Passada a euforia política em razão da promulgação, ao final do ano passado, da Emenda Constitucional 132/2023, conhecida como reforma tributária sobre o consumo, os seus apoiadores e críticos voltam agora os olhos para a sua regulamentação, com vistas a aprimorar os seus efeitos e reduzir eventuais dúvidas e lacunas, na busca sempre incessante e utópica da tão almejada justiça fiscal.
Dentro desse contexto, a depender dos termos da regulamentação da EC 132, o tema relacionado às eventuais consequências práticas que a parcela do ICMS devido por substituição tributária (ICMS-ST) pode ter no bojo da apuração das contribuições PIS/Cofins por parte dos contribuintes substituídos e que vem sendo recorrentemente discutido perante os tribunais superiores, há algum tempo, poderá continuar dando margem a discussões judiciais infindáveis, isso porque, mesmo no âmbito da reforma tributária aprovada, o instituto da substituição tributária ‘para frente’ ou progressiva não foi alterado, e continua sendo legitimado pelo §7.° do art. 150 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Ademais, merece ser destacado que segundo declarações do vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, a substituição tributária progressiva como técnica de arrecadação e fiscalização, em que pese comportar severas críticas jurídicas e distorções face à presunção de valores em operações futuras e de já ter sido objeto de inúmeras discussões judiciais, parece que continuará sendo considerada pelo governo quando da regulamentação do texto constitucional da reforma, em especial no que tange ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)[1] que tem a função de substituir o ICMS e o ISS.
Feitas essas considerações iniciais, e seguindo orientação do Supremo Tribunal Federal que acabou por delimitar como de cunho infraconstitucional o tema relacionado à exclusão do ICMS-ST das bases de cálculo do PIS e da Cofins (RE 1.258.842/RS: relator Ministro Dias Toffoli), o Superior Tribunal de Justiça, através da sua 1ª Seção (que reúne os integrantes da primeira e segunda Turmas), em dezembro de 2023, por unanimidade de votos e sob o rito dos recursos repetitivos, decidiu pela possibilidade da exclusão da parcela do imposto estadual recolhido por substituição tributária (ICMS-ST) das bases das contribuições apuradas pelos contribuintes substituídos nas operações de venda, firmando a seguinte tese: Tema 1.125: “O ICMS-ST não compõe a base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS devidas pelo contribuinte substituído no regime de substituição tributária progressiva“.
Nesse caso, parece ter andado bem o STJ, pois a referida matéria que decorre da denominada tese do século, discutida no bojo do RE 574.706/PR (Tema 69) que assegurou que ICMS não deve integrar a base de cálculo das contribuições PIS/Cofins, nada mais fez do que reconhecer que as parcelas do ICMS próprio e ST suportadas pelo contribuinte substituído dentro da sistemática arrecadatória da substituição tributária ‘para frente’ e por ele reconhecidas como custo, impactam indiretamente o seu faturamento na operação de venda e, consequentemente, a base de cálculo daquelas contribuições.
Não permitir a exclusão do efeito do ICMS-ST das bases de cálculo do PIS/Cofins, nesse caso, colocaria os contribuintes substituídos em posição de desvantagem tributária, pois teriam tratamento fiscal diferenciado e negativo em relação àqueles contribuintes não afetados pelo regime da substituição tributária, numa verdadeira contradição ao que fora decidido pelo STF no Tema 69.
Por outro lado, também deve ser mencionado que no âmbito do STJ está correndo em paralelo uma outra discussão relacionada ao ICMS-ST, que em nosso sentir é antagônica à do Tema 1.125, mas com consequente impacto na apuração das contribuições PIS/Cofins, porém nesse caso, sob o prisma do desconto de créditos dessas contribuições quando da aquisição de bens para revenda, que seria a possibilidade de apropriação de créditos dessas espécies tributárias sobre a parcela do ICMS-ST por parte dos contribuintes substituídos.
A esse respeito, tem-se que atualmente no STJ prevalece uma divergência de entendimento, enquanto a primeira Turma possui posição unânime a favor do contribuinte (e.g. AgInt no REsp 2.014.218/RS: relator Ministro Sérgio Kukina), no sentido de permitir a apropriação de créditos sobre a parcela do ICMS-ST, a segunda turma vota também de forma unânime, porém contrariamente ao contribuinte (e.g. AgInt no REsp 2.022.271/PR: relator Ministro Francisco Falcão), não admitindo o referido desconto de crédito.
Em razão das discordâncias expostas sobre o tema entre as Turmas, hoje existem Embargos de Divergência já aceitos no REsp 1.428.247/RS, EREsp 1.879.952/RS, EREsp 1.959.571/RS e REsp 2.072.621/SC, sendo que em 12.12.2023, a 1.ª Seção do STJ afetou esse objeto ao rito dos Recursos Repetitivos delimitando a seguinte tese: “Possibilidade de creditamento, no âmbito do regime não cumulativo das contribuições ao PIS e COFINS, dos valores que o contribuinte, na condição de substituído tributário, paga ao contribuinte substituo a título de reembolso pelo recolhimento do ICMS-substituição (ICMS-ST)” e determinando a suspensão de julgamento de todos os processos em 1.ª e 2.ª instância envolvendo a matéria.
Com a devida vênia à posição da primeira Turma sobre a matéria e aos defensores dessa tese, particularmente entendo que ela não merece prevalecer, por uma razão muito simples: a parcela do ICMS-ST, em que pese vir destacada no documento fiscal de compra, não se refere propriamente a uma operação de entrada, mas sim a uma tributação presumida de operações futuras de venda (saída) a serem realizadas por parte do contribuinte substituído, sendo que quando analisamos a possibilidade de crédito das contribuições de PIS/Cofins, ela deve ser avaliada sob a perspectiva da compra e não da venda, mesmo que de forma presumida.
Outros argumentos contrários à tese podem também ser considerados, tais como: a) o ICMS-ST não compõe a base de cálculo do PIS/Cofins do fabricante/fornecedor dos bens que o contribuinte substituído adquire para revenda por força de expressa disposição legal; b) só haveria direito a crédito do PIS/Cofins quando tiver havido pagamento dos mesmos tributos na etapa antecedente da cadeia produtiva; c) não é possível haver crédito de PIS/Cofins em relação a operação não tributadas na etapa anterior, em qualquer hipótese; d) a possibilidade de creditamento só é possível por previsão legislativa; e e) o STJ acabou de decidir que o impacto do ICMS-ST via custo deve se dar na base de cálculo (faturamento e saída) e não na base de crédito.
É bem verdade que num primeiro momento a parcela do ICMS-ST poderá se revelar em custo do bem ou produto a ser revendido, como afirmam os ministros da 1ª Turma, mas parece que tão somente esse argumento não seria suficiente para legitimar o crédito. Por outro lado, esse mesmo custo, como visto, afeta a operação de venda e o faturamento, fato que foi reconhecido no Tema 1.125 por parte do STJ e que acaba guardando correlação com o que foi decidido no tema 69 pelo STF.
Porém, caso a 1ª Seção do STJ entenda que os dois temas e suas consequências não estejam relacionados ou guardem qualquer correlação, o que entendo como descabido pelos motivos já expostos, poderemos acabar tendo um duplo desfecho favorável aos contribuintes substituídos tanto na operação de compra (crédito sobre a parcela do ICMS-ST) quanto na operação de venda (exclusão do ICMS-ST da base de cálculo).
A partir dessas considerações, e como destacado no início desse texto, por qual razão o tema da substituição tributária do ICMS-ST e seus impactos na apuração das contribuições PIS/Cofins que vem sendo discutidos no STJ poderiam ter relevância significativa no que se refere às discussões da regulamentação EC 132?
Como mencionado, a técnica da substituição tributária progressiva será considerada pelo governo como instrumento de arrecadação e fiscalização, principalmente em relação ao IBS. Por seu turno, considerando o texto da EC 132, tanto o IBS como a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) não devem integrar suas próprias bases, ou seja, serão calculadas “por fora” diretamente sobre o valor da operação e a ela acrescida.
Porém, ao se permitir e instituir futuramente para fins do IBS o método da substituição tributária ‘para frente’ a partir de valores em operações futuras presumidas, o contribuinte substituído, da mesma forma como acontece hoje com o ICMS-ST, reconhecerá o IBS devido por substituição tributária como custo do seu produto, bem ou serviço o que indireta e consequentemente afetará a base a base da CBS, de igual modo ao que ocorre atualmente com as contribuições PIS/Cofins.
Assim, se não houver qualquer ressalva por parte da norma infraconstitucional regulamentadora do texto da reforma tributária, que preveja a possibilidade de exclusão da base de cálculo da CBS apurada pelo contribuinte substituído da parcela do IBS devido por substituição tributária, poderemos nos deparar com as mesmas discussões já enfrentadas e resolvidas no Tema 1.125 por parte do STJ.
No que tange à possibilidade de crédito da CBS sobre a parcela do IBS devido por substituição tributária, diferentemente do que ocorre hoje com as contribuições PIS/Cofins, não se vislumbra espaço para discussão, uma vez que o crédito na CBS não se dará mais a princípio por presunção, seguindo o método de base sobre base e sim de imposto sobre imposto.
Tem-se, portanto, que a regulamentação do texto constitucional da reforma tributária deve ocorrer com parcimônia, de forma muito criteriosa e ser tratada com bastante seriedade pelos representantes dos Executivos federal, estadual e municipal, parlamentares e assessores, sem a pressa e escassez de debates que presenciamos quando do trâmite da EC 132, para que não tenhamos o risco novamente de ver “o futuro repetir o passado” e um “museu de grandes novidades” (“O tempo não para”, de Cazuza), conferindo oportunidade a intermináveis discussões judiciais que só prejudicam nosso país.
[1] TRUFFI, Renan. Governo vai trabalhar para manter “substituição tributária” na reforma, diz Alkmin. Valor Econômico. Brasília, 14.06.2023, Seção Política.