressarci-los por outros entes da Federação (estados e municípios), bem como de entes privados. E sua defesa exigirá evidências científicas orçamentárias e não apenas narrativas.

Isso sem tratar da responsabilidade objetiva do Estado, também previsto na Constituição Federal.

[1] EMENTA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. CONFLITO FEDERATIVO. DIREITO SOCIAL À SAUDE (CF, ARTS. 6º e 196). PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS. CONTROVERSIA SOBRE O CUSTEIO DE UTI NOS ESTADOS-MEMBROS. DEVER DA UNIÃO DE PROVER OS ENTES SUBNACIONAIS NA EXECUÇÃO E FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS SANITÁRIAS. LIMITES À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA NA CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS CONSTITUCIONAIS DE SAÚDE PÚBLICA. PERDA DE OBJETO PARCIAL DA DEMANDA. PEDIDO REMANESCENTE JULGADO PROCEDENTE PARA DETERMINAR QUE A UNIÃO PRESTE SUPORTE TÉCNICO E FINANCEIRO PARA A EXPANSÃO DA REDE DE UTI NO ESTADO REQUERENTE DURANTE O PERÍODO DE EMERGÊNCIA SANITÁRIA. 1. A edição da Portaria GM/MS 829/2021 enseja o reconhecimento da perda parcial de objeto da demanda (por ausência de interesse de agir superveniente), na parte voltada à remoção dos obstáculos para a análise e restabelecimento de leitos de UTI destinados a pacientes com COVID-19. 2. Compete à União promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, impondo-lhe atuar como ente central de planejamento e coordenação em situação de emergência sanitária, ‘(…) inclusive no tocante ao financiamento e apoio logístico aos órgãos regionais e locais de saúde pública’ (ADPF 672, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário). 3. Pedido julgado parcialmente procedente para determinar que a União preste suporte técnico e apoio financeiro para a expansão da rede de UTI no Estado durante o período de emergência sanitária. “ STF. ACO 3.473. Rel. Min. Rosa Weber. Plenário. J. em 11.11.2021.

[2] AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. INTERPOSIÇÃO EM 04.04.2023. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRAS DE CONTENÇÃO NAS ENCOSTAS. ÁRES DE RISCO. OCORRÊNCIA DE DESLIZAMENTOS. DETERMINAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO DE MEDIDAS EMERGENCIAIS. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO   DA   SEPARAÇÃO   DE PODERES.   IMPROCEDÊNCIA.   PRECEDENTESINCIDÊNCIA DA SÚMULA 279/STF. OFENSA REFLEXA. (ARE 1419518 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 15-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 21-08-2023 PUBLIC 22-08-2023).

[3] AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO TORRENTES. CRIMES LICITATÓRIOS E CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PRATICADOS POR MILITAR. ALEGADA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL.INOCORRÊNCIA. DESVIO DE VERBAS PÚBLICAS ORIUNDAS DA UNIÃO.CALAMIDADE PÚBLICA EM MUNICÍPIOS DO ESTADO DE PERNAMBUCO. RECONSTRUÇÃO. FISCALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. SÚMULA 208/STJ. INCIDÊNCIA. COMPETÊNCIA FIRMADA NO RHC 120.492/PE DO CORRÉU. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.1. O sistema de repasse previsto no programa de resposta aos desastres e reconstrução, tem por finalidade específica o atendimento da população desabrigada por situações de calamidade pública e resulta em termo de compromisso assinado pelos entes federados com o Ministério da Integração Nacional. Estando o ato sujeito à verificação e fiscalização do Governo Federal, é de se ter como presente o interesse da União e, portanto, a competência da Justiça Federal, nos termos da aplicação analógica do Enunciado n. 208 desta Corte (CC n. 114.566/RS, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJe 1º/2/2011) (RHC 66.133/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 13/6/2017, DJe de 21/6/2017) (…)

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/google/politica/noticia/2023/02/20/verba-prevista-para-prevencao-de-desastres-e-a-menor-em-14-anos.ghtml

[5] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/09/5039931-verba-destinada-para-enfrentamento-de-desastres-naturais-sofre-corte-drastico.html; disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/clarissa-oliveira/politica/verbas-federais-prevencao- enchentes-governos-dados/. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/05/04/verba-federal-para-combate-de- desastres-caiu-nos-ultimos-dez-anos-apesar-do-aumento-de-eventos-extremos.ghtml