Em 2023, direito financeiro perde mais uma batalha na luta para ser levado a sério

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Há anos tenho reiteradamente travado uma luta para que o Direito Financeiro seja levado a sério, e não poucas vezes repeti que desistir não é uma opção. Razão pela qual a luta continua e assim permanecerá.

O ano de 2023 termina melancolicamente para o Direito Financeiro, com uma sucessão de notícias ao final do ano que não são animadoras.

A começar da mais relevante, que se materializou na Emenda Constitucional 132, publicada no último dia 20 de dezembro, que “Altera o Sistema Tributário Nacional”, resultado da discutida “reforma tributária”, que reitero ser indevidamente apelidada desta forma, uma vez que parte significativa das alterações ocorrem no âmbito do federalismo fiscal, sendo, portanto, referente a temas de Direito Financeiro, e não tributário. Melhor que seja chamada de “reforma fiscal”, expressão mais abrangente.

Certamente o principal exemplo de que a frase de Roberto Campos que destaco no início deste texto, e não pode ser mais atual

Sob o ponto de vista tributário, veio com o argumento da suposta vantagem de simplificar o sistema tributário. Basta ir ao site oficial da Presidência da República constatar que o texto impresso perfaz 30 páginas (!) para fazer cair por terra, sem necessidade de qualquer leitura, esse argumento, que chega a ser risível. Para aqueles que ainda querem manter o otimismo, se desejar acrescente-se que haverá duplo sistema em vigor durante décadas, um sem-número de leis infraconstitucionais para permitir sua plena aplicação, a inafastável previsão de aumento na carga tributária, além de uma multiplicidade de outra razões, que a essa altura se tornam desnecessárias enumerar[1]. E temos de ler em seus primeiros artigos a introdução do “princípio da simplicidade” no sistema tributário (nova redação do art. 145, § 3º da Constituição). Sem comentários.

Sob o ponto de vista do Direito Financeiro, mais especificamente no âmbito do federalismo fiscal, trata-se de um verdadeiro desastre. Suprime-se a competência tributária dos Estados sobre o ICMS, e dos Municípios do ISS, substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A contrapartida é uma suposta e incerta, a ser definida posteriormente, partilha de receitas do novo imposto. Em resumo, troca-se o mais seguro instrumento de autonomia financeira dos entes subnacionais, que é a atribuição de competência tributária própria, por incertas e ainda não plenamente conhecidas partilhas de receitas. Nunca antes na história deste país houve uma afronta ao sistema federativo dessa dimensão. O sistema federativo, cláusula pétrea de nossa Constituição, passou a estar sob forte ameaça, e agora sua sobrevivência depende de decisões políticas a serem tomadas futuramente, estando nas mãos dos legisladores a quem caberá deliberar sobre as normas que complementarão o texto constitucional.

Aumento na complexidade do sistema fiscal, elevação da carga tributária e concentração do poder financeiro na União são as únicas certezas que se podem esperar do novo sistema. E um “salve-se quem puder” atrás dos benefícios fiscais que permitirão a sobrevivência de grande parte dos contribuintes. Desnecessário se estender mais sobre o tema.

A tríade de leis que instituem o sistema de planejamento orçamentário – plano plurianual (PPA), lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e lei orçamentária anual (LOA) federais ainda não foram publicadas, faltando um dia útil para o final do exercício financeiro, evidenciando o pouco caso com as principais normas de Direito Financeiro.

O sistema de planejamento, fundamental para o desenvolvimento seguro e sustentável do país, perde cada vez mais sua força, e em velocidade cada vez maior.

O plano plurianual federal, atualmente o principal instrumento de planejamento orçamentário do país, dado o gigantismo da administração pública federal, sumiu do noticiário. Como de costume, pouco se fala, nenhuma importância a ele se se dá.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias da União, um instrumento de planejamento orçamentário cada vez mais importante, pelas funções que lhe tem sido acrescentadas ao longo dos anos, hoje regulando inúmeros temas que vão além do fortalecimento do sistema de planejamento, para abranger questões ligadas ao endividamento público, execução orçamentária e muitas outras, como a fixação do valor do salário mínimo, teve seu prazo “estourado” há meses, tornando letra morta o art. 35, §2º, II da Constituição, que obrigava sua publicação até o final do mês de junho, e já estamos no final de dezembro sem que tenha sido publicada…

Abrangeu temas pouco afetos à questão orçamentária, com a inclusão de dispositivos voltados a impedir realização de despesas voltadas a promover, incentivar e financiar invasão de terras, influenciar crianças e adolescentes a terem opções sexuais diferentes do sexo biológico, extinguir o conceito de família tradicional, cirurgias para mudança de sexo e realização de abortos. Independentemente do mérito das propostas, devem ser objeto de debate individualizado no Congresso[2]. O princípio da exclusividade em matéria orçamentária, que tem respaldo constitucional no art. 165, § 8º, impede a lei orçamentária de conter dispositivo estranho à previsão de receita e fixação de despesa. É certo que há divergência sobre a extensão de referido princípio à LDO, bem como deve-se considerar que, da forma como inserido no texto, o dispositivo está impedindo a realização de gastos públicos, e, portanto, referindo-se a despesas públicas. No entanto, temas dessa importância devem ser objeto de discussão específica e oportuna, e a LDO não é o foro apropriado.

E, no mais, não traz cenário nada animador, como informa Fábio Graner, neste mesmo informativo, ao destacar a piora no cenário da dívida, déficit nominal e desempenho das estatais[3]. Mantém-se a “meta zero”, com poucos acreditando no que parece ser uma verdadeira miragem[4].

No âmbito da lei orçamentária, a redução e engessamento das despesas discricionárias, que alimentam os investimentos públicos, só aumentam, sendo o espaço fiscal tomado pelas emendas parlamentares impositivas – que atingiram valor recorde –, capturadas pelo Congresso para atender demandas em geral de interesse paroquial, muitas vezes desalinhadas do sistema de planejamento e prejudicando a organização e implementação de políticas públicas. O que somente se agravará neste ano de 2024, que terá eleições municipais, com aumento das pressões pelos gastos dessa natureza.

Já se noticiam os cortes em despesas em programas como o Farmácia Popular, FIES e auxílio-gás, para bancar as referidas emendas. Acrescente-se o recorde de recursos para o fundo eleitoral, de 4,9 bilhões, o dobro de 2020[5]. E o corte de programas como Minha Casa Minha Vida[6] e 7 bilhões de reais no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)[7]. Mas não é só. As crianças e adolescentes, que constaram como prioridade no PPA que se encerra este ano, tem também seu orçamento reduzido para o próximo ano[8]. Ou seja, despesas fundamentais deixam de ser contempladas para atender outras de duvidosa importância.

Um orçamento disfuncional, na precisa definição do editorial do Estadão (23.12.2023, p. A3). Parecendo mais um “saco de presentes do Papai Noel” distribuído aleatoriamente, para quem conseguir pegar mais e primeiro, o orçamento de 2024 deixa de ser um instrumento de planejamento e gestão da administração pública federal para se tornar um amontoado de recursos públicos, que se assemelha a um pote de açúcar à disposição das moscas que chegarem na frente.

Para completar, a irresponsabilidade fiscal pelo potencial de descontrole das contas públicas aumenta significativamente com a anunciada aceleração na liberação de garantias para operações de crédito a estados e municípios, e consequente estímulo ao endividamento, associada às decisões recentes do STF impedindo a execução das garantias[9], mostrando que todos os Poderes colaboram para que o fundo do poço fiscal seja atingido mais rapidamente.

O cenário pode não ser animador, mas luta deve continuar e a esperança nunca pode morrer!

[1] Falei sobre o tema aqui mesmo no JOTA, com destaque para “O voo cego da reforma fiscal” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/o-voo-cego-da-reforma-fiscal-20072023).

[2] In Folha/Uol, 19.12.2023: Congresso aprova agenda bolsonarista de costumes em Orçamento, e governo Lula promete veto (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/12/congresso-aprova-agenda-bolsonarista-de-costumes-em-orcamento-e-governo-lula-promete-veto.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolha).

[3] PLDO traz cenário pior de dívida, déficit nominal e desempenhodas estatais até 2026 (Jota, 15.4.2023 (https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/pldo-traz-cenario-pior-de-divida-deficit-nominal-e-desempenho-das-estatais-ate-2026-15042023?utm_c%E2%80%A6).

[4] Discorri sobre o tema neste espaço há pouco tempo: “Meta zero: como tentar gastar o que se arrecada transformou a meta em inatingível” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/meta-zero-como-tentar-gastar-o-que-se-arrecada-transformou-a-meta-em-inatingivel-30112023).

[5] Congresso faz cortes no Farmácia Popular, vale-gás e Fies para bancar emendas em valor recorde; veja a lista. In G1, 22.12.2023 (https://g1.globo.com/politica/blog/julia-duailibi/post/2023/12/22/congresso-faz-cortes-no-farmacia-popular-vale-gas-e-fies-para-bancar-emendas-em-valor-recorde-veja-a-lista.ghtml).

[6] Orçamento dá mais verba ao governo Lula, mas deixa o “filé” com o Centrão (Estadão, 23.12.2023, p. A6).

[7] Comissão aprova Orçamento com corte de 7 bi no PAC. In Estadão, 22.12.2023, p. B1.

[8] Orçamento reduz ação para crianças e adolescentes para preservar PAC. In Folha/Uol, 24.12.2023 (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/12/orcamento-reduz-acao-para-criancas-e-adolescentes-para-preservar-pac.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newspainel),

[9] Mais dívidas para Estados e Municípios. In Estadão, 22.12.2023 (https://www.estadao.com.br/opiniao/mais-dividas-para-estados-e-municipios/).