Emendas impositivas, democracia e advocacia pública

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No último dia 27 de junho, a Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia (APD) participou de audiência pública, no Supremo Tribunal Federal (STF), convocada pelo ministro Flávio DinoTendo por objeto as emendas parlamentares impositivas – tema que é analisado nas ADIs 76887695 e 7697, que têm o ministro como relator –, a audiência contou com a participação de diversas entidades e especialistas.

Pela APD, falou sua diretora de garantias democráticas, Márcia Semer, procuradora aposentada de São Paulo.

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A APD, ressalte-se, é entidade de caráter nacional que reúne advogados e advogadas públicas dos mais diversos entes federativos. Não é corporativista, sublinhe-se: a sua preocupação fundamental é com a democracia. Tal preocupação, aliás, está contida não apenas no seu nome, mas também no seu estatuto, que elege a defesa da democracia e dos direitos humanos como uma de suas finalidades.

É, pois, em pessoas como Raymundo Faoro, ex-presidente da OAB e procurador do Rio, que a APD se inspira. Opositor da ditadura militar, Faoro deixou, por seus escritos e por sua atuação, um campo fecundo, vastíssimo, que serve de alimento a todos aqueles que, como nós, advogadas e advogados públicos da APD, têm fome de justiça – e de democracia. 

Nas linhas abaixo, as palavras, proferidas na audiência do último dia 26, são de Márcia Semer. Representando a APD, Márcia abordou a inconstitucionalidade das emendas impositivas, as quais, entre outras coisas, subvertem o sistema presidencialista. 

Com a palavra, Márcia Semer.

*

“Excelentíssimo Senhor Ministro Flávio Dino

Ao ensejo em que cumprimento e saúdo Vossa Excelência pela convocação desta Audiência Pública, registro a honra que é para mim ocupar esta tribuna na representação de meus pares Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia. 

A habilitação da APD nesta Audiência Pública decorre da compreensão coletiva de seus membros de que a ADI 7697 é, desde a promulgação da Constituição Cidadã, ação das mais relevantes trazidas à apreciação deste Supremo Tribunal Federal. Isto porque, o instituto das emendas parlamentares impositivas põe em xeque a higidez de aspecto fundamental do arranjo jurídico-institucional desenhado em 88 e soberanamente eleito pelo povo em 93, a saber, o sistema presidencialista de governo. 

Põe em xeque, ademais, o primado da impessoalidade, elemento fundador, verdadeiro divisor de águas introduzido pela Constituição de 88 no âmbito das instituições públicas, contraponto deliberada e especificamente endereçado a virar a triste e longa página da apropriação patrimonialista do Estado pelos mandatários de plantão.

Por que as nações fracassam foi a pergunta de pesquisa que orientou por quinze anos os estudos de dois professores, um do MIT, outro de Harvard. A pesquisa e suas conclusões além de livro homônimo, rendeu aos mestres o Prêmio Nobel de Economia de 2024. E por que trazemos para o âmbito de debates jurídicos essa referência ao Prêmio Nobel de Economia? É que esse estudo, Excelência, sustenta que foram os arranjos jurídico-institucionais (inclusivos ou extrativistas) o fator determinante do sucesso (quando inclusivos) ou do fracasso (quando extrativistas) das nações. 

Indubitavelmente trata-se de conclusão que fala muito de perto com o objeto da ADI 7697 e que dá a dimensão da enormidade do que está em jogo aqui: a chave do sucesso ou do fracasso do Estado brasileiro.

Bem compreendido o tamanho do desafio, beber na fonte dos anais da Constituinte é expediente que ajuda a compreender não só o pensamento que orientou as escolhas originárias do texto de 88 como a entender o desenho sobre o qual o Estado está estruturado.

Os trabalhos constituintes tiveram início em 87 e já nas sessões iniciais tanto da Comissão de Sistematização quanto da Comissão de Organização dos Poderes e Sistemas de Governo a cobrança pela definição do sistema de governo esteve presente, pois entendida por diversos Constituintes como condição necessária à estruturação de todo o mais.

Assim, pode-se ler nesses anais falas como a do Deputado Gastone Righi (SP), que na primeira intervenção da primeira reunião ordinária da Comissão de Sistematização disse o seguinte: (…) ‘Tradicionalmente, as Constituintes elaboram um texto constitucional, a partir de um plano-piloto (…) Nesta Assembleia Nacional Constituinte as coisas não foram assim. O Regimento Interno consagrou uma modalidade nova.  Vinte e quatro Subcomissões, (…) darão início ao arcabouço do projeto final.  Ora, cabe a esta Comissão sistematizar os trabalhos desta Constituinte e das Comissões, bem assim, as propostas individuais dos Srs. Constituintes. Será uma tarefa absolutamente impossível de se realizar, se não tivermos ao menos fixados alguns vetores maiores. Por exemplo: o sistema de governo.’ 

Na mesma sessão, vários Constituintes se manifestaram em igual sentido, inclusive o líder do Governo à época, Deputado Carlos Sant’anna.

Trago este elemento, Excelência, porque ele nos lembra de forma muito vigorosa que a decisão pelo sistema presidencialista, que foi o que prevaleceu ao final, determinou o modelo de separação dos poderes adotado, bem assim o arcabouço jurídico-institucional que o secunda. 

Peguemos o caso do Tribunal de Contas. A ampliação das competências dos Tribunais de Contas e sua alocação como órgão auxiliar do Poder Legislativo só se justificam pela adoção do sistema presidencialista de governo. Tivéssemos caminhado para o parlamentarismo o Tribunal de Contas não poderia ser auxiliar do Legislativo. O órgão fiscalizador (Tribunal de Contas) ou está junto ao Poder fiscalizador (o Legislativo no caso do sistema presidencialista) ou deve gozar de autonomia, sob pena de existir como mera instituição de fachada. O alargamento das competências constitucionais de nossa Corte de Contas também mirou a ampliação do instrumental à disposição do Poder Legislativo, reforçando a face fiscalizadora tipicamente adstrita a esse Poder no concerto dos freios e contrapesos de um sistema presidencialista. 

Como o nome mesmo diz, ademais, o presidencialismo é um sistema, um complexo de elementos que se encaixam em correlação de forças muito específica, onde ao Poder Executivo cabe administrar, ou seja, planejar, direcionar os recursos públicos (grife-se) e realizar as políticas planejadas. É aliás, o que está escrito com todas as letras no artigo 84, inciso II da Constituição: ‘exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal’.

Dito isto, do ponto de vista técnico-jurídico, Ministro, a introdução da figura das emendas parlamentares impositivas constitui verdadeira subversão do modelo de separação dos poderes concebido em 88 e soberanamente escolhido pelo povo no plebiscito de 93. Trata-se, com todas as vênias, de usurpação inconstitucional e ilegítima de competência própria do Poder Executivo em sistema presidencialista de governo, imutável pelas mãos de poder constituinte derivado, cuja nulidade merece ser reconhecida por este Supremo Tribunal Federal.

Nossa Constituição, Vossa Excelência bem sabe, conta com 250 artigos. De todos esses artigos, Ministro Dino, apenas a forma republicana e o sistema presidencialista foram direta e soberanamente decididos pelo povo brasileiro. Isso há de significar alguma coisa e tenho certeza que o Supremo Tribunal Federal bem entende esse significado e saberá honrar decisão soberana do povo, colhida num dos mais belos capítulos de nossa história democrática.

Ainda no espaço da técnica jurídica, as emendas parlamentares individuais ferem de morte o princípio da impessoalidade. Esse princípio orienta a despersonalização da administração pública com a intenção deliberada de dissociar a política de Estado da pessoa do político, com o fim de assentar que política pública não é benesse. 

Ocorre, Excelência, que essas emendas parlamentares individuais ressuscitam a figura do político benfeitor, aquele destinador de recursos públicos para a realização de uma obra determinada num Estado ou Município de sua livre escolha, sem qualquer lastro com políticas organicamente estruturadas, modelo que infelizmente nos coloca de braços dados com arranjo jurídico-institucional extrativista, receita certa do fracasso da nação na leitura dos premiados estudiosos aqui citados. Então, nessa equação da destinação individual de recursos, a mesma ofensa ao princípio da impessoalidade que endereça conclusão técnica-jurídica de inconstitucionalidade e nulidade do instituto das emendas individuais impositivas deve acender preocupação de índole sócio-econômica. 

Teria muito mais a falar, mas o tempo é curto.

Encerro com uma curiosidade e um voto. A curiosidade é que a primeira proposta de Emenda Impositiva foi apresentada no ano 2000, Governo Fernando Henrique em crise, pelo Deputado Antônio Carlos Magalhães (EC 22/2000). Foi reapresentada em 2006 (na crise do Mensalão). Ressurgiu como EC 22-A em agosto/2013, logo após, portanto, das jornadas de junho de 2013. E finalmente foi aprovada em 2015 (EC 86/2015), na sequência da eleição – inesperada? indesejada? da presidenta Dilma Rousseff. Ainda vieram os alargamentos de 2019 e 2022. Esses dados são curiosidade, mas também falam por si.

O voto é de força ao Ministro Dino e seus pares. Não moral ou espiritual porque Vossa Excelência não precisa. Mas emocional para enfrentar mais este desafio de salvamento da democracia que a ADI 7697 põe sob a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal. 

A Constituição de 88, essa cidadã, é nossa melhor primavera. Daí que a força da poesia, que de tão bela também se fez canção, acompanhe os senhores e senhora Ministra a fim de que mesmo envoltos em tempestade, entre os dentes segurem nossa primavera.

Muito obrigada!”