Grandes pensadores devem servir para inspirar, não para dissuadir ou inibir o pensamento. Dito isso, tentarei ter cuidado com as palavras, mas sem receio de discordar de juristas notoriamente mais experientes e mais versados no direito do que eu.
Em novembro, circulou no ecossistema digital um vídeo do professor Silvio Venosa afirmando categoricamente que “um magistrado essencialmente positivista é um mau magistrado porque não vai além da lei. Não vai para o sentimento geral do povo”. Considerando que o vídeo é verdadeiro – ressalva necessária em tempos de inteligência artificial –, mas atentando-se para o fato de um possível recorte mudar o sentido dentro do contexto em que foi proferida, tecerei breves considerações sobre algumas confusões dessa fala.
A afirmação “um magistrado essencialmente positivista é um mau magistrado porque não vai além da lei. Não vai para o sentimento geral do povo” traz, pelos menos, três problemas teóricos: primeiro, porque generaliza e homogeneíza uma corrente de pensamento plural e complexa; segundo, porque reverbera uma associação contrafactual e teoricamente imprecisa entre positivismo e o mau reproduzida desde o segundo Pós-guerra mundial, especialmente a partir da obra de Gustav Radbruch; terceiro, porque aposta em fórmulas genéricas como mecanismo de Justiça no caso concreto, mas que, historicamente, serviram às piores ditaduras como meio de promoção de injustiças. Vejamos as três questões levantadas na sua ordem.
Primeiro, o que é comumente chamado de positivismo é, em verdade, um conjunto variado de concepções filosóficas, políticas, científicas e/ou ideológicas que influenciaram profundamente a produção do conhecimento nas ciências humanas durante o século 19 e o início do século 20. Dessa maneira, existiu o positivismo histórico, o geográfico, o filosófico e o jurídico, por exemplo.
A expressão positivismo jurídico teria surgido a partir da oposição entre direito natural e direito positivo, que seria resultado de uma longa tradição que remota aos tempos antigos. Bobbio afirma que “[…] o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. […] o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo”.[1]
Nesses termos, evidencia-se que o que conhecemos por positivismo jurídico não é necessariamente a mesma coisa que o positivismo filosófico, apesar de possuir certas ligações com este no século 19. Ou seja, o positivismo jurídico possui a sua própria dinâmica e origens ligadas às especulações em torno do direito que residem no seio de uma tradição ocidental milenar.
Assim, o próprio positivismo jurídico possui variantes internas que não podem ser desconsideradas pelos estudantes da ciência jurídica. Bobbio destaca a existência de um positivismo jurídico alemão, de um francês e de um inglês, cada qual com suas características e com algumas semelhanças entre eles. Além de observar essas variantes nacionais do positivismo jurídico em suas origens históricas, Bobbio ensina que o positivismo jurídico pode ser considerado sob três aspectos: 1) um certo modo de abordar e estudar o direito; 2) uma certa teoria do direito; 3) uma certa ideologia do Direito.[2]
Destaco, ainda, a existência de diferenças entre o que se chama de positivismo exegético e o positivismo normativista, além dos positivismos inclusivo e exclusivo. O que conhecemos por positivismo exegético é o modelo francês de positivismo tradicional, mas que possui características similares nos modelos de positivismo inglês e alemão do século 19. Esse positivismo tradicional também é chamado de “paleo-positivismo” por Ferrajoli.[3] Já o positivismo normativista, é fruto do século 20 e foi defendido por Kelsen e Hart, em especial. Podem ser citados, ainda, autores como Joseph Raz, dentre outros positivistas mais recentes. O fato é que, como se pode perceber, afirmar que um “juiz positivista é um mau juiz” caracteriza uma generalização simplista de um fenômeno altamente complexo e heterogêneo.
Segundo, a fala ecoa uma imprecisão teórica existente na literatura jurídica desde a Segunda Guerra Mundial, de acordo com a qual o positivismo teria justificado o nazismo e afastado o direito da moral, além de gerar uma fusão semântica indevida entre positivismo e o “mau”. Os limites textuais não permitem avançar em maiores fundamentações, mas aqui ficam algumas provocações aos leitores sobre o assunto.
Pode parecer estranho para muitos, mas nem todo juiz positivista desconsidera a moral ou se propõe ser apenas a “boca da lei” e mero aplicador insensível do direito. Kelsen falava em “moldura da norma”[4] e Hart em “textura aberta”[5], sinônimos de indeterminação na interpretação do direito. Nenhum deles negava a importância da moral para o direito. Por sinal, Kelsen era um democrata[6]. Aliás, ele protagonizou um dos maiores debates teóricos de sua época contra Carl Schmitt, um dos grandes expoentes teóricos do nazismo. Afinal, quem seria o “guardião da constituição”? Para Schmitt, o presidente do Reich. Para Kelsen, um tribunal constitucional.[7]
Ainda sobre a relação entre moral e direito, Dimoulis aponta para a existência de um positivismo inclusivo e outro exclusivo. O exclusivo entende que a moral não é condição necessária da definição do direito. Já o inclusivo sustenta que, apesar de a moral não ser condição necessária da definição do direito, ela pode funcionar como tal em alguns sistemas jurídicos.[8] Assim, a moral entra no direito. A questão é quando e como.
Terceiro, a fala do professor Silvio aposta em fórmulas genéricas como meios para se atingir o “bom” direito ou a Justiça, mas que, a bem da verdade, muito serviram ao nazismo: “o sentimento geral do povo”. Sobre este ponto, Ingenborg Maus é esclarecedora ao expor que as “Cartas aos Juízes” (Richterbriefe) distribuídas pelo Ministério da Justiça nazista a partir de 1942, investiam os juízes na condição “protetor dos valores de um povo” e de “aniquilador dos falsos valores”, devendo estes se libertarem “da escravidão da literalidade do direito positivo”. Maus aponta um claro antipositivismo e um antiformalismo primários na doutrina nazista e uma certa moralização do direito[9]. Mas qual moral?
Prossegue a autora afirmando que “As ‘Cartas aos Juízes’ também tinham em vista a elite judiciária, quando advertiam acerca de não se utilizar servilmente ‘das muletas da lei’ […] Na realidade, revela-se aqui na forma de sua completa destruição a ligação entre legislação e independência da Justiça”.[10]
Por fim, supor que um juiz aplicador das regras democraticamente estabelecidas é um mau juiz ou mesmo um juiz mau é desconsiderar a importância estabilizadora de conflitos e de limitação do poder, das incertezas e das arbitrariedades que as regras possuem nas sociedades complexas[11]. Elas trazem certeza e segurança jurídica, essenciais a um Estado de Direito. É apostar em julgamentos morais individuais de juízes ou, pior, fundados em fórmulas genéricas abertas às arbitrariedades como “sentimento geral do povo” em detrimento de processos coletivos de deliberação política democrática. É confundir validade da norma jurídica, que independe da moral, com legitimidade do ordenamento jurídico, que necessita de eficácia social para operar regularmente e, para tanto, não dispensa julgamentos morais dos seus destinatários.
[1] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p 26.
[2] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p 135-134.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Jueces y política. Derechos y Liberdades. Revista Del instituto Bartolomé de las Casas, p. 66. Disponível em: https://e-archivo.uc3m.es/bitstream/handle/10016/1333/DyL-1999-IV-7-Ferrajoli.pdf. Acesso em 19 nov. 2023.
[4] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[5] HART, H. L. A. O Conceito de Direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[6] SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 4. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020, p. 74.
[7] KELSEN, Hans; SCHMITT, Carl. La polémica Schmitt/Kelsen sobre la justicia constitucional: El defensor de la Constitución versus ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución? 2009.
[8] DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: teoria da validade e da interpretação do direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 78.
[9] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: sobre o papel daatividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. In: LIMA, Martonio Mont’AlverneBarreto; ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes (Trad.). Anuário dosCursos de Pós-Graduação em Direito. Recife-PE, Separata, n. 11, 2000, p. 197.
[10] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: sobre o papel daatividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. In: LIMA, Martonio Mont’AlverneBarreto; ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes (Trad.). Anuário dosCursos de Pós-Graduação em Direito. Recife-PE, Separata, n. 11, 2000, p. 197.
[11] ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 19 nov. 2023.