É preciso modular as modulações de decisões judiciais

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A modulação de efeitos das decisões proferidas pelo Poder Judiciário foi introduzida no ordenamento pelas Leis 9.868 e 9.882, de 1999. Esses diplomas atribuíram ao Supremo Tribunal Federal (STF) competência para “restringir os efeitos” da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo “ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”, o que, posteriormente, foi expandido para outros tribunais (CPC/15, art. 927, §3º)[1].

Trata-se de medida excepcional, cabível quando presentes razões de segurança jurídica ou relevante interesse social. Afinal, segundo Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes[2], a “nulidade” do ato normativo declarado inconstitucional, desde o seu nascedouro, sempre foi e “continua a ser a regra no direito brasileiro”; por isso, o seu afastamento exige “análise fundada no princípio da proporcionalidade”, capaz de “demonstrar, com base numa ponderação concreta”, que a observância aos efeitos retroativos típicos da inconstitucionalidade geraria “sacrifício” intolerável da segurança jurídica ou de interesses sociais de maior relevância.

Passados cerca de vinte e cinco anos desde a criação do instituto, o que se constata é que, inicialmente, a Corte Suprema procurou limitar a sua aplicação aos casos em que fosse impossível reconhecer a invalidade do ato em discussão sem gerar prejuízos intoleráveis a situações jurídicas consolidadas (RE 197.917, j. 06/06/2000)[3] e a direitos constitucionalmente protegidos (ADI 3.022, j. 02/04/2004)[4].

Todavia, com o tempo, a modulação dos efeitos das decisões, de exceção, tornou-se quase que a regra, num processo de contínua banalização, especialmente quando em jogo interesses do Erário, como na discussão sobre a inconstitucionalidade de tributos.

Emblemática, nesse sentido, foi a modulação de efeitos levada a cabo no RE/RG 574.706/PR (Tema 69), em que o direito à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins foi assegurado apenas a partir da respectiva sessão de julgamento, ressalvados os processos instaurados até a referida data, no intuito de minimizar os impactos orçamentários da decisão para a União, numa espécie de “convalidação” parcial da inconstitucionalidade praticada. O valor estimado da discussão era cerca de R$ 260 bilhões[5].

Além disso, ao concluir, em 18/12/2021, julgamento que declarou a inconstitucionalidade da alíquota do ICMS sobre energia elétrica fixada em desacordo com a sua natureza essencial, foi estipulada a produção de efeitos da decisão apenas a partir de 2024, ressalvadas as ações ajuizadas até o início do julgamento, em 5/2/2021 (RE/RG 714.139/SC, Tema 745), em virtude do impacto dessa alteração sobre as contas públicas estaduais, estimado em R$ 26,6 bilhões por ano[6].

Recentemente, foi julgada inconstitucional a remuneração das contas do FGTS em patamar inferior ao do IPCA, porém, modulou-se a decisão para alcançar apenas os depósitos efetuados após o julgamento do STF (ADI 5.090). Nesse caso, não foi preservado sequer o direito dos trabalhadores que haviam ajuizado ação antes do julgamento, tendo em vista o impacto estimado pela Advocacia-Geral da União (AGU) em R$ 660 bilhões[7]. Assim, embora tenham se sagrado vencedores na tese jurídica, as ações dos interessados provavelmente serão julgadas improcedentes, com risco de terem de arcar com as despesas do processo, incluindo honorários de sucumbência.

Contudo, a condescendência do Poder Judiciário frente aos atos ilegítimos do demais Poderes, com a consequente generalização da modulação de efeitos de suas decisões, é duplamente problemática.

Por um lado, resulta em negar ao particular a reparação integral do direito lesado pelo ato ilícito cometido pelo Estado, o que equivale a uma espécie de “confisco” incompatível com o arcabouço de garantias constitucionais. Afinal, já existem prazos prescricionais que limitam temporalmente o direito à reparação de prejuízos, o que, por si só, é um tipo de “modulação” instituída pelo legislador.

A frustração desse direito, mediante uma “modulação” mais ampla pró-Estado (com redução ou anulação do prazo prescricional) implica, em última análise, a criação de norma restritiva de direitos individuais pelo Poder Judiciário, em violação à separação de poderes, que é um dos pilares do Estado democrático de Direito.

De outro lado, a “modulação” acrítica em matéria tributária cria um círculo vicioso que estimula o desrespeito sistêmico à Constituição. Isso, porque os governantes passam a contar com a possibilidade de arrecadar “tributo” indevido para satisfazer as suas necessidades momentâneas de caixa (sem o necessário controle de gastos), até que o Poder Judiciário se pronuncie, com eventual perdão em relação ao passado.

A situação se agrava pela demora do Poder Judiciário em definir as questões, o que não raro leva décadas. Daí porque, quando os temas finalmente são julgados, apresenta-se uma “conta astronômica” a ser paga pelo Erário, o que é utilizado como argumento para a pretendida “modulação”. Assim, os entes públicos se valem da morosidade judicial para retirar da sociedade recursos indevidamente, “apostando” na chance de jamais devolvê-los, numa espécie de “especulação judicial”.

Igualmente preocupante é a constatação de que a modulação dos efeitos dos julgados obedece a critérios desuniformes e mais rígidos quando favorável ao contribuinte. Por exemplo, ao julgar válida a glosa de créditos do ICMS relativo a aquisições interestaduais objeto de incentivos concedidos sem autorização do Confaz, o STF atribuiu efeitos prospectivos à sua decisão, ressalvados os lançamentos já efetuados (RE/RG 628.075/RS, Tema 490), o que, na prática, criou uma desigualação entre contribuintes em função de já terem sido ou não fiscalizados.

De modo similar, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) modulou decisão que alterou, a favor do fisco, entendimento anterior quanto à limitação da base de cálculo das contribuições ao Sistema S em 20 salários mínimos, a fim de preservar somente os direitos de contribuintes que tivessem obtido decisões favoráveis antes do início do julgamento realizado, sujeitando-os a álea incompatível com o princípio da igualdade (RESPs 1.898.532/CE e 1.905.870/PR, Tema Repetitivo 1079).

Tudo a evidenciar que a ausência de critérios claros na lei para a modulação de efeitos das decisões judiciais tem levado ao desvirtuamento dos contornos excepcionais dessa medida, que vem sendo aplicada de forma mais favorável ao Estado, o que gera insegurança jurídica e contraria os princípios da isonomia e do devido processo legal (CF, art. 5º, caput e LIV). Tais garantias, aliás, são dos cidadãos contra o Estado[8], mas têm sido aplicadas às avessas, para proteger interesses fiscais, em detrimento dos direitos individuais.

Nesse cenário, convém “modular” a prolação de decisões judiciais que permitam ao Estado se locupletar de exigências pecuniárias reconhecidas como indevidas, de modo que isso só seja admitido em situações realmente excepcionais, nas quais possa haver efetivo e inevitável comprometimento de serviços essenciais, ou conflitos de competência que possam ser prejudiciais aos próprios beneficiários das decisões, como, por exemplo, na hipótese de o afastamento de um tributo tornar devido outro, não recolhido.

De resto, os prazos extintivos (decadência e prescrição) previstos na legislação pertinente reputam-se suficientes para limitar o alcance temporal de eventuais pedidos de recomposição patrimonial que venham a ser apresentados pelos particulares.

E, mesmo assim, quando os valores a serem restituídos pelo Estado se mostrarem elevados, poderiam ser estabelecidas moratórias, parcelamentos ou outros mecanismos para que os recursos indevidamente retirados dos particulares fossem devolvidos de alguma forma – em vez de simplesmente placitar-se o confisco de bens – de modo consentâneo com o princípio da proporcionalidade.

[1] “Art. 927. (…) § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.”

[2] MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 564.

[3] Ao declarar inconstitucional lei municipal que estabelecera o número de vereadores em desacordo com o artigo 29, IV, da Constituição Federal, o Tribunal optou por modular seus efeitos para o futuro, a fim de evitar a anulação de todos os atos anteriores da Câmara de Vereadores.

[4] Ao declarar inconstitucional lei estadual que designava à Defensoria Pública a defesa de servidores públicos estaduais, os efeitos da decisão foram postergados para evitar prejuízos aos servidores que já estavam sendo assistidos pelo órgão.

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/entenda-decisao-historica-do-stf-sobre-icms-e-impacto-para-governo-e-empresas/. Acesso em 18/07/2024.

[6] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=479034&ori=1. Acesso em 18/07/2024.

[7] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/11/amp/6653008-correcao-fgts-zanin-suspende-julgamento-que-pode-ter-impacto-de-rs-660-bi.html  Acesso em 24/07/2024.

[8] “Os princípios constitucionais tributários, assim, sobre representarem importante conquista político-jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal. Desde que existem para impor limitações ao poder de tributar do estado, esses postulados tem por destinatário exclusivo o poder estatal, que se submete a imperatividade de suas restrições”. (STF, Pleno, ADI 712 MC. Rel. Min. Celso de Mello, DOU: 19/02/1993)